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“Meu humor vem do cotidiano”

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h34 - Publicado em 8 jun 2017, 11h39

Na série de entrevistas com grandes quadrinistas brasileiros, Rafael Spaca fala com Adão Iturrusgarai. “Sou um operário a serviço do humor”

Por Rafael Spaca

Você lançou o livro Momentos Brilhantes da Minha Vida Ridícula, uma espécie de autobiografia. No fundo todos temos uma vida ridícula com efêmeros momentos de glória?

A vida é assim mesmo. Se fosse brilho o tempo inteiro, não teria graça. Ou, como costumam dizer: “O que é bom, dura pouco”.

Desenhar é um momento brilhante?

Tem dias que é muito brilhante. Mas, quando a coisa não flui, passa de brilhante a sufocante.

Críticas tornam sua vida ridícula?

Muitos artistas estão mentindo quando dizem que não se importam com críticas. Eu já encanei mais com esse negócio. Mas quando a crítica é bem tecida, a gente torce o nariz.

Você teve algum incentivo da sua família para desenhar ou foi uma teimosia sua?

Sim. Teve incentivo e bastante teimosia. Minha mãe era diretora de faculdade de artes plásticas. Passei minha infância entre telas, pincéis, cheiro de óleo e terebintina. Numa época da minha infância ganhava uns trocados posando para as estudantes. Com roupa, só para esclarecer.

Como foi desenvolvendo seu traço ao longo dos anos?

O traço nunca para de se desenvolver. Você vai lendo e vendo outros autores e vai pegando as influências. De vez em quando você entra em uma onda errada. Aí tem que dar marcha a ré e pegar outro caminho. Mas faz parte.

Você fez Publicidade e Propaganda na PUC do Rio Grande do Sul e, mais tarde, Artes Plásticas, que você não concluiu. O que estes cursos te fizeram aprender?

As amizades. Meus colegas foram as coisas mais importantes da época da faculdade. Saí do interior do Rio Grande do Sul e fui morar em Porto Alegre. Era um desafio sublime. Tive que deixar de ser um moleque de um dia para o outro. E assim foi.

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Recomenda a graduação para quem está começando, ou cada caso é um caso?

Cada caso é um caso. Mas é legal estudar, ler livros, ver filmes. E tem alguns professores que marcam sua vida. Geralmente são os mais loucos.

Angeli e Mauricio de Sousa, entre os cartunistas nacionais, fizeram a sua cabeça e influenciaram seu destino como profissional. Por que eles tiveram tanta importância para você?

Mauricio de Sousa me influenciou quando eu era moleque. Bem como o Walt Disney. Mais tarde veio o Angeli. Quando vi o primeiro gibi da Rê Bordosa quase tive um troço. Um caminho se abriu e, ao mesmo tempo, perdi o chão. Porque era exatamente aquilo o que eu queria fazer. E já tinha alguém fazendo.

Imagina que hoje você pode ter essa importância para profissionais que estão surgindo? É uma responsabilidade?

Não acho uma responsabilidade. Nem acredito muito quando dizem que eu sou uma influência. Uma vez me chamaram para publicar em um fanzine, uns garotos, e eles me imploraram: “Adão, por favor, aceita, para nós você é uma referência”. Depois pensei: “Referência=velho”, hehehe.

Sua esposa, a Laura, começou a desenhar por sua causa. Não foi isso?

Ela já desenhava antes. Mas a sequência das tiras veio por minha causa. Nossa convivência. Eu acho que ela desenha bem. Mas ela não gosta. Por isso a gente parou com a parceria.

Robert Crumb, em parceria com sua mulher, Aline Kominsky, produziu quadrinhos autobiográficos que foram publicados na revista New Yorker. Você e Laura pretendem fazer algo do tipo?

De vez em quando a gente conversa sobre uma volta. Espontaneamente surgem umas piadas no dia-a-dia. Mas o negócio não foi mais pra frente. Então não temos nenhum projeto sobre isso.

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Ao lado de Laerte e Glauco, Angeli formou o trio Los 3 Amigos, ao qual você foi incorporado como quarto elemento. O que isso significou para você? Foi o Laerte quem te convidou para entrar?

Foi o Laerte que me convidou. Mas acho que isso foi conversado entre todos eles. Acho que eles já estavam um pouco cansados dos personagens. Aí eu entrei nessa fase. O mais legal disso tudo é que a gente virou amigo mesmo. De sair juntos e tudo o mais. Isso é o mais bacana para mim. É claro que aprendi muito sobre quadrinhos de humor trabalhando com eles.

Uma das características mais interessantes de seu trabalho é o fato de não se levar muito a sério. É difícil fazer isso? É preciso lutar contra a vaidade?

A vida é importante demais para ser levada a sério. Li essa frase hoje mesmo em algum lugar. Rir é o que nos resta, mesmo quando estamos sofrendo. E não tem graça rir só dos outros. Tem que rir de si mesmo.

Você usa palavrões nas suas tiras. O palavrão está incorporado ao vocabulário nacional, mas há um certo pudor em publicar e até mesmo ler certas palavras. Houve alguma resistência neste sentido?

Por sorte a Folha de São Paulo foi o primeiro jornal a aceitar palavrões. Já reclamaram, geralmente quando é algo forçado. Quando a piada é boa e o palavrão procede, já é.

Você sempre teve liberdade em seu trabalho ou em algum momento foi censurado?

Sempre tive liberdade. Mas já tive que adaptar uma ou outra coisa. Mas eu sempre soube lidar com os meios, e tenho um certo jogo de cintura, acho. Não vou desenhar um frasco de perfume pra Natura com um personagem de pau duro, hehehe.

Atualmente você mora na Argentina. O fato de estar distante, mas publicando seu trabalho nos jornais daqui, te beneficia ou prejudica?

Até agora tenho me saído bem. A internet aproximou o mundo, os países. E eu estou a duas horas de vôo do Brasil. Então me sinto tranquilo. É como se eu estivesse no Brasil.

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Como faz para acompanhar as notícias que envolvem o país, ou prefere não saber delas?

Através da internet. Vejo o mesmo que todo mundo vê. Ao mesmo tempo. Incrível, não? Algumas notícias prefiro nem saber. Não dá pra acompanhar tanta enxurrada de merda.

Essa distância permite uma análise mais profunda do que é o Brasil? Se sim, o que é o Brasil?

O Brasil é selvagem. O Brasil é o país do futuro. Só que esse futuro nunca chega. Já perdemos várias oportunidades. A classe política do Brasil não está interessada em fazer bem o seu trabalho. Na Argentina tampouco. Uma pena para a América Latina.

A Argentina é um país politizado e com altos índices de leitura. Os cartunistas daí têm uma pegada mais política do que os nossos aqui?

Um pouco. Eles têm uma tradição de quadrinhos muito mais avançada do que a nossa. Pelo menos tinham. Nossa pegada é mais selvagem. Nossa nova geração está matando a pau. Mas a Argentina já foi bem melhor.. É um país menos selvagem do que o Brasil. Mas eles ainda chegam lá, rerere.

É possível ser um grande cartunista se não for um leitor voraz?

Lembro de uma entrevista do Henfil que marcou minha adolescência. Ele dizia que o cartunista não tem só que aprender a desenhar. Tem que ler muito. E nessa época eu li muito. Depois esqueci quase tudo.

Hoje, nas ruas, as pessoas andam olhando para o celular. Chegam a trombar umas nas outras, ficam presas na tela pequena impossibilitando o contato exterior, focadas no seu universo particular. Qual a importância de sair na rua e olhar as pessoas em sua volta?

Estamos vivendo tempos diferentes. Sempre será assim. Daqui a dez anos será diferente. Não dá pra prever. A tecnologia deu muitas facilidades. De uma já falamos: possibilitou que eu more em outro país e trabalhe para outro. Mas eu me sinto feliz de ter vivido em uma época em que as pessoas se encontravam nas ruas e nos bares. Eu nem tinha telefone fixo, veja só… Sim, eu acho que na minha profissão tem de ser curioso, xereta, voyeur. Tem de observar o outro, espiar o que ele está fazendo. Ver suas expressões, movimentos, feições.

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La Vie en Rose, que trata com deboche de situações do cotidiano, vem destas observações ao seu redor?

La Vie en Rose é a prova de que muito do meu humor é humor de texto. Se você pinçar a maioria das tiras dessa série, vai ver que elas funcionam sem o desenho. Por isso eu estou preparando um livro com frases e contos. Não sei quando estará pronto. Entre 3 e 5 anos, por aí. Acho que todo o meu humor é observação do cotidiano. Não só em La Vie en Rose.

Homem-Legenda, personagem que sempre aparece dizendo aquilo que as pessoas realmente querem dizer quando dizem algo totalmente diferente, também vem destas observações?

Também. O Homem-Legenda não é um personagem de ficção. Dá pra identificar ele o tempo inteiro. Acho que é mais onipresente que Deus.

Os jornais da Argentina dão mais espaço para cartunistas do que os jornais no Brasil?

Acho que é igual. Não vejo diferença.

Você desenha para publicações argentinas. Como conseguiu êxito no mercado aí?

Eu publiquei algumas vezes na revista Fierro. Uma icônica revista de quadrinhos daqui. Mas parece que ela acabou. Confesso que ainda não tive tempo de levar meu portfólio para jornais ou editoras. Por falta de tempo mesmo. Trabalho bastante para o Brasil.

Teve que fazer alguma adaptação para deixar seu trabalho ao gosto argentino?

Para publicar na Fierro escolhi coisas que achei que fossem mais “universais”. Tem muita coisa minha que dá pra publicar no Brasil, Argentina, Europa e EUA.

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Já aposentou o nanquim, lápis, borracha, aquarela, ou mesmo com a tecnologia não abre mão deste método de produção?

Há uns anos atrás voltei a pintar com aquarela, abandonando esse processo de Photoshop. Confesso que não me arrependo. A tecnologia é ótima para ajustes e envio.

Em Porto Alegre, no início dos anos 1990, você editou com Gilmar Rodrigues a revista DunDum. Por que ela gerava tanta polêmica?

Porque ela tinha apoio da Prefeitura de Porto Alegre. Na época era o governo do Olívio Dutra, do PT. As pessoas queriam uma satisfação: “Por que uma órgão público patrocina uma revista ‘pornográfica’”? Hehehe. Na realidade foi um apoio pequeno. Ganhamos o papel para imprimir a revista. O objetivo era político mesmo. Atacar o PT.

Por que a Big Bang Bang teve somente quatro números lançados?

Porque as vendas não estavam sendo muito boas. E a edição e impressão de uma revista dá muito trabalho e sai muito caro.

Aline, sua mais conhecida personagem, surgiu quando você morava em São Paulo. Ela é resultado da sua vida na cidade ou é resultado de tudo que já tinha visto antes?

É resultado de tudo. São Paulo, Porto Alegre, Paris, Cachoeira do Sul. Foi por acaso que tive a ideia em São Paulo. Mas ela poderia ser paulistana, sem problemas. Eu estava apaixonado pela cidade naquele momento. Era 1994, por aí.

Aline virou série com duas temporadas na TV Globo, em 2011. Você gostou da adaptação?

Gostei de algumas coisas. Acho que faltou um pouco de fidelidade. Mas achei uma ótima iniciativa fazer uma série com esse tema: triângulo amoroso entre uma mulher e dois homens. Foi uma ousadia. Dizem que por isso que foi abortada.

Além de ter ganho muito dinheiro com a adaptação você deve ter ficado muito orgulhoso de ter um trabalho, uma criação sua, veiculada na maior emissora do país. Foi difícil de “aturar” nesta época ou você ficou na boa?

Não ganhei muito dinheiro, infelizmente. Foi uma negociação muito difícil. Para piorar, na época eu morava longe, na Patagônia. E mesmo tendo uma advogada para negociar no Brasil, era muito complicado. Confesso que quase não assinei o contrato. Fiquei apreensivo no início antes de ver o resultado. Mas depois relaxei. É uma adaptação. Não é mais um trabalho só seu. Existem outros projetos rolando em audiovisual com a Aline. Acredito que nesses eu vou ter mais poder de decisão. E serão mais fieis aos meus quadrinhos.

Você começou a publicar em 1984 no Jornal do Povo, em Cachoeira do Sul. Era época que você estava na faculdade. Tem ainda estes desenhos? Pretende lançar uma antologia com trabalhos desta época? O que desenhava naqueles tempos?

Eram desenhos muito ruins, hehehe. Tenho vergonha. Sobraram poucos. Lembro de algumas piadas, mas tenho vergonha de comentar: “um peixinho redondo que vivia em um aquário quadrado e um peixinho quadrado que vivia em um aquário redondo. Eles eram infelizes porque não cabiam no seu mundo. Aí ficaram felizes ao trocar de aquário…” Basta, rerere.

TV Colosso, programa infantil exibido na TV Globo, tinha você, Laerte, Angeli, Glauco e muitos outros. Não é comum ter tanto cartunista na produção de um programa. Como foi trabalhar com todos eles?

Coincidiu com minha mudança pra São Paulo. Foram lindos momentos. E era um salário fixo, o que me permitiu um ótimo começo de vida na cidade. Aluguei um sobrado na Vila Madalena, veja só. Se bem que os aluguéis eram bem baratos na época. Foi aí que comecei a ter mais contato com Laerte, Glauco, Fernando Gonsales, Newton Foot. Não tenho muito o que reclamar dessa época.

Quais as principais recordações que possui da TV Colosso? Escrever para criança requer muito mais cuidado?

No início foi muito difícil. Nunca tinha feito aquele tipo de trabalho. Depois de dois meses peguei o jeito e o trabalho passou a fluir gostoso. A gente não tinha muito cuidado pra escrever pra crianças. Isso que era o mais legal.

Depois você foi redator do humorístico Casseta & Planeta, também na TV Globo, um humor que combina mais com o seu. Ou estou enganado?

Sim. Mas durou pouco tempo. Não consegui me adaptar. O fato de morar em São Paulo e o resto da redação ser no Rio de Janeiro complicava as coisas.

A criação da dupla de cowboys gays Rocky & Hudson foi para provocar os gaúchos? Você gosta de comprar briga?

Sim. No início foi para provocar os gaúchos frequentadores dos CTGs (Centro de Tradições Gaúchas). Mas depois resolvi fazer algo mais universal. O caubói todo mundo entende, né?

Os haters costumam falar com você?

Nem tanto. Mas já tive alguns encontros. Mas o “block” funciona bem nesses casos.

Publicar diariamente, como você faz na Folha de S.Paulo, é um processo industrial. Você se considera um operário ou um artista?

Me considero quadrinista, artista, humorista. Jornalista às vezes. Um operário a serviço do humor, hehehe.

Tem dia que você não tem nada a dizer?

Sim. Acontece. Para isso existe uma gaveta de ideias.

Qual é o seu maior medo: se tornar repetitivo ou não ter mais inspiração?

As duas coisas. Juntas.

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