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“Não faço quadrinhos pedagógicos”

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h36 - Publicado em 18 Maio 2017, 12h15
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Na série de entrevistas com grandes quadrinistas brasileiros, Rafael Spaca fala com Cynthia Bonacossa, que trocou a medicina pelos quadrinhos

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Por Rafael Spaca

O que pouca gente sabe é que você é médica, formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Qual é a sua especialização?

Eu me formei em medicina e não fiz uma residência, então não tenho especialidade. Mas se tivesse feito teria sido de patologia.

Por que medicina?

Porque eu gostava de biologia e é uma das faculdades mais difíceis de entrar. Eu precisava provar que conseguiria entrar.

Foi forçada a investir numa carreira “séria” antes de tentar ser cartunista ou achava mesmo que tinha vocação para medicina?

Eu sempre soube que minha carreira seria uma das partes mais importantes da minha vida. Entrei na faculdade querendo ser psiquiatra, pois juntaria biologia e todo o aspecto mais subjetivo de que eu gostava da literatura, cinema e tudo mais. O problema, no final, é que eu não suporto passar o dia inteiro conversando com pessoas, isso me desgasta muito. Isso foi um dos motivos pelos quais passei a me interessar por patologia, era toda a ciência da medicina sem a interação. No último semestre da faculdade passei dois meses fazendo um internato no hospital Mount Sinai em NY. Foi o melhor ambiente para aprender patologia, com todo o material tinindo e poucos alunos, e eu me via seguindo essa carreira. Só que lá eu também comecei a frequentar ainda mais o mundo dos quadrinhos, e a vontade de fazer uma coisa pela qual eu sentia uma verdadeira paixão falou mais alto. E também a vontade de não seguir o caminho seguro que minha família tinha traçado pra mim, eu acho.

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Você é brasileira, mas foi criada em Hong Kong até os oito anos de idade. Explique isso. E por que voltou?

Meu pai trabalhava para a Interbrás e foi transferido pra lá. Quando o Collor fechou a empresa, meu pai criou a sua própria, e ficamos por lá mais alguns anos. Voltamos, pois meus pais queriam voltar para perto do resto da família, do nosso país.

Quando e em que circunstância o desenho entrou na sua vida?

Meu pai sempre desenhou muito bem e me incentivava a desenhar, corrigia perspectivas, ensinava macetes. Daí eu nunca parei de desenhar.

Quais são as referências e seus mestres no desenho?

Nos quadrinhos eu comecei lendo Crumb, ele me fez descobrir a enorme possibilidade dos quadrinhos. Mas meu desenho puxa muito da Marjane Satrapi e Julie Doucet. O Joe Matt é um ídolo nesse estilo autobiografia kamikaze, junto com o Allan Sieber.

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É preciso ler muito para se tornar uma grande cartunista ou só saber desenhar é o suficiente para se tornar um bom cartunista ou chargista?

Existem muito ilustradores maravilhosos que não conseguem fazer quadrinhos, ou fazem quadrinhos lindos mas desinteressantes. Acho que um bom quadrinista precisa ler muito, sim, mas precisa também assistir a muitos filmes, pois é uma narrativa visual. Existem muitos vídeos no Youtube sobre edição e cinema que gosto de assistir, pois me dão ideias para meus quadrinhos também. O desenho, na minha opinião, é uma das últimas partes. É tipo a fotografia do filme. Importante, mas sem uma boa história e ritmo, não vale grande coisa.

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Como você fez para apurar sua técnica no desenho?

Antes de fazer faculdade eu fiz um curso no parque Lage que ensinava muito sobre composição, e tivemos aulas de modelo vivo. Depois disso fui só desenhando, praticando, experimentando e ouvindo dicas de amigos que desenham.

Seu ingresso no desenho e a consequente saída da medicina foi por causa do Allan Sieber, que te convidou para trabalhar no estúdio Toscographics?

Na verdade quando eu terminei a faculdade eu estava desenhando um livro (que nunca saiu) para a sócia do Allan, Denise Garcia, que já vivia na Alemanha. Como eu morava com meus pais e eram tempos extremamente tensos, pois eu não queria seguir a carreira, eu pedi pro Allan se eu poderia ir trabalhar no livro lá no estúdio dele. Eu tinha muito tempo livre, já que tinha de esperar os roteiros da Denise; então, aos poucos, ele foi me dando umas tarefas para “pagar” pelo espaço. Levar uma carta no correio, desenhar um cenário, editar um vídeo. Tudo o que precisava ser feito eu procurava tutoriais no youtube e dava um jeito de fazer. Então ele resolveu começar a ME pagar, e virei funcionária oficial.

No estúdio você faz as artes, roteiros, ilustrações e storyboards. Como é seu dia a dia lá?

Eu hoje em dia não trabalho mais na Tosco. Estou desde julho de 2015 morando em Angoulême, na França, onde vim fazer uma residência artística na Maison des Auteurs para, finalmente, produzir o meu primeiro livro, que eu tinha começado durante a faculdade mas tinha deixado de lado por anos.

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Quais trabalhos realizados lá mais você destaca?

A última série de que participei: A Última Loja de Discos. Foi uma série que fizemos com poucas pessoas, gravando as vozes na Tosco mesmo com o Angelo Arede, João Velho, Miá Mello e Maurício Rizzo, que são hilários. Tudo foi animado por uma animadora, a Luá Garcia, que também é uma pessoa super querida. Foi muito divertido, e o resultado ficou muito legal.

Você foi editora da revista independente Golden Shower. Como foi a experiência na revista?

Foi a melhor coisa que já fiz. Alguns dos quadrinhistas que publiquei (e rejeitei, não sou a melhor editora do mundo, haha) são dos melhores trabalhando hoje em dia. Participei de festivais, me enturmei, e tudo quando meu trabalho ainda era bem fraquinho. Foi uma coisa mágica da época, todo mundo estava muito aberto, ainda mais porque não tinha quase nenhuma mulher cartunista nessa cena indie. Todo mundo queria me ajudar.

Internet te satisfaz ou é preciso ser publicada nos jornais e revistas?

Eu publico pouco na internet e me incomoda um pouco a cultura dos likes. Tudo é muito rápido. Prefiro que leiam uma coisa longa minha, um livro, uma história publicada. Mas estou pensando em fazer uma série longa online, publicando capítulos. Ainda estou vendo. Mas mesmo assim acredito que no final gostaria que fosse impresso. Sou muito apegada ao objeto.

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Podemos ver seus trabalhos em diversos lugares, como a revista piauí e sites Marsam e Komikaze. Você atingiu a consagração ou ainda tem muito a percorrer?

Não sei exatamente o que quer dizer atingir a consagração, mas tenho certeza que ainda não é aqui onde estou.

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A piauí é a revista que mais dá espaço para cartunistas. Por que a mídia tradicional (especialmente as revistas) dá pouca vazão para uma geração tão boa: falta de espaço, de dinheiro, interesse ou o quê?

A diferença entre o Brasil e a França é imensa. No Brasil quando digo que sou cartunista, me olham com quase pena, ainda tem muita gente que acha que é uma coisa infantil. Aqui na França me olham com um respeito genuíno. Acho que é isso. Essa falta de respeito pelo quadrinho que ainda existe no Brasil.

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Nos anos 60/70 surgiram Millôr, Jaguar, Ziraldo, entre outros. Nos anos 80 vieram Angeli, Laerte, Glauco, etc. E temos agora a sua geração. Qual delas é a melhor?

Minha geração tem Fabio Zimbres, Allan Sieber, Arnaldo Branco, André Dahmer, Daniel Lafayette, Chiquinha, Pablo Carranza, Diego Gerlach, Ricardo Coimbra, Bruno Maron, Rafael Coutinho, Gabriel Góes etc. etc. etc. é isso? Não vou dizer que é a melhor, mas se é pra incluir todo mundo que veio depois dos anos 80 acho que estamos muito bem sim.

De toda maneira sempre temos uma geração muito boa no Brasil. Nunca houve uma crise de talentos nessa área. Por quê?

Acho que houve períodos mais difíceis, sim, mas não sei dizer. O bom dos quadrinhos é que não dependemos de uma infraestrutura pra produzir, só pra publicar e, depois da internet, nem isso é difícil. Viver de quadrinhos é outra história, e muito difícil até hoje.

O fato de trabalhar como cartunista semanal na Folha de São Paulo, o jornal que mais dá espaço para artistas do traço, e figurar no time da empresa foi, até agora, sua maior conquista?

Acho que minha maior conquista até agora foi meu livro. Mesmo se ninguém comprar, ler, gostar, ele tá feito. Eu consegui.

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Por que causou tanta comoção o seu ingresso na Folha?

Não foi o meu ingresso, foi a criação de uma seção de quadrinhos de mulher. Quadrinhas, como era chamado. Criou comoção porque é isso que esse tema faz. Tá na moda.

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Você tem uma visão bem crítica do feminismo, criticando a vitimização, etc. Ganhou muitas inimigas com isso?

Não sei se ganhei inimigas — palavra forte. Mas não fiz amigas, com certeza, e recebi uma grande dose de agressividade, sim. Se você é mulher e não segue a linha do “partido”, não repete as mesmas coisas, não concorda com todos os pontos de vista, as pessoas ficam com muita raiva. Te consideram uma traidora. É ridículo.

É difícil, em toda entrevista, responder a respeito do estranhamento por ser mulher, cartunista e exitosa em sua carreira? Por que isso acontece?

Não é difícil. É chato. Eu sou uma pessoa que fez medicina e virou cartunista, tem tanta coisa pra me perguntar fora o fato extraordinário de eu ter o mesmo genótipo e aparelhagem sexual de 50% da população. Mas estou exagerando, não são machistas que ficam perguntando isso, são pessoas preguiçosas, que veem uma mulher e acham que isso tem que ser imediatamente incluído na pauta, ou pessoas que realmente querem ajudar pois existe esse debate enorme, existem tantas pessoas dizendo que ser mulher é horrível. Agora as pessoas ME perguntam isso justamente porque reclamo tanto disso. É um círculo vicioso. Mas eu não acho que estou num meio particularmente hostil, na verdade sempre fui encorajada por meus colegas até por ser uma raridade nesse meio. Existem casos como o do festival de Angoulême do ano passado, onde é meio chocante você ver que ainda existem uns velhos machistas idiotas, mas no geral existe um esforço de INCLUIR mulheres. Às vezes, nesse esquema de cotas para mulher, que eu acho contraproducente. Acho que algumas mulheres que estão apenas começando não se dão conta de que a maior parte dos quadrinistas homens da mesma idade, experiência, nível de habilidade e capacidade de autopromoção têm o mesmo retorno e oportunidade que elas. E, na real, é isso: o próprio feminismo é uma forma de se promover: sou uma mulher! Me comprem senão vocês são machistas!

Se considera um exemplo?

Todo mundo é exemplo de alguma coisa, cada vida tem suas lições, então por que não? Posso ser sim. Mas é difícil até pra mim saber direito o que tudo que já fiz e escolhi acarretou. Então acho talvez melhor esperar alguns anos antes de ficar me tomando como exemplo de qualquer coisa.

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Você disse que se fizesse quadrinhos feministas teria uma projeção maior, mas não os faz. O que te interessa falar, desenhar?

Acho que de tudo, mesmo de assuntos que são considerados feministas — mas não gosto de fazer quadrinhos pedagógicos, impondo o que tudo mundo precisa pensar. O machismo em geral é um vilão muito fácil e óbvio para uma mulher tratar, se ela não tiver cuidado. Gosto mais da incerteza, de áreas cinzas, de tentar ver o mundo de uma forma menos maniqueísta do que homens são agressores e mulheres, vítimas.

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Você escreve antes de desenhar? Suas ideias vêm em letras e não em imagens?

Vêm numa mistura, geralmente escrevo a mão, intercalando com desenhos de expressões ou, se estou no computador, boto indicações do que quero desenhar. Depois faço os thumbnails e enxugo ao longo de todo o processo pra não ficar redundante desenho + texto.

Tem roteiros prontos, mas não ilustrados?

Tenho sim, e já fiz roteiros para colaborações, em um formato mais clássico, que outras pessoas possam entender.

É impossível fazer um trabalho sem tentar verter para o humor ou para a crítica?

Acho difícil, pois quando a gente se sente compelido a criar alguma coisa é porque algo está incomodando; alguma coisa está nos empurrando a jogar alguma coisa no mundo que diga alguma coisa sobre o que está se passando em nossa cabeça. Então, como fugir de algum tipo de crítica? Nem que seja uma crítica pessoal.

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Seu desenho é lírico, quase uma poesia visual, mas pouco enfático. Por que?

Eu não tenho paciência. Para mim é importante o desenho ser bonito, interessante e minimamente compreensível, mas não tanto ele ser fiel à realidade.

A sofisticação do seu roteiro e do seu desenho não restringem o alcance do público ou eu estou subestimando o público?

Eu realmente não tenho um público enorme, mas tendo a culpar o fato de eu não produzir o suficiente ou não me promover o suficiente ou de ainda não ser boa o suficiente. Mas é verdade que hoje em dia as pessoas parecem preferir quadrinhos rápidos e fáceis de compreender que passam na sua timeline. Você curte e passa imediatamente pra outra coisa.

Já te pedem selfies?

Hahaha, em lançamentos rola. Apesar do meu desenho ser parecido comigo eu não tenho toda essa fama ainda.

O que será de Cynthia Bonacossa daqui a dez anos? O que espera da vida?

Eu espero que daqui a dez anos eu tenha mais facilidade de pagar as contas. Fora isso não sei bem. Depois de desistir da medicina eu fui aos poucos e cada vez mais aprendendo a não perder muito tempo fazendo planos, pois as coisas sempre mudam, eu sempre mudo muito.

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