“O Brasil entrou em mim”
Em entrevista à Bravo!, Antonio Skármeta fala sobre sua relação com a cultura brasileira e do longa “O Filme de Minha Vida”, adaptação de sua obra por Selton Mello
Por Laíssa Barros e Mariana Tessitore
Grande representante da literatura chilena, Antonio Skármeta costuma criar personagens melancólicos, assombrados pela delicadeza e brutalidade do mundo. Angustiados, muitos desses protagonistas já passaram pelas telas do cinema. Ao menos cinco obras de Skármeta, hoje com 76 anos, já se transformam em filmes consagrados como O Carteiro e o Poeta, dirigido por Michael Radford, e No, adaptação de sua peça O Plebiscito, que deu ao Chile sua primeira indicação ao Oscar de filme estrangeiro. Agora, mais um livro seu chega aos cinemas, tendo uma parceria especial com o Brasil.
Dirigido por Selton Mello, O Filme da Minha Vida estreia nesta quinta-feira (3/8). Estrelado por Johnny Massaro e Vincent Cassel, o longa-metragem conta a história de Tony, um jovem professor que precisa lidar com o desaparecimento de seu pai. O filme, terceiro dirigido por Mello, é uma adaptação do livro Um Pai de Cinema, lançado por Skármeta em 2010.
Na pré-estreia do longa, Mello afirmou que Skármeta “abençoou todas as decisões na confecção do roteiro do filme”. Para o diretor brasileiro, o chileno foi muito generoso, exatamente por já ter vivenciado essa experiência outras vezes. “Ele não tinha aquele apego desesperado de não deixar que mexessem em sua obra. Ele leu todos os tratamentos do roteiro e deu uns palpites, mas sempre dizendo: o filme é seu, faça do jeito que você quiser”. O cineasta, que foi convidado pelo próprio Skármeta a adaptar a obra, também lembrou que a poética literária é distinta da cinematográfica. “Havia coisas no livro que eu precisava alterar. Eu nem tinha me dado conta de que mudei o nome do título e de todos os personagens. Hoje, entendo que fiz isso para poder me apoderar da história, pra sentir que ela também era minha”.
Em entrevista à Bravo!, Skármeta fala sobre a sua proximidade com o cinema e seu fascínio pelo Brasil. O artista, que teve que deixar o Chile durante o governo de Pinochet, também alerta para o risco da volta do autoritarismo na América Latina: “Devemos estar atentos pois não faltam pessoas prontas para desestabilizar as democracias”. Confira a entrevista na íntegra.
Qual é a sua relação com o Brasil e especialmente com a cultura brasileira? Por que você escolheu que o seu livro fosse filmado aqui?
Minha relação com o Brasil é multifacetada e caótica. Tenho que confessar que primeiro dancei e depois li. Vim quando era muito jovem ao Rio Grande do Sul com um grupo de atores que fazia teatro de mímica. Íamos de cidade em cidade atuando nas praças e pedindo ajuda às prefeituras. Meus companheiros se cansaram dessa vida dura e voltaram ao Chile. Eu segui sozinho para o Rio de Janeiro, que me pareceu uma cidade deslumbrante. Eu era tímido com as meninas. Tive a sorte de encontrar uma mulher carioca que não se interessava pela literatura, mas sim em concretizar os seus desejos. Por sorte, fui sua vítima. Ela me fez ouvir muita música e me soltou para dançar. Mas, assim como ela se interessou por mim, também se desinteressou. Nesse momento, aprendi a expressão “Vai embora”.
Voltei ao Chile levando discos de samba e durante um par de meses alardeei meu romance no Brasil até aborrecer meia galáxia. Para me compensar animicamente, comecei a ler literatura brasileira. A verdade é que mais do que eu ter entrado no Brasil, foi o Brasil que entrou em mim.
A variedade da população me fascinou, o gosto com que os intelectuais abordavam temas populares, o clima que me permitia passar as noites nas praias e os sorrisos. E, sobretudo, o trânsito tão elegante dos brasileiros da alegria à melancolia. Bom, essa mudança de sentimento está presente em vários personagens dos meus romances, entre eles, o narrador de Um Pai de Cinema.
Por que você escolheu Selton Mello para adaptar a sua obra? Como os demais filmes dele dialogam com a sua produção?
Até alguns anos atrás não conhecia os filmes de Selton Mello. Hoje acredito que já assisti a quase todos. Eu o considero um dos cineastas mais sensíveis e originais da América Latina. Em uma viagem ao Rio Grande do Sul, expressei publicamente meu desejo de que Um Pai de Cinema fosse filmado no Brasil como demonstração de amor e admiração por seu povo, sua música, sua literatura e seu cinema. Um amigo me sugeriu que o diretor fosse Selton Mello e me indicou o filme O Palhaço. Depois de assisti-lo, soube que minha obra podia dialogar bem com a sensibilidade de Selton Mello. Também me identifiquei com o fato dele não ser um diretor pretensioso, nem pedante, se comunicando com todo tipo de público.
Um Pai de Cinema tem uma relação interessante com o tempo. Você poderia falar sobre isso? Parece que o livro trata de um outro lugar, com um tempo menos acelerado, no qual o silêncio tem grande importância.
É verdade. Depois de ter vivido tanto tempo de modo tão cosmopolita, viajando pelo mundo, tive uma vontade enorme de algo mais íntimo, da vida em uma cidade pequena, do silêncio, de ouvir o coração de meus personagens, tirando-os do estrondo que nos aturde. Buscando no passado, quero encontrar quem somos hoje. Um Pai de Cinema é um romance para ser lido com calma, ser respirado e não corrido.
Muitas dos seus livros foram adaptadas para o cinema. A seu ver, por que o setor cinematográfico se encantou por sua obra?
Sou um escritor que leva o cinema em suas artérias. Ao escrever, não preciso me propor a ser cinematográfico. Minha prosa é lírica, está composta de imagens sensuais e personagens que são dramáticos e querem tentar a sorte no mundo. Adoro escrever diálogos, sobretudo para colocar o silêncio entre eles. A propósito disso, recordo de um verso do poeta chileno Enrique Lihn Carrasco que diz muito sobre a literatura e o cinema.
No es lo mismo estar solo que estar solo
en una habitación de la que acabas de salir
como el tiempo: pausada, fugaz, continuamente
en busca de mi ausencia, porque entonces
empiezo a comprender que soy un muerto
y es la palabra, espejo del silencio
y la noche, el fruto del día, su adorable secreto revelado por fin.
Em recente entrevista à Revista Fapesp, a historiadora Maria Ligia Prado afirmou que durante as décadas de 70 e 80 houve uma aproximação entre os países da América Latina, unidos pela luta contra a ditadura. Mas que agora, com os regimes democráticos, predomina um distanciamento. Você concorda? Ainda é possível pensar na América Latina como uma região com sonhos e pautas em comum?
Sim. Felizmente, as ditaduras desapareceram na América Latina. Muitos filmes e livros deram conta desse tema. Hoje, no Chile, temos uma democracia estável e um ótimo ambiente para criar. Mas sempre devemos estar atentos, pois não faltam, em outros países do continente, pessoas que queiram desestabilizar as democracias, aproveitando-se de suas fraquezas e se apresentando como Messias e redentores. Hoje, mais do que o perigo da volta das ditaduras, existe o risco do crescimento do populismo, caldo de cultura de males maiores.
Claro que é lindo pensar que a América Latina tem um destino comum e é maravilhoso manter vivo o sonho de nossos libertadores de que haja maior unidade e fraternidade. Mas tenho a impressão de que esse recurso hoje é mais retórico e sentimental. Fazemos pouco, no que não seja meramente comercial, para nos conhecermos melhor.
Assim, em temas culturais, temos que tomar as coisas em nossas mãos e fazermos parceiras com artistas de diversos países. Isso é o que eu fiz no filme Um Pai de Cinema com Selton Mello, com as canções que escrevi para Roberto Menescal e Toquinho e com o álbum Café Frio do compositor gaúcho Killy Freitas.