Los Cuatro Amigos
Novos músicos cubanos falam sobre suas perspectivas após a abertura política e econômica da ilha
Por Claudio Leal
Quatro amigos põem os cotovelos na sacada de um sobrado de Havana Velha. Abaixo deles, na rua Cárdenas, a agitação de uma esquina com biriteiros, comerciantes, pedestres e desocupados. Acima dos ruídos e da calçada barrenta, dentro da galeria Arsenal, os quatro conversam sobre música. Antonio, Rolando, Ronny e Leo são jovens representantes da música de Cuba, membros da geração que despertou para a arte numa fase de abertura política e econômica da ditadura. O mais velho dos rapazes, Leo, tem 24 anos. O mais jovem, Antonio, 18. Com origens e escolas musicais diferentes, mas integrados pela amizade, eles atuam na cena cultural de Havana, cuja noite é a mais escura das noites, em suas luzes suprimidas pelo racionamento de energia.
Nos 60 anos da revolução de 1959, a mitologia dos rebeldes persiste em muros, prédios públicos, outdoors, livrarias e vitrines de Havana. A musicalidade cubana inunda a memória dos estrangeiros, embora tenha presença menos estridente. Boleros, mambos, rumbas, salsas e trovas integram o imaginário de Cuba, ao qual se somam artistas como Benny Moré, Ernesto Lecuona, Bola de Nieve, César Portillo de la Luz, Bebo Valdés e Compay Segundo, além dos contemporâneos e ainda em atividade Omara Portuondo, Silvio Rodriguez e Chucho Valdés.
Nascido em 7 de maio de 2000, Antonio é filho do músico Pablo Milanés e da artista plástica Sandra Pérez, agora separados. Nome estelar da Nueva Trova, movimento marcante para compositores brasileiros e de várias nacionalidades nos anos 70 e 80, Milanés tornou-se um artista de carreira internacional, hoje residindo por mais tempo na Espanha.
“A música sempre esteve em minha vida. Minha família é muito musical. Durante todo o tempo meu pai ouvia discos velhos em seu estúdio. Stevie Wonder, coisas assim. É como cresci e vivi. Sempre foi uma experiência muito linda, positiva, porque eu vi como as pessoas se relacionavam através da música. E passei a querer me conectar através disso e a criar laços com as pessoas”, recorda-se Antonio.
Dos quatro aos oito anos, ele viveu no México com a mãe, em cuja casa havia um piano, seu primeiro instrumento. “Um pouco contra a minha vontade”, ele ressalva. “Me chateava às vezes tocar piano, porque eu queria tocar outras coisas. Minha mãe um pouco me forçava a estudar piano. Depois veio o gosto, porque já não estava tocando o que queriam que eu tocasse, mas o que eu queria”.
Dias antes, em seu apartamento, Sandra acompanhou o filho tocar no piano La verdad, canção composta aos 15 anos, dentro de um estilo mais tradicional de canto, aos poucos abandonado por Antonio. Ao voltar a Havana, o garoto se encantou pelo hip hop, um gênero mais popular em sua geração. A primeira referência local viria com o grupo Los Aldeanos, criado em 2003 pelos Mc’s Aldo e Bian, ídolos de aberta crítica política em suas letras. A fronteira musical do garoto era porosa. “Comecei a escutar Kanye West, Jaz-y, Kendrick Lamar, N.W.A… Dr. Dre foi uma grande influência. Esse tipo de música me disse: ‘Isso é o que quero fazer, a minha identidade. É o que quero que minha arte seja’”, conta Antonio.
Nos dias de nossos encontros, ele se dedicava a esboçar o disco de estreia — naturalmente, de rap -, que ainda não está finalizado. Surgiam os impasses de expressão. “Se eu escrevo uma coisa em espanhol e depois quero levá-la pro inglês, como quero que seja meu disco, muitas vezes perde a essência da letra. Todos os meus raps são escritos diretamente em inglês. Poucas coisas são em espanhol e quando traduzo pro inglês não têm a mesma força, não contêm a mesma mensagem”. No YouTube, como A-Seven, ele publicou o single The First Step.
O produtor de música eletrônica Rolando Garcia, o Bosito, 22 anos, é um dos amigos mais próximos de seu universo musical. Nascido em 17 de março de 1997 numa família que ouvia rock, o havanês Rolando começou a estudar música como autodidata, aos 14 anos, e mais adiante com uma professora de piano e harmonia. Em 2012, o DJ e produtor de música eletrônica americano Skrillex produziu ondulações na ilha. “Foi algo muito grande em Cuba”, diz Rolando, reconhecendo-se como uma consequência desse fenômeno. “Foi o meu início: ‘Quero fazer música eletrônica’. Comecei a aprender, a dedicar meu tempo, a sentar-me diante do computador”.
Os atrasos tecnológicos nascidos do bloqueio econômico dos Estados Unidos e agravados pelas restrições políticas do próprio regime são aos poucos alterados. Em dezembro de 2018, os cubanos passaram a ter acesso à internet em seus celulares. Dois anos antes, iniciara-se um programa estatal de banda larga nas residências. Nada disso transcorreu sem conexões com a economia.
Em abril de 2018, Miguel Díaz-Canel assumiu a presidência de Cuba, em substituição a Raúl Castro, e continuou as reformas econômicas iniciadas pelo antecessor, num aceno aos investidores estrangeiros na ilha. No plano interno, o governo retomou as concessões a empresas privadas, como restaurantes, hospedarias e transportes. Em fevereiro deste ano, as reformas da Constituição, com mais abertura ao mercado, foram aprovadas por 86,8% dos votantes de um referendo.
Na comunicação, o estado respondeu lentamente aos movimentos da Cuba não-oficial, aquela das ruas, onde se disseminou desde 2008 o serviço de “paquete”, a distribuição de arquivos através de Pen-drive e HD externo. O comércio informal envolvia filmes, séries, games, reality shows, músicas e publicações oriundos do estrangeiro, à margem da censura.
Rolando enfrentava dificuldades para comunicar-se com artistas de outros países, mas agora sente-se confortável com o fluxo contínuo de bytes. “No século XXI, não se precisa de muito para fazer música. É preciso criatividade, muito conhecimento, mas, tecnologicamente, já se pode fazer com um computador”, observa. “A produção se complementa com um estúdio de gravação, com hardware, instrumentos, arranjadores, músicos e equipe”.
Em conversas isoladas, os quatro amigos repetem que a solidariedade marca seus projetos artísticos. “A geração de jovens músicos e produtores é muito grande. Todo mundo se ajuda. Não há uma pessoa que queria estar por cima da outra, todos se dão as mãos, inclusive há muitos que são bons amigos e saem juntos”, garante Rolando, que defende o diálogo com as gerações precedentes. “Tento levar essa música tradicional cubana, que pode ser o Son, o Chá-chá-chá, o Danzón, os diferentes gêneros, para a música contemporânea. Pode ser o pop, a música eletrônica. Todo esse folclore se mistura. É o que mais gosto de fazer”.
Com roupagem nova, Ronny e Leo se incorporam ao veio orquestral de Cuba, atentos ao universo americano. O baixista Ronny Armando nasceu em 23 de agosto de 2000, em Havana, e seu maior ídolo não era um artista de jazz, mas um astro pop. “Recebi influência de Michael Jackson. Escutava tanto música nacional como internacional”, ele conta. Ao longo de quatro anos, estudou com a professora Miriam Valdés, irmã do pianista Chucho Valdés, com quem teve aulas de teoria, canto e afinação. Aos 11 anos, com outra professora, estudou percussão e não demorou a partir para o trompete, antes de fixar-se no baixo. Ele frequenta a Escola Nacional de Arte e desde o final de 2018 integra a orquestra El Noro y 1ra Clase
“Tenho referências de quase tudo, porque ouço música de todas as partes. Tenho muito a ver com a música brasileira. Gosto muito da Bossa Nova desde pequeno e algum dia pretendo tocar no Brasil. Cuba tem influência de todo o mundo, inclusive da música espanhola. A música cubana é como uma esponja”, afirma Ronny Bass (nome artístico), fã do brasileiro Gilberto Gil.
Nascido em 20 de março de 1995, o clarinetista Leo Castillo Cárdenas tem na árvore familiar um avô trovador e um bisavô compositor, Hermenegildo Cárdenas, sonero e garachero, símbolo da música tradicional cubana. “Comecei a estudar piano mais ou menos aos 10 anos. E tentei ingressar na Escola Nacional de Arte, mas, por questões minhas, não pude continuar. Segui estudando sozinho piano, harmonia e algumas outras disciplinas da música. Depois, me preparei como clarinetista, fiz uma prova e ingressei na Escola Nacional de Concerto, onde fiquei três anos. Paralelamente, tive um aprendizado informal”.
O instrumentista pegou um rumo diferente dos ancestrais e se fascinou pelo jazz, estudando também o saxofone. “Tenho me dedicado todos esses anos a compor para música clássica e para orquestra sinfônica, para solistas de piano, para instrumentos. Sempre rompendo um pouco os esquemas do jazz, querendo levá-lo a uma expressão mais conceitual, um pouco mais fria. Escutei bastante Coltrane e Miles Davis”, conta Leo, que sonha em fazer trilhas para cinema e parece contido ao medir a extensão da cena cubana de jazz. “Há um movimento muito forte, mas não muito grande. Há uma porcentagem da população que gosta, porque tem mais cultura, por assim dizer. Mas isso se concentra nos músicos, nas escolas, nos conservatórios, onde sempre há um movimento de jazz muito forte. Mas o jazz que está trancado nesse padrão acadêmico”.
Junto com amigos, ele criou a Logos Orquestra para expressar inquietações sobre a transformação social de Cuba. “Há dois anos, estivemos aqui no Prado, em frente ao Museu da Revolução. Em plena tarde de Havana, as pessoas passavam. Começamos a improvisar, sem nenhum ensaio prévio, sobre o que sentíamos, o que estava se passando no momento. Muitas pessoas aceitaram, mas não entenderam. As pessoas queriam dançar, para se desligar um pouco dessa mudança profunda, densa e difícil que está acontecendo. Na época, muitos dos que se sentaram eram pessoas mais conscientes, mais cultas, mas a maioria das pessoas prefere escutar as melodias já conhecidas. O reggaeton, por exemplo”, ele relata.
Alma aglutinadora, Antonio Milanés identifica um contraste geracional inevitável, e o assume como projeto. “É um momento histórico de mudanças e creio que isso se reflete muito na arte. Tanto pelas pessoas que pedem mudança em sua arte como pelas que estão lutando por essa mudança”, opina Antonio. “É um momento em que essas gerações novas estão um pouco como que empurrando as velhas. Estamos controlando o mundo artístico de Havana. Isso sempre vai provocar pequenos choques entre esses dois mundos, mas ao mesmo tempo é bom porque as gerações mais velhas às vezes subestimam um pouco as mais jovens”.
Não deixa de lhe ocorrer a circunstância de ser um jovem cubano, oriundo de uma família musical centrada na canção em espanhol, que, sem aferrar-se a paixões nacionalistas, decide aproximar-se do hip hop americano e compor numa língua estrangeira. “Eu mesmo sou um garoto de Havana que canta em inglês. Que faz rap em inglês. Isso nunca havia sido visto nesta cidade. Eu me considero parte desta onda de mudança. Há algo diferente. Muitas pessoas querem fazer algo diferente. Eu quero uma revolução na música desse país. Como fez Benny em seu tempo. Quero ter uma impacto forte na sociedade”, anima-se Antonio.
Ronny reflete alguns segundos antes de avaliar as limitações materiais dos artistas no país: “Penso que está um pouco nublado porque vamos melhorando pouco a pouco com os recursos que temos. Já fizemos maravilhas. Temos ideias e força, mas não temos recursos materiais. Temos a força de seguir adiante do músico latino”.
Em sentido contrário, Rolando vê um caminho independente para a música, à margem da política. “Neste momento, o mundo inteiro está abrindo portas pra Cuba. E Cuba ao mundo inteiro. Os músicos cubanos aproveitam isso para trazer informações. Há muitas mudanças. Mas a música vai pra outro lugar, vai por outro caminho, sobretudo por esse intercâmbio cultural, que não tem nada a ver com o que vai na sociedade. É verdade que a arte e a música são reflexos da sociedade. Estou aberto a essa mistura porque Cuba é uma mistura de várias culturas”.
O reggaeton, gênero musical fortemente sexualizado, espraiou-se pelo Caribe e ganhou força em Cuba, sem conquistar o respeito de artistas veteranos. A popularidade do reggaeton, acredita Leo Castillo, cresce como sintoma de um sentimento maior de incerteza: “É a maneira de digerir essa mudança, de se desconectar e ir ao sexo, à violência, a tudo isso que se canta no reggaeton como se fosse uma rebeldia social. Isso é o que acontece”.
Depois da despedida, os quatro amigos voltaram à sacada, cuja vista abria-se para telhados e varandas de outros prédios, alguns deles arruinados, naquela hora expostos à luz fria do céu encardido, com pequenas aberturas azuis. Eles sorriam e mudavam de assunto.