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“Não faço desenhos, conto histórias”

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h36 - Publicado em 11 Maio 2017, 10h56

Na série de entrevistas com quadrinistas brasileiros, Rafael Spaca bate um papo com Orlandeli

Por Rafael Spaca

Como surgiu seu interesse por desenho?

Desde que me conheço por gente gosto de desenhos e quadrinhos. Não me lembro de uma fase da minha vida que não ficava eufórico só pela possibilidade de entrar em uma banca e ver as novidades.

Quando descobriu que sua paixão por desenho poderia ser a sua profissão?

A relação “virar uma profissão” nunca foi o principal. Queria mesmo era fazer quadrinhos, contar minhas próprias histórias… Claro que tinha lá um desejo de poder viver apenas disso, mas o foco mesmo era produzir, pois se fosse pensar comercialmente no começo talvez tivesse desistido. Fiquei um bom tempo trabalhando com publicidade e, em paralelo, produzindo quadrinhos e ilustrações. Com o tempo a demanda pelas ilustrações e quadrinhos aumentou bastante, até que abandonei a publicidade e me dediquei apenas a esse universo.

Você nasceu na pequena cidade de Bebedouro, interior de São Paulo. Lá tem biblioteca, gibiteca? Como você se virava para consumir cultura?

Saí de Bebedouro muito cedo, tinha uns seis anos de idade. Lembro bem que já gostava de quadrinhos, pois uma das minhas principais lembranças da época era uma banca do centro em que eu adorava ir quando passeava com a família por lá.

Ainda era uma época pré-internet, e para um cidadão do interior as coisas ficam ainda mais difíceis nessa área, ou não?

Saindo de Bebedouro fui morar em São José do Rio Preto, cidade bem maior, porém com todas as limitações de ficar longe da capital. Não tinha internet, mas lá perto do início dos 90 virou moda os jornais dedicarem uma página semanal para falar de quadrinhos. Ficava esperando, e toda sexta comprava a edição — Jornal da Tarde, acho… mas não tenho certeza. Só para acompanhar as notícias. Quando alguém ia para São Paulo, pedia para trazer algo que não chegava aqui. Mandava cartas para as revistas, mostrava os desenhos… Mas era tudo muito lento, sem ter nem sequer a certeza se aquilo foi realmente lido por alguém. Outra forma de entrar em contato com o mundo era os salões de humor.

E agora, com a internet, não existe mais a “obrigação” de profissionais do desenho se mudarem para grandes centros urbanos para ganhar a vida? Ou isso ainda é imprescindível?

A internet mudou por completo essa relação do profissional de comunicação com o veículo. Não fosse a internet seria praticamente impossível alguém passar a vida toda no interior e conseguir publicar em vários lugares. O contato próximo ajuda, é importante dar as caras, fazer contatos… Mas não chega a ser imprescindível. Dá para ser um profissional muito ativo sem precisar se mudar para uma capital.

Sua carreira começa, de fato, em 1995. Você sempre tenta explorar tanto os aspectos artísticos como narrativos de cada história ou tira. Isso é influência de alguém ou vem de você mesmo?

Na verdade a primeira tira publicada mesmo foi em 1994. Na época eu estava absolutamente fascinado pelos quadrinhos nacionais, por todo aquele movimento que foi a revista Chiclete com Banana e tudo que veio junto com ela. Naquela época a gente queria era ser cartunista mesmo. Tira de humor, histórias curtas, cartuns… Coisa rápida e certeira.

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Com o tempo bateu um interesse em explorar mais a narrativa, brincar mais com as possibilidades gráficas. Ter contato com vários tipos de quadrinhos motivou muito isso. Ver páginas do Will Eisner, Frank Miller… Ampliava demais o leque do que poderia ser feito.

Eu tinha um espaço fixo no jornal e achei que seria uma boa oportunidade para começar a testar algumas coisas. Já fazia alguma coisa com o Grump, mas achava o espaço bem limitado, então criei a tira dupla SIC, onde consegui exercitar muito da síntese narrativa e possibilidades gráficas em uma HQ curta. E depois, ainda usando espaço do jornal, criei O Mundo de Yang, meio que uma tira tripla que juntas vira uma grande história.

O que gostava de ler e assistir antes de se profissionalizar? E o que lê e assiste hoje em dia?

Bom, em quadrinhos eu passei por um pouco de tudo. Comecei com Maurício de Sousa, arrisquei Disney, mas o único que gostava era o Peninha. Depois vieram as publicações da editora Circo, que foi onde bateu realmente a vontade de fazer quadrinhos. Na sequência comecei a ler heróis e quadrinhos mais adultos. Foi nessa época que conheci Cavaleiro das Trevas, Elektra Assassina, Watchmen… A revista Animal abriu a mente para um tipo de quadrinho que eu não conhecia. Will Eisner, Ken Parker… Como disse, um repertório bem variado. Hoje raramente leio publicações mensais. Leio histórias fechadas, as graphics novels, com histórias que me despertam interesse pelo tema ou autor que admiro. Gostei de Pílulas Azuis, Três Sombras, Retalhos… Sou fã da narrativa do Christophe Blain.

Sempre gostei de cinema, minha relação é pura diversão mesmo. Curto tanto filmes com uma narrativa “diferente”, tipo Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, como um pipoca cheio de ação. Gosto demais dos diálogos e de algumas sacadas do Tarantino.

Literatura depende muito do momento. Acabo experimentando um pouco de tudo, sem preconceito. Se for para destacar autor acho que um seria o Bukowski, pela poesia meio depressiva, o Kafka, por tornar o surreal palpável e, atualmente, o Mutarelli.

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Você gosta de ser livre ou beber em fontes para compor seu trabalho?

Eu não me espelho em nada muito específico. Me sinto absolutamente à vontade para direcionar cada trabalho sem a intenção de relacioná-lo com outra coisa, inclusive com o que eu mesmo já fiz. As fontes aparecem sim, mas de forma inconsciente, uma bagagem de tudo o que já foi consumido e, fatalmente, acaba refletindo no trabalho.

Qual a importância de Henfil na sua trajetória?

Conhecer o trabalho do Henfil foi fantástico. Seu traço simples, espontâneo e absurdamente expressivo fazia os personagens praticamente saltarem do papel. Era um desenho simples, porém com uma capacidade de comunicação absurda. Junto com o Glauco, foi ele quem me mostrou que um bom desenho para HQ não é aquele que tem mais ou menos detalhes, simples ou acadêmico, mas aquele que se integra ao contexto.

Quando começou a desenvolver a sua técnica? Ela foi realmente moldada durante a sala de aula, nas aulas de português, matemática, física, química, etc.?

Eu não tinha muito o senso de “desenvolver técnica”, falando no sentido acadêmico (coisa de que hoje me arrependo), eu apenas ficava desenhando. Desenhava em qualquer canto que aparecia. Caderno, carteira… Tudo tinha um rabisco. Os livros didáticos eram cheios de cartuns imitando a série “Marginais do Mad”, do Aragonés.

Durante essas aulas você criou personagens interessantes como Jeka Bond, um investigador super violento; Skroton, um mosquito afetado pela radiação do Césio 137 no desastre que aconteceu em Goiânia em 1987; e também tinha uma série de tiras chamada “Ratos, várias histórias protagonizadas pelos roedores”. Você pensa em reeditá-las ou prefere deixá-las no fundo da gaveta?

Nossa, essas são bem antigas. O Gibi do Jeka Bond era um caderno de desenho que passava de mão em mão entre os colegas da escola. Nunca fiz cópia. Skroton e Ratos eu fazia em folhas separadas, finalizava em nanquim, já com intenção de tentar espaço em alguma revista. Ratos eu enviei para a Porrada. Responderam elogiando as sacadas, mas precisava melhorar os desenhos… Aquelas coisas. Impossível reeditar graças a minha absurda falta de apego a originais. Boa parte se perdeu. É algo de que me arrependo, pois seria bacana rever esse trabalho hoje.

Tem mais alguma coisa que desenhou naquele período que merece ser redescoberto?

Que merece, com certeza não rsrsrs. Mas tem uma curiosidade. O Grump, em seus primeiros esboços, foi pensado para ter um bichinho de estimação, uma espécie de ser peludo sem raça definida que podia se transformar em qualquer coisa. Mas nunca chegou a ser publicado.

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Mesmo não sendo um aluno muito atento em sala de aula, você se formou em Publicidade. Em que essa formação de alimenta como desenhista?

Eu era da turma do fundão, nunca fui o melhor da sala, mas fiquei longe de ser o que não queria nada com nada. Entrei em Propaganda porque era o curso que mais se aproximava com a área de arte em minha cidade. Foi ótimo no sentido de me introduzir na área gráfica. Comecei a trabalhar com publicidade montando anúncios, cartazes… Isso me deu uma noção de design que foi fundamental quando comecei a atuar como ilustrador. Fazia a ilustração não pensando apenas na arte, mas na página toda, buscando integração com todos elementos, título, texto.

Quando você publicou Violência Gratuita no jornal Diário da Região foi a chancela definitiva de que estava no caminho certo?

Foi a oportunidade de mostrar meu trabalho para pessoas fora do meu ciclo. Saber como esse trabalho seria recebido por um público maior. A tira fez bastante sucesso, isso me deu bastante confiança para continuar produzindo.

Qual foi a sensação de ter um trabalho publicado no jornal?

Foi uma sensação muito boa. Ser pago para fazer algo que eu adorava fazer, ver uma empresa confiando e acreditando no meu trabalho e o levando aos seus leitores, que logo passariam a ser meus leitores também. Foi sensacional.

Os jornais, atualmente, ainda dão pouco espaço para tirinhas nacionais?

Tira hoje em dia é artigo raro. O espaço diminui cada vez mais, e quando existe o que paga é irrisório.

Como surgiu a ideia para criar o Grump?

Grump surgiu na tira Violência Gratuita. A proposta da tira não era ter personagem fixo, eram histórias soltas. Com o tempo comecei a fazer um baixinho de cabelo espetado para algumas piadas. O desenho era bacana e fui repetindo ele em outras situações. Sem eu perceber ele já era dono da tira. As pessoas perguntavam qual era o nome dele e eu não sabia. Foi o suficiente para decidir batizá-lo de vez. Aliás, no início o nome era Krumb.

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Não acha que o Grump pode ir mais longe do que já foi? Enxerga outros desdobramentos para ele?

Realmente não sei. É um personagem pelo qual tenho grande carinho, mas que tem no DNA a linguagem da tira, que a cada dia perde mais espaço. Recentemente fiz uma edição em homenagem aos vinte anos de publicação e depois saiu uma coletânea pela SesiSP Editora. Talvez programe mais edições, já que são mais de duas décadas de material. Na questão de desdobramentos, por hora não tenho nada em mente.

Muitos amigos certamente pedem para você desenhá-los, de graça. O que fala para estas pessoas que acham que seu trabalho não é tão trabalhoso assim?

Hoje em dia nem pedem tanto, pois sempre falo que quando tiver tempo eu faço, o que nunca acaba acontecendo rsrsrs. Se a pessoa é muito próxima e essa arte tem algum fim, faço até com prazer. Já desenhei amigos em convites de casamento, por exemplo. Aí o desenho acaba sendo o presente que daria ao casal.

Hoje você faz tudo pelo computador? Sente saudades do lápis e da borracha?

Absolutamente, não. Uso uma tablet cintiq, e a forma como isso agiliza minha produção é algo que levo demais em conta. Pois não faço desenhos, faço histórias. O produto final é a página pronta, de preferência impressa no livro ou revista. Gosto de vez em quando de exercitar o desenho livre, finalizando no papel, mas é algo que faço sem fins de publicação.

Seu estúdio é em sua casa? Como funciona a sua metodologia de trabalho?

Costumo deixar as manhãs para quadrinhos. Não faço nenhuma outra coisa pela manhã, apenas quadrinhos. Na parte da tarde faço ilustrações editoriais, charges, respondo e-mails, vejo contratos.

Você ganhou diversos prêmios (Troféu HQMix; Salão de Humor de Paraguaçu Paulista; Prêmio Abril de Jornalismo, na categoria visual infográfica; etc.). O que eles representam para você?

Prêmio é sempre bacana. Uma forma de reconhecimento pelo que foi feito. Mas, mesmo sendo uma disputa, não tem muito disso de “o melhor”. Claro que se ganhou é sinal de que está entre os melhores trabalhos naquela ocasião, mas tenho o pé no chão e sei que é um resultado baseado na opinião de determinado júri. Na maioria das vezes, mudou o júri, muda o premiado. Então é importante, ganhando ou perdendo, manter o pé no chão e continuar fazendo o seu trabalho.

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Prêmio, trabalho, dinheiro ou sucesso?

Pô, se tiver um pouco de tudo acho que seria ótimo. rsrsrs

A rede de lojas Riachuelo plagiou um desenho seu e perdeu a causa. O que você sentiu quando soube do plágio e o que sentiu depois do julgamento?

A primeira coisa que pensei foi como uma rede desse tamanho consegue fazer uma bobagem dessas. Um descaso absurdo com o direito de imagem. Mesmo sabendo que a possibilidade de um processo era real, não davam o direcionamento necessário ao seu quadro “criativo” para não cometer uma lambança dessas. Depois fiquei sabendo que antes de mim teve mais umas duas na mesma situação, mas que ficou por isso mesmo — por isso decidi que entrar com a ação.

O resultado deu o óbvio. Foi até rápido, pois não tinha argumento que se sustentava contra. Senti que cumpri o meu papel como representante da categoria. O caso serviu de exemplo para outras empresas e também para os próprios ilustradores fazerem valer seus direitos.

Com a internet à disposição de boa parte da população o artista não corre um risco constante de ser plagiado?

Sempre. A oferta de imagens é imensa e a tentação é grande. Mas ainda é ilegal. Se quiser usar sem autorização, use, mas saiba que estará correndo o risco de responder a um processo no futuro.

O mercado hoje é mais cruel para os que estão iniciando agora ou era pior na sua época?

Acho que melhorou hoje. Editoras investindo, muita gente começando a publicar fora do país. Nos eventos a gente começa a ver um esboço de um público consumidor de quadrinhos nacionais. Isso é bem legal. Mas sinto que houve uma queda em ilustração editorial e tiras em jornais.

Para o desenhista nacional quem é “pior” enfrentar: Turma da Mônica ou os heróis da Marvel ou DC Comics?

Não vejo pior nesse caso. Eu mesmo, consumi muito dos dois. Cada um tem seu papel e seu público. Mônica é um formador de leitor em potencial. Cria-se o hábito, é natural que aos poucos esses leitores, quando mais velhos, busquem outras leituras. O autor nacional cada vez mais vem aparecendo como uma opção para absorver esse leitor. Pior é enfrentar aquilo que afasta a criança, até mesmo o adulto, do hábito da leitura.

Há luz no final do túnel?

Sempre há. Porém, mais importante que ver a luz, é continuar caminhando pelo túnel. Depois a gente vê o que acontece.

O que há novo?

Acabei de lançar na CCXPTour Arvorada, uma GraphicMSP com uma releitura do Chico Bento, personagem do Maurício de Sousa. Foi uma experiência bem interessante trabalhar com o personagem de outro autor, ainda mais com um personagem tão conhecido e querido. O selo permite uma abordagem mais adulta, porém sem sair das características do personagem.

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