Jogo da memória
Na quinta edição do Mirada, um dos mais importantes festivais de teatro do país, a memória foi insistentemente revista, manipulada da literalidade até os limites de sua reinvenção
Por Gabriela Mellão
A memória foi matéria-prima no quinto Mirada — Festival Ibero-americano de Artes Cênicas, que aconteceu entre 5 e 15 de setembro em Santos. Revisitada ora como temática ora como linguagem, pode-se dizer que foi um dos alicerces do evento, base para grande parte dos 25 espetáculos internacionais e os 12 nacionais apresentados.
A memória de um país tornou-se arma política ao ser evocada de forma literal, como ato de resistência contra lesões recentes de nações ainda em processo de cicatrização. Foi o caso de obras de destaque da programação como o solo de Joana Craveiro Museu Vivo de Memórias Esquecidas, do grupo português Teatro Vestido, e La Despedida, da Cia. Colombiana Mapa Teatro, criadas em referência aos 48 anos de ditadura de Portugal, no primeiro caso, e às reminiscências da Farc, no segundo.
A memória também recebeu tratamento poético, tornando material estético em peças que ousaram mesclar forma e conteúdo para investigar o teatro de seu tempo, como pode ser visto em El Bramido de Düsseldorf, do uruguaio Sergio Blanco, e Eu Estava em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse, nova empreitada do encenador Antunes Filho, escrita pelo dramaturgo francês Jean-Luc Lagarce.
Em El Bramido…, lembranças são manipuladas até os limites de suas reinvenções. O espetáculo aprofunda a pesquisa sobre autoficção deste uruguaio residente em Paris que marcou presença na penúltima edição do Mirada, há dois anos, com A Ira de Narciso, peça montada recentemente no país, sob direção de Yara de Novaes.
A dramaturgia de ambos os textos nasce a partir de um embaralhamento contínuo entre biografia e fantasia. Em El Bramido…, questiona os limites da arte ao abordar a suposta morte do pai do autor e diretor, enlaçando a plateia em um jogo de verdades e mentiras a ponto de seus integrantes surpreenderem-se atuando não apenas como espectadores, também como jogadores. Ao longo da peça, filtram fatos verídicos e descartam pistas falsas feito investigadores, permanecendo ávidos pelo fim da “partida”, na qual terão, enfim, elementos necessários para chegarem o mais próximo possível da verdade, refletindo sobre a existência da mesma e elaborando a construção de suas versões pessoais da trama.
Lagarce com Antunes
Em Eu Estava em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse, cuja estreia mundial se deu no Mirada e que entra em cartaz em São Paulo nesta sexta-feira, dia 21, a memória reflete as subjetividades dos personagens.
No fiapo de trama apresentada por Lagarce, autor contemporâneo mais montado de seu país, frases curtas e vagas ganham novas camadas de significação conforme são repetidas, pela maneira como isso acontece.
O homem caçula da família partiu de casa após se desentender com o pai. Ele retorna, depois de anos de ausência. Volta para cair inerte numa cama, localizada no segundo andar da casa, postergando indefinidamente a espera das mulheres da casa.
Os fatos se modificam, sem alterar a ordem. As protagonistas permanecem na expectativa de uma transformação, primeiramente pelo retorno e depois pelo despertar do personagem masculino. Conforme relatam, cada uma a sua maneira, suas vidas em suspensão, tecem seus pontos de vista sobre os fatos e descortinam particularidades, compondo fios narrativos dúbios, os quais em alguns momentos se convergem e em outros se contrastam.
Antunes/Lagarce, como Blanco, exige um espectador à espreita, em constante estado de vigília. Cabe a ele, como um co-autor da obra, a composição final do enredo, criado a partir de sua leitura individual sobre o que é narrado e vivido por estas mulheres, assim como sobre a forma que esses relatos se dão.
A paralisia da família de Eu Estava em Minha Casa… espelha a de As Três Irmãs, de Tchecov. Como tal, pode ser vista simbolicamente, evocação da falência de um país, ou de uma ideia de mundo.
No palco, cerca de 30 cadeiras vazias, espalhadas pelo palco e rearranjadas de diferentes maneiras no cenário de Simone Mina dão forma à ausência, assim como à possibilidade de movimento que poderia surgir na casa/nação, a qual parece estar em eminência de se concretizar, embora nunca se consuma.
Instabilidade
O Mirada surgiu há oito anos com a importante missão de aproximar o Brasil de nações Ibero-americanas, países-irmãos que até então pareciam mais longínquos do que França, Inglaterra e outras terras verdadeiramente distantes. O festival se tornou instantaneamente um dos eventos mais importantes de teatro do país.
Cinco edições se passaram, possibilitando que o Mirada consolidasse sua missão, promovendo na prática a redução de fronteiras, a ampliação de horizontes artísticos e a comunicação entre países que antes pouco trocavam.
O ano de 2018 surge neste histórico como uma edição especialmente irregular, marcada por uma grade na qual pluralidade nem sempre esteve atrelada à qualidade. Isto talvez se explique pela eleição de um país homenageado como a Colômbia, cuja produção teatral mostrou-se menos inspiradora do que a da Espanha e do Chile protagonistas das programações de 2016 e 2014, respectivamente.
Diante de uma programação instável, as atividades formativas do Mirada -trocas de experiências formais este ano capitaneadas pelo ator e diretor André Guerreiro Lopes e pela dramaturga Dione Carlos — mostraram-se ainda mais relevantes. Memórias de um festival expandido.
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Eu Estava em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse, de Jean-Luc Lagarce, direção de Antunes Filho. Sesc Consolação Teatro Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, São Paulo,SP). 6ª e sáb., às 21h; dom., às 18h. De 21/9 a 16/12. Duração: 70 minutos. Ingressos: R$ 40, R$ 20 (meia), R$ 12 (Credencial Plena).