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O abismo e a riqueza da coadjuvância

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h30 - Publicado em 14 jul 2017, 08h36
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Ao refletir perspectivas distintas sobre o racismo – a de brancos e a de negros – duas peças apresentadas no MITsp acabaram se complementando

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“Branco: o Cheiro do Lírio e do Formol” (Foto: André Cherri/Divulgação)

Por Duanne Ribeiro

O conceito de lugar de fala — a ideia de que as perspectivas de cada qual são marcadas pela sua situação, pelos custos e riscos das suas ações, pelos seus recursos e ferramentas particulares — é produtivo; pode nos equipar para construir potencialidades e destruir posturas arraigadas. Diz algo sobre nós e nos estimula a atentar ao que os outros dizem de si — e também expõe os desníveis entre o que um e outro podem perceber.

Essa dialética de construção e destruição se evidencia no confronto entre em duas peças recentes que tratam do racismo a partir de lugares de fala distintos — Branco: o Cheiro do Lírio e do Formol, dirigida por Alexandre dal Farra e Janaina Leite, e A Missão em Fragmentos: 12 Cenas de Descolonização em Legítima Defesa, dirigida por Eugênio Lima. Grosso modo, a primeira aborda o tema da discriminação do ponto de vista dos brancos, e a segunda, pela perspectiva dos negros. Minha tese é que acabam sendo complementares.

Não é uma proposição muito segura. A Missão se desenvolve a partir de uma militância informada e contundente, que age em várias instâncias, não só artísticas. Branco pode soar (e soou) regressiva a movimentos dessa tendência, desvirtuante, umbiguista, sem nada a acrescentar. Proponho: trata-se não de uma oposição, mas de posicionamentos distintos em relação a um espectro de vivências. Veremos se isso se sustenta.

O lugar de fala de quem deve ouvir

Branco põe em tensão dois níveis de discurso: cenas de uma família insólita, com gosto de teatro do absurdo; e uma espécie de making of do espetáculo, falas sobre o processo criativo, registros audiovisuais dos ensaios e das pesquisas, encenações de trechos das ideias abandonadas da peça. Ritmando a narrativa com esses dois polos, intercala-se um retrato de coexistência disfuncional com um discurso sobre como foi impossível levar ao palco uma montagem sobre o racismo. Branco é a história de um fracasso.

Alexandre dal Farra escreveu argumentos para uma peça de denúncia antirracista, duas ou mais versões, apresentadas a consultores negros, que lhe mostraram que a peça era problemática, pela desinformação política e vivencial que estava em sua base. Note-se: não se chegou a um espetáculo enfim mais bem formado; chegou-se a algo “quebrado”, que soma incompatibilidades. Um fracasso, não um aprendizado. A narrativa expõe uma aquisição de conhecimentos, contudo, é um acúmulo que gera ou explicita um déficit.

É um entre momentos de amadurecimento político. Entendo que haja reações fortes de militantes negros, como a Stephanie Ribeiro, que chamou a peça de “desserviço” — ela sabe que, mais do que ouvir o que os brancos podem dizer do seu racismo ou do racismo dos outros, precisamos é ouvir os negros; e que seria mais benéfico à luta que os negros por si ou, ao menos, convidados também ao palco, expusessem essa problemática. Mas o que eu acho que essa linha de pensamento deixa escapar é que é necessário, também, tematizar essa experiência de decepção consigo mesmo, de vontade frágil de empatia.

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“Alexandre dal Farra escreveu argumentos para uma peça de denúncia antirracista, duas ou mais versões, apresentadas a consultores negros, que lhe mostraram que ‘Branco’ era problemática, pela desinformação política e vivencial que estava em sua base — um fracasso, não um aprendizado”

Branco é um romance de formação que não se encerra com um indivíduo completado, mas com um sujeito que se percebe informe: retrata o abalo de quem descobre que o humanismo é no mais das vezes insuficiente para delimitar e combater o racismo; de quem se descobre, a despeito das boas intenções, racista — não uma “pessoa ruim”, sem empatia, cruel ou maligna, ainda assim sutil, diária e estruturalmente racista.

Essa descoberta é disparada por ouvir os negros, por saber através deles de experiências que não temos como conhecer pelas pretensões da razão. Entrei em contato com falas e leituras nesse sentido e isso me modificou. Por ter sido educado, senti, frente às cenas do que se tornaria branco, certa vergonha: eram, claramente, erros de perspectiva e de ação. Bastaria ter se aberto ao outro, ter recuado a presunção de saber. Ultrapassado o processo pelo qual passei (e passo) leio as tentativas de Branco com pudor ou tabu: “Isso não se fala”. Mas talvez seja preciso falar os erros para demonstrar o caminho.

Não para os negros, que talvez (concedo-me um talvez) não tenham nada a retirar disso, mas entre os próprios brancos, ou mesmo no íntimo de cada branco em particular. Se é atentar ao lugar de fala o disparador dessa evolução — ouvir os negros — , esse processo não só destrói ideologias como mostra, a quem ouve, que ele próprio tem um lugar de fala (seus custos, seus riscos, seus recursos, suas óticas). Como expressar e compreender essa experiência de se notar não-universal, não-neutro, mas uma pessoa entre outras?

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Tô te explicando pra te escurecer

Essa situação é toda expressa na frase de um dos consultores (creio que o Eugênio Lima, diretor de A Missão), transmitida em áudio: “Eu não estou aí. O outro não está aí”.

De forma cifrada e oblíqua, essas ideias transparecem na relação dos três personagens absurdos. Pai, filho e tia mantêm diálogos autísticos; paradoxalmente, estão na mesma sala e ainda assim deslocados um do outro, assim como, no interior da casa, se opõem ao que quer que venha de fora. Ao longo das suas pseudoconversas, vomitam o branco: bolotas brancas caem pelas bocas, escorrem pelas roupas, tombam no palco, e frente a isso permanecem indiferentes: não se abalam nem pelo que os violenta. Desconhecem o que os atravessa. Branco parece apontar os isolamentos progressivos que constroem certa concepção de indivíduo, associal, ahistórico, proprietário (distanciado, pois) de si.

Soma-se à falsidade do contato a artificialidade da cenografia: a grama sintética, as peles de vaca no chão. Só o medo da invasão os coloca na mesma página. Quando tudo indica que há algo lá fora que pode entrar, romper a estabilidade, comunicam-se de maneira mais vívida, entrincheirados. Do outro anulado, é-se levado ao outro como ameaça.

A temática do racismo continua sendo tratada aí — mas de modo abstrato, existencial: é substituída por um debate sobre a alteridade. No campo metalinguístico, isso aparece com a história da morte do pai do diretor: o falecido, tanto pela relação complicada com os filhos quanto por ter se tornado, pela morte, irrecuperável, é a imagem da alteridade que não podemos encontrar em nós mesmos (onde, então?). Com esse deslocamento, por um lado, perde-se o concreto, o dano real, assassino e limitador de vida do racismo, por outro se comunicam ideias essenciais para encaminhar a uma autoanálise.

“Também nas decisões cenográficas prossegue a discussão sobre o racismo em ‘Branco’: sutis, agem no sentido de desmistificar, reposicionar os símbolos do branco — tendo em vista o fato de que ao preto, ao negro, com frequência, se relaciona o demoníaco, o proibido, o degradado”

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Também nas decisões cenográficas prossegue a discussão sobre o racismo: sutis, agem no sentido de desmistificar, reposicionar os símbolos do branco — tendo em vista o fato de que ao preto, ao negro, com frequência, se relaciona o demoníaco, o proibido, o degradado. Já vimos como isso se dá no caso do vômito: o branco aqui é o repulsivo. Nas transições entre cenas, outra tática nesse sentido: as sequências de making of, com pouca iluminação, são sucedidas pelas da família, em que que se enche o palco de luz, ofuscante porque brusca. Tô iluminado pra poder cegar: esse recurso pode retomar uma palavra de ordem do movimento negro, o escurecer substituindo o esclarecer, tomado como relacionado à clareza e à branquitude. Penso que não é o caso, a metáfora refere-se à luz, não a pessoas. Mas aqui a luz é problematizada em si. O esclarecimento cega.

Assim, desestabilizando uma ideologia, apresentando um percurso de falhas e expondo uma binariedade do outro-nulo e do outro-ameaçador, a peça — sem levar ninguém lá, pois é um retrato do travamento — aponta a necessidade de chegar a um outro que é, ainda, uma ausência, mas uma ausência fecunda.

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A Missão em Fragmentos: 12 Cenas de Descolonização em Legítima Defesa” (Foto: Cristina Maranhão/Divulgação)

Cabelo crespo e a pele escura, a ferida, a chaga

Descolonizar, porque se quer demolir concepções e abrir o pensamento para outras; em legítima defesa, porque é em nome de si e dos seus iguais que se luta — A Missão é um ato de formação cênico e intensivo. O espetáculo parte de A Missão: Lembrança de uma Revolução, texto do dramaturgo Heiner Muller que retrata uma revolta de escravizados jamaicanos após a Revolução Francesa, apoiada pelo governo revolucionário e largada à própria sorte quando Napoleão ascende ao trono. A montagem desconstrói o texto de Heiner e o mescla com referências do pensamento, da arte e da militância negras.

Declamação, monólogo, jogral, batalha de rap, espetáculo musical — A Missão recorre a vários formatos artísticos e narrativos, alternando entre momentos de contemplação — como no solo de saxofone e na canção africana cantada em coro e acompanhada pelo piano; intimistas, delicados — , de ruído intencionado (pela multiplicação de pontos de atenção), e de catarse. A variedade de gêneros e de vozes dificulta os automatismos de classificação; temos de assistir ao que se passa sem certos esteios confortáveis da crítica e do gosto. Para reforçar essa tendência, simula estar sendo construída em tempo real, finge-se o “improviso” para dizer: isso está sendo feito agora, descobriremos aonde vai.

Ainda mais, brechtianamente, a peça jamais deixa de se dizer uma peça. Os atores são atores, o diretor é o diretor e está em cena. As cenas são apresentadas uma a uma como cenas. Nelas, dilui-se a identidade — os personagens podem ser interpretados por todos — , assim como a hierarquia — o diretor pode ser ator, o ator pode ser diretor. A forma do espetáculo, por essa via, ataca (ou contra-ataca) instâncias de poder epistemológico, e dispõe a fonte do discurso em uma coletividade, em um conhecimento acumulado por séculos de engajamento — o que é evidenciado na passagem em que um deles percebe que as formas de se expressar do passado atravessavam o tempo, viviam nele.

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“‘A Missão’, dirigida por Eugênio Lima, conversa com muitos interlocutores, com figuras de uma linhagem de pensadores e ativistas: fala com o peso de uma tradição. Assim, a peça ao menos introduz o público a uma massa crítica, a tudo que esse lugar de fala foi capaz de produzir.”

Consequentemente, A Missão conversa com muitos interlocutores, com figuras de uma linhagem de pensadores e ativistas: fala com o peso de uma tradição. São performados trechos da escritora Carolina Maria de Jesus, do poeta e dramaturgo Abdias Nascimento, da filósofa Angela Davis, da escrava liberta Sojourner Truth (embora na segunda vez que eu vi o espetáculo o trecho tenha sido excluído), entre outras menções. Assim, a peça ao menos introduz o público a uma massa crítica, a tudo que esse lugar de fala foi capaz de produzir. Com isso, exerce a desconstrução em sentido próprio: dilui estruturas para recompô-las com limites superados e com novas potencialidades.

Uma nota mais pessoal: como trabalhei com o Eugênio Lima quando editei a publicação impressa da Ocupação Abdias Nascimento, tenho pra mim que ele executa em A Missão o mesmo que procurou trazer no livro: uma constelação de referências da teoria e arte criadas por negros. Entrar em contato com o panorama construído por Eugênio permite antever ou recuperar a peça, e atestar a consistência de um pensamento invisibilizado.

Vale também ressaltar que, destacados entre os interlocutores, estão os Racionais MCs, pelas citações, em vários momentos, de versos da músicaCapítulo 4, Versículo 3” — “o preto aqui não tem dó, é 100% veneno” e a fala introdutória, que denuncia o genocídio negro e a exclusão social, ambos problemas não derrotados. Sintomático, contudo, que a releitura da letra se faça necessária. Mano Brown canta: “Seu carro e sua grana já não me seduz e nem a sua puta de olhos azuis. Eu sou apenas um rapaz latino-americano, apoiado por mais de 50 mil manos”. Em A Missão, diz-se: “nem os seus brilhantes olhos azuis”, ou algo assim, e apoiado por 50 mil minas e manos”. Isso mostra que a influência não é tomada de forma acrítica, mas reelaborada segundo os debates atuais.

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A quarta parede engole tudo e explode

E o público? Também sem ilusões ou empreendendo ilusões deliberadamente: o público é o público; mas seremos submetidos a uma mutação ao longo do arco de intensidades da montagem. Primeiro, somos essas criaturas contidas e expectantes. Adentramos o teatro. Os atores já estão em cena, dançando como em um baile black. A batida exige o corpo, algumas cabeças balançam ritmadas, mas só eles bailam. Suor, coreografia. Nós, sentados, no devido lugar. Um convite já está aí, mas só será compreendido no fim.

Logo depois dessa introdução, a circunstância própria do público sofre alguma crítica: o elenco se reúne no centro do palco, ofegante, e nos observa. Quem está em posição de ver? Quem está em posição de ser visto? A distribuição de visibilidades e de âmbito de agência (quem age e quem sofre ações) são dispositivos de poder. Seria temerário dizer que tudo isso está contido nessa cena mínima; porém, frente ao todo da montagem, ou sob o efeito de uma segunda sessão, é plausível. Não é (ainda) a perda da segurança do espectador, que é causada já pela possibilidade de interação com os atores (frequente, por exemplo, no Teatro Oficina) — no entanto há a sugestão desse desconforto.

Na cena que relê a Revolução Francesa, opondo Robespierre e Danton em uma batalha de rap, somos transformados em plateia, instigados a votar em um ou outro (no par de vezes que vi, Robespierre ganhou). Além disso, em vários momentos, alguns atores são posicionados entre nós: o intradiegético e o extradiegético se misturam. Quando a peça enfim quebra, com a notícia da demissão da revolta, somos interpelados diretamente, avisados que o espetáculo acabou. Somos expulsos, nem mesmo público somos mais, o que somos agora, por que continuamos? A narrativa se dissolve em manifesto e ironia, e endereça a um engajamento mais intenso, embora atordoado, de nossa parte.

Por fim, leva-se ao limite aquele por que estamos aqui. O ritmo de substituição das cenas se acelera, os limites entre uma e outra deixam de existir, a última nem é anunciada (ou eu não vi). No palco, a situação crítica e secular dos negros no Brasil é exposta mais uma vez, e se questiona: quem está conosco? Descem, a princípio, pingados, alguns de nós, então muitos; postos lado a lado no palco, em nome de uma promessa de cooperação. Uma música toca, uma coreografia é ensinada; enquanto Eugênio Lima discursa, quase inaudível (“isso não é redenção, isso é parceria”), dançam juntos, sem o distanciamento do início do espetáculo; agora e aqui “espetáculo” tornou-se um termo obsoleto.

O lugar de fala de quem escreve este texto

Branco e A Missão são, portanto, tanto incompatíveis quanto alinhadas. De um lado, o racismo visto pelo prisma de um humanismo ingênuo e falho e retrabalhado do ponto de vista da problemática da alteridade; do outro, o racismo denunciado e combatido a partir de uma massa crítica e de uma luta política. Da perspectiva do que faz A Missão, Branco é insuficiente, desnecessário e/ou digressivo. Porém, a condição subjetiva a que levam A Missão e outras experiências é, muita vez, aquela retratada em Branco. Todo o recalcado posto a descoberto, a revisão de si, certa tristeza, são trazidos à cena.

“A história de fracassos de ‘Branco’ é e será minha, como foi a de outros que acompanhei; essa história de fracassos pode ser a história deste ensaio. Por isso a peça comunica algo que a verdade agressiva (redundância?) de ‘A Missão’ não alcança, porque está abaixo de si.”

A história de fracassos de Branco é e será minha, como foi a de outros que acompanhei; essa história de fracassos pode ser a história deste ensaio. Por isso a peça comunica algo que a verdade agressiva (redundância?) de A Missão não alcança, porque está abaixo de si. Como nos colocar depois que a nossa visão de mundo é demonstrada inconsistente? Temos o direito de responder ao chamado final de A Missão, levantar da cadeira, subir no palco? Eu levantei, eu desci, sob o risco de impostura, o pedido não parecia ficção, o pedido parecia completamente sincero, e alguma dignidade exigia que eu o fizesse.

Quem está conosco? Eu subi no palco, você subiria? Não é um atestado de bondade (a oposição redenção e parceria enunciada por Eugênio), não é a facilidade de um “somos todos macacos”. Subi sob o risco de impostura, questionando o meu direito de dançar a mesma dança, de exibir um gesto de luta. Esboço uma ética para que me ajude a ficar ali, instável. Não ceder a crer que não chego atrasado a esse esforço. Não acreditar que posso deixar de ser secundário; no mínimo pela chance de ignorar, quase sem prejuízo, tudo isso, não estou nunca à frente, não sou nunca urgente. A riqueza da coadjuvância: entregar a sua força a algo justo e continuar aberto, ouvindo.

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Duanne Ribeiro é jornalista, mestrando em Ciência da Informação, graduado também em filosofia e pós-graduado em Gestão Cultural. É analista de comunicação para o Itaú Cultural, editor da revista Capitu e membro da equipe editorial da revista Maquiavel.

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