Manifesto da destruição
O encenador polonês Krystian Lupa declara a morte da arte e dos artistas em “Árvores Abatidas”, obra-prima da MITsp
Por Gabriela Mellão
Destaque da quinta edição da MITsp (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo), Árvores Abatidas, do polonês Krystian Lupa, é a um só tempo obra de arte e manifesto artístico. Tal qual André Breton e sua ode ao surrealismo, inicialmente intitulada Por uma Arte Revolucionária Independente — um texto em que Breton expressa literariamente seu descontentamento com os rumos da arte utilitária, moldada, à época, pelo fascismo e o stalinismo. Como o escritor francês, Lupa transforma a adaptação teatral do romance homônimo do autor austríaco Thomas Bernhard em um documento de digitais tão revolucionárias quanto artísticas.
Na trilha de Breton, Lupa busca dissociar teatro e política, libertar a arte de funções servis, denunciar amoralidades, fraquezas e comodismos de seu meio. Mesmo considerado um dos maiores encenadores europeus vivos, Lupa, hoje com 74 anos, sofre para se manter em atividade, driblando obstáculos financeiros e intervenções do Estado. O diretor já sofreu retaliações do governo no passado, na Polônia comunista, e agora enfrenta a onda progressista que invade seu país.
Afeito a transposições literárias de textos fundantes da modernidade, como O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil, e Perturbação e Praça dos Heróis, de Thomas Bernhard, o diretor revisita novamente o autor austríaco para compor o que parece ser seu testamento teatral. Em Árvores Abatidas, declara de óbito da arte. Os artistas estão mortos, com raras exceções, como ele próprio. Na montagem, além de autor, Thomas Bernhard é narrador, personagem e alter ego do encenador.
Bernhard se sobressai em cena como um ser pensante em extinção em um jantar entre artistas em homenagem a um suposto grande ator do Teatro Nacional da Polônia. O tédio que acompanha o marasmo intelectual e a miséria criativa da classe artística domina o primeiro ato. Um a um, os convidados adentram a casa da anfitriã, onde protagonizam ações destituídas de desejo, que beiram a involuntariedade, como fumar e beber.
Eventualmente também conversam, preenchendo o vazio. Avolumam a falta de curiosidade e substância intelectual da classe enquanto aguardam o homenageado — alguém que pode, quem sabe, elevar a baixeza existencial em que se encontram. Não que tenham consciência da proximidade do abismo. Distraem-se com eventualidades com que esbarram pelo caminho. Na noite em questão, divagam sobre o suicídio de uma atriz, atingindo a proeza de esvaziarem até mesmo um tema como a morte, géleia real para elucubrações de todas as ordens.
Vanguarda do atraso
Bernhard é um corpo quente neste cemitério criativo. Seu descolamento é inclusive físico. Ele ocupa uma cadeira à margem do cenário enquanto os mortos-vivos encontram-se encarcerados numa sala envidraçada, enfeitando a vitrine de um mundo em que o ser humano é produto comercializável.
O patético invade a cena no segundo ato, completando o retrato dos artistas. O homenageado, enfim, adentra o palco. É escandalosamente medíocre e presunçoso, o que deprecia ainda mais seus pares. A classe artística, conclui o público, vive situação ainda mais precária do que a retratada no primeiro ato.
Qual o sentido da arte? Qual deveria ser sua função? O que move um artista? O que deveria mobilizá-lo? Para onde caminha a humanidade se criadores, espécie de farol da sociedade, são insossos, oportunistas e egocêntricos?
As questões pairam, sem respostas, sobre a cena, enquanto Thomas/Lupa ataca a interferência do Estado e a prostituição de seus iguais. Segundo diz, “os artistas passam metade da vida pensando que são a vanguarda da humanidade, e, como vanguarda, detêm uma autoridade misteriosa sobre o mundo, para depois, na segunda metade da vida, por um punhado de balinhas, esquecer desse poder e aceitar toda espécie de submissão das mãos dos mais reles e idiotas”. Acredita que ética elementar da juventude se esvai na maturidade dando lugar à ânsia por conforto e segurança. “O caminho de nossos artistas é um caminho tortuoso e vil de oportunismo estatal, pavimentado de prêmios e estipêndios, e que termina no campo de honra do cemitério”, afirma em cena.
Nada parece ecoar de vida nesta humanidade coisificada, regida por economizadores de espírito. Eis que, então, a anfitriã oferece aos convidados, depois do vinho e da paca, Bolero, de Ravel. A música toca do início ao fim. Suspende o tempo por cerca de 10 minutos nos quais — o público testemunha na própria pele — , a arte infiltra espaços vazios, acelera pulsações, restabelece possibilidades.
Os artistas estão mortos na visão de Lupa, mas nem tudo está perdido. Ainda restam boleros. E plateias. “A plateia ainda é bela”, confessa o protagonista em cena, olhos nos olhos com os espectadores, despejando neles a responsabilidade da transformação.