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Não afrontem nossos direitos!

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h25 - Publicado em 2 out 2017, 14h01

A arte contemporânea não se presta ao reducionismo das polarizações. Precisamos de pontes para o diálogo, não de flertes com o autoritarismo arcaico

O Urinol de Marcel Duchamp, 1917

Por Helena Bagnoli e Guilherme Werneck

No último sábado, o prefeito de São Paulo, João Dória, publicou um vídeo em sua página do Facebook comentando as duas polêmicas recentes no campo das artes, insufladas por grupos conservadores: o fechamento da exposição Queermuseu, no Santander Cultural, em Porto Alegre, e a performance La Bête, do artista Wagner Schwartz, no Museu de Arte Moderna de São Paulo.

O prefeito, que segue em mal-disfarçada campanha eleitoral, replica a voz da minoria radical que protestou em frente ao MAM-SP no sábado ao dizer, paternalista, que tudo tem limite e que a performance de Schwartz na abertura do Panorama da Arte Brasileira trazia uma “cena libidinosa, que estimula uma relação artificial, condenada, e absolutamente imprópria seja colocada para o público.”

Para além de prestar um desserviço à sociedade ao endossar a leitura rasa da performance feita por linchadores profissionais em redes sociais, Dória se coloca na posição de defender o obscurantismo e de pôr em xeque o direito de uma obra ser apresentada a público, goste-se dela ou não.

Arte não tem a ver com gosto. É uma manifestação que trabalha no universo do simbólico e do multidimensional. A arte sempre buscou uma relação natural com o corpo, tentando diminuir o pudor e discutir a moral. A lista de performances em que o artista nu é o protagonista é longa, exitosa e, digamos, muito antiga. Sem contar que a maioria delas pressupõe uma interação física, corporal, que revele outros ângulos da humanidade de cada um. E nem sempre elas aconteceram em museu. Em 2015 a artista suíça Milo Moiré chegava, parava, tirava a roupa e se oferecia para fazer selfies com quem assim quisesse em pontos turísticos de Düsseldorf, Paris, Basileia etc, e registrava tudo com sua câmera, montada num tripé. O resultado desse projeto, Naked Selfies, rendeu vários estudos e reflexões. Esse é o papel da performance, esse é o papel do artista.

Estamos neste momento discutindo o que é arte, o que é pornografia, o que é limite, envolvendo Ministério Público e autoridades políticas. Isso é muito sério, porque achávamos que essa discussão tinha deixado de ter respaldo no século 19. Mais sério, porém, é ver reações raivosas e desprovidas de lógica, conhecimento ou sensibilidade diante de conteúdos artísticos plurais, e a tentativa diária de repressão à liberdade. Estamos assistindo a discursos muito perigosos para a continuidade da democracia do país, conquistada a duras penas.

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Ter que engolir o cancelamento da exposição Queermuseu pelo Santander Cultural após pressão de grupos radicais foi o início a uma perigosa temporada de caça às bruxas, que pode nos custar muito caro.

O despreparo de políticos e do Judiciário para lidar com a arte contemporânea é ultrajante. Um exemplo do mês passado foi a liminar concedida por um juiz para impedir a apresentação da peça Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, protagonizado por uma atriz trans. Outro foi a retirada, pela Polícia Civil, da obra Pedofilia, da artista Alessandra Cunha, do Museu de Arte Contemporânea de Campo Grande, acusada de fazer apologia da pedofilia. A obra foi retirada após pedido de deputados do Mato Grosso do Sul e, passada a patuscada, devolvida ao museu, pois obviamente crítica não pode ser confundida com apologia.

O quadro é bastante preocupante para as artes e para a liberdade de expressão no país. A arte, em qualquer de suas manifestações, existe para romper fronteiras, para questionar nossas certezas, para transformar subjetividades a partir de um entendimento que não é apenas racional. Tentar proibir ou censurar a expressão artística, a partir de julgamentos morais, é absolutamente obsceno.

Por esses motivos, a Bravo! apoia todos os artistas, curadores, atores e instituições que vêm sofrendo linchamentos públicos no último mês no Brasil, e reprova com veemência a atuação de políticos que buscam, a partir dessas polêmicas deslocadas de lugar e de sentido, destilar intolerância, incitar o ódio e promover a ignorância. Precisamos de pontes de diálogo, não de flertes com o autoritarismo arcaico.

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