Mal Insuperável
Em “Génesis 6, 6–7”, Angélica Liddell se apropria da ira de Deus contra sua criação para decretar a falência do homem
Por Gabriela Mellão
A autora, encenadora e performer espanhola se inspira na passagem do Velho Testamento em que o Senhor brada contra sua própria invenção: “… Destruirei o homem que criei de sobre a face da terra, desde o homem até o animal, até o réptil, e até a ave dos céus; porque me arrependo de os haver feito”.
Génesis 6, 6–7 é a terceira parte da Trilogia do Infinito, composta também por Esta Breve Tragedia De La Carne e Qué Haré Yo Con Esta Espada? — esta última, apresentada no Festival Mirada e no Sesc Pinheiros em 2016. Na obra, Liddell evoca o final dos tempos seguindo sua busca por um teatro extremado, que combina como nenhum outro de sua época erudição com provocação, sagrado com profano, escatologia com beleza. “Não há salvação possível. Estamos condenados”. “Nós esgotamos Deus. Deus está cansado de suportar tantas pessoas miseráveis”, diz ela à Bravo! Confira a entrevista na íntegra.
Génesis 6, 6–7 evoca a passagem do Velho Testamento na qual Deus se arrepende de sua criação e decide destruí-la. O que há de errado com a humanidade na sua opinião?
A ruindade é tão antiga quanto o primeiro homem. É um mal insuperável. Há um texto precioso de Krasznahorkai que inspira o filme O Cavalo de Turim, do Béla Tarr, no qual o fim do mundo é explicado. Nós esgotamos Deus. Deus está cansado de suportar tantas pessoas miseráveis. Assim tem sido desde o princípio. Engolimos o mundo e ficamos sozinhos. Os que mais merecem castigos são os ignorantes que aparecem na Divina Comédia, de Dante. Nem frios nem quentes, os indiferentes.
Você vislumbra algum tipo de salvação para nós?
Não há salvação possível. Estamos condenados. Retornar ao paraíso é impossível. “Não podemos mais ser homens nus, apenas desnudados”, explica Didi Huberman. O ser humano sempre teve uma predileção pela queda. Ninguém se sente nostálgico do paraíso, de modo que encontramos nossa força na condenação. O sacrifício continua a nos permitir a continuidade da vida, como diz Bataille. Não há salvação, apenas sacrifício. E o projeto de salvação fracassa mais uma vez.
Na sua opinião, o amor pode curar ou causa apenas destruição?
Amor é violência. O amor é o veículo da tragédia, pensemos em Medeia. O amor nos coloca em contato com a loucura, com aquilo que não se pode atingir através da razão, com emoções reais, com instintos. O amor é o que está mais próximo de Deus. A cura do amor está nas feridas mais profundas. Essa é sua beleza.
Já que seu trabalho tem sempre um ponto de partida autobiográfico, como sua vida se relaciona ao espetáculo Génesis 6, 6–7 e o restante da Trilogia do Infinito?
Chego à Trilogia do Infinito por decepção. É por um cansaço da vida que chego até aquele versículo do livro de Gênesis, trilhando um caminho que vai do tédio à dor e da dor ao tédio. Chego a Génesis 6 , 6–7 através do vazio, do deserto, da solidão.
Não é fácil aventar leituras e definições ao seu teatro, ainda inominado. Arrisco a dizer que você faz uma leitura contemporânea da combinação da visão de mundo niilista da arte beckettiana com o teatro ritualístico de Artaud. Como isto ressoa em você?
Sinto angústia diante do vácuo, algo que me provoca empatia tanto com Beckett como com Artaud. Artaud gradualmente se tornou um companheiro de viagem, um irmão, alguém para amar, uma referência. Talvez eu tente fazer o que não posso, já que Artaud não é uma escola. Não se pode trabalhar como Artaud, é preciso ser Artaud. Beckett é aquele gênio que criou o vazio com palavras e chegou a uma síntese formal tão radical que hoje ninguém se atreveria a enfrentar.
Como você definiria seu teatro inominável?
Não me sinto capaz de uma definição, mas posso dizer que o que me move a criar é o medo.
Excesso e extremo são palavras-chave em sua arte. De que forma você busca atingir o excesso e o extremo em seu teatro?
Há um momento em que o excesso conduz o corpo e o espírito à verdade. Busco este instante em que corpo e alma deixam de mentir. Isso não é incompatível com uma construção absolutamente disciplinada.
Escrever é um processo solitário, em oposição ao ato de dirigir uma peça de teatro. Em que lugar você se sente mais confortável?
Escrevendo, sempre escrevendo. Quando estou diante do palco, me comporto como um pintor na frente de uma tela. Na verdade, minha maior influência como encenadora é a pintura.
Como foi o processo de criação de Génesis 6, 6–7?
A peça passou por diferentes fases. Eu sabia que deveria alcançar a escuridão. Também tinha claro para mim que deveria expressar minha tristeza pela ausência de fé. Foi definitivo no processo uma viagem que fiz para Jerusalém. Entrar em contato com a cultura hebraica me ajudou a moldar e abordar os dois grandes problemas presentes no texto bíblico: a palavra associada à descendência e o sacrifício encarnado na figura de Isaac, esse paradoxo sem solução.
Explique seu interesse pelo transe na atuação?
O ator é o fio de ligação que existe entre o terrestre e o divino. Antropologicamente o transe, que quase sempre surge de um trabalho físico muito poderoso, coloca os homens em contato com os deuses. O transe força o ator a colocar seu corpo na altura do sofrimento humano.
Génesis, como Què Harei Yo Con Esta Espada? e Eu Não sou Bonita, faz uso de animais no palco. Pode explicar esta predileção?
Trabalho com tudo aquilo que possa me ajudar a revelar algo sobre a alma humana.
O porco morto presente em Génesis serve a qual simbologia?
O porco é o animal impuro nas escrituras sagradas. É também o portador dos demônios no Novo Testamento. Em 2001 Odisseia no Espaço, o primeiro ser vivo morto por pré-humanos é um porco. O porco é uma heresia e contribui para a complexidade simbólica da peça.
O teatro é sua salvação?
Sim. Absolutamente. O teatro é meu asilo insano e minha prisão. E é por isso que me salva.
Serviço:
Onde: Sesc Pinheiros (Rua Paes Leme, 195, tel. 3095–9400).
Quando: quarta e quinta, 20/09 e 21/09 as 20h.
Quanto: De R$ 12 a R$ 40.
Recomendação etária: 16 anos