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OLÁ,

Jogo da memória

Por Bravo
Atualizado em 21 set 2022, 22h26 - Publicado em 20 set 2018, 07h19
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Na quinta edição do Mirada, um dos mais importantes festivais de teatro do país, a memória foi insistentemente revista, manipulada da literalidade até os limites de sua reinvenção

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“Eu Estava em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse “, de Antunes Filho (foto: Inês Correa)

Por Gabriela Mellão

A memória foi matéria-prima no quinto Mirada — Festival Ibero-americano de Artes Cênicas, que aconteceu entre 5 e 15 de setembro em Santos. Revisitada ora como temática ora como linguagem, pode-se dizer que foi um dos alicerces do evento, base para grande parte dos 25 espetáculos internacionais e os 12 nacionais apresentados.

A memória de um país tornou-se arma política ao ser evocada de forma literal, como ato de resistência contra lesões recentes de nações ainda em processo de cicatrização. Foi o caso de obras de destaque da programação como o solo de Joana Craveiro Museu Vivo de Memórias Esquecidas, do grupo português Teatro Vestido, e La Despedida, da Cia. Colombiana Mapa Teatro, criadas em referência aos 48 anos de ditadura de Portugal, no primeiro caso, e às reminiscências da Farc, no segundo.

A memória também recebeu tratamento poético, tornando material estético em peças que ousaram mesclar forma e conteúdo para investigar o teatro de seu tempo, como pode ser visto em El Bramido de Düsseldorf, do uruguaio Sergio Blanco, e Eu Estava em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse, nova empreitada do encenador Antunes Filho, escrita pelo dramaturgo francês Jean-Luc Lagarce.

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Em El Bramido…, lembranças são manipuladas até os limites de suas reinvenções. O espetáculo aprofunda a pesquisa sobre autoficção deste uruguaio residente em Paris que marcou presença na penúltima edição do Mirada, há dois anos, com A Ira de Narciso, peça montada recentemente no país, sob direção de Yara de Novaes.

A dramaturgia de ambos os textos nasce a partir de um embaralhamento contínuo entre biografia e fantasia. Em El Bramido…, questiona os limites da arte ao abordar a suposta morte do pai do autor e diretor, enlaçando a plateia em um jogo de verdades e mentiras a ponto de seus integrantes surpreenderem-se atuando não apenas como espectadores, também como jogadores. Ao longo da peça, filtram fatos verídicos e descartam pistas falsas feito investigadores, permanecendo ávidos pelo fim da “partida”, na qual terão, enfim, elementos necessários para chegarem o mais próximo possível da verdade, refletindo sobre a existência da mesma e elaborando a construção de suas versões pessoais da trama.

Lagarce com Antunes

Em Eu Estava em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse, cuja estreia mundial se deu no Mirada e que entra em cartaz em São Paulo nesta sexta-feira, dia 21, a memória reflete as subjetividades dos personagens.

No fiapo de trama apresentada por Lagarce, autor contemporâneo mais montado de seu país, frases curtas e vagas ganham novas camadas de significação conforme são repetidas, pela maneira como isso acontece.

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O homem caçula da família partiu de casa após se desentender com o pai. Ele retorna, depois de anos de ausência. Volta para cair inerte numa cama, localizada no segundo andar da casa, postergando indefinidamente a espera das mulheres da casa.

Os fatos se modificam, sem alterar a ordem. As protagonistas permanecem na expectativa de uma transformação, primeiramente pelo retorno e depois pelo despertar do personagem masculino. Conforme relatam, cada uma a sua maneira, suas vidas em suspensão, tecem seus pontos de vista sobre os fatos e descortinam particularidades, compondo fios narrativos dúbios, os quais em alguns momentos se convergem e em outros se contrastam.

Antunes/Lagarce, como Blanco, exige um espectador à espreita, em constante estado de vigília. Cabe a ele, como um co-autor da obra, a composição final do enredo, criado a partir de sua leitura individual sobre o que é narrado e vivido por estas mulheres, assim como sobre a forma que esses relatos se dão.

A paralisia da família de Eu Estava em Minha Casa… espelha a de As Três Irmãs, de Tchecov. Como tal, pode ser vista simbolicamente, evocação da falência de um país, ou de uma ideia de mundo.

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No palco, cerca de 30 cadeiras vazias, espalhadas pelo palco e rearranjadas de diferentes maneiras no cenário de Simone Mina dão forma à ausência, assim como à possibilidade de movimento que poderia surgir na casa/nação, a qual parece estar em eminência de se concretizar, embora nunca se consuma.

Instabilidade

O Mirada surgiu há oito anos com a importante missão de aproximar o Brasil de nações Ibero-americanas, países-irmãos que até então pareciam mais longínquos do que França, Inglaterra e outras terras verdadeiramente distantes. O festival se tornou instantaneamente um dos eventos mais importantes de teatro do país.

Cinco edições se passaram, possibilitando que o Mirada consolidasse sua missão, promovendo na prática a redução de fronteiras, a ampliação de horizontes artísticos e a comunicação entre países que antes pouco trocavam.

O ano de 2018 surge neste histórico como uma edição especialmente irregular, marcada por uma grade na qual pluralidade nem sempre esteve atrelada à qualidade. Isto talvez se explique pela eleição de um país homenageado como a Colômbia, cuja produção teatral mostrou-se menos inspiradora do que a da Espanha e do Chile protagonistas das programações de 2016 e 2014, respectivamente.

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Diante de uma programação instável, as atividades formativas do Mirada -trocas de experiências formais este ano capitaneadas pelo ator e diretor André Guerreiro Lopes e pela dramaturga Dione Carlos — mostraram-se ainda mais relevantes. Memórias de um festival expandido.

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Eu Estava em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse, de Jean-Luc Lagarce, direção de Antunes Filho. Sesc Consolação Teatro Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, São Paulo,SP). 6ª e sáb., às 21h; dom., às 18h. De 21/9 a 16/12. Duração: 70 minutos. Ingressos: R$ 40, R$ 20 (meia), R$ 12 (Credencial Plena).

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