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O corpo em dimensão social

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h28 - Publicado em 18 ago 2017, 07h31

No solo “Enquanto Ela Dormia”, a diretora Eliana Monteiro usa o corpo como elemento cenográfico, emblema da luta contra a repressão contra a mulher

Foto: Divulgação/Mayra Azzi

Por Gabriela Mellão

A arma política de Enquanto Ela Dormia é uma história pessoal. Na nova empreitada teatral da diretora Eliana Monteiro, inspirada em um acontecimento real, o teatro político revigora-se ao gritar em primeira pessoa, privilegiando o drama individual em detrimento do social.

Neste monólogo interpretado por Lucienne Guedes, a bandeira da luta contra a repressão da mulher é içada a partir das lembranças de Dora, professora de literatura que guarda no inconsciente reminiscências de um estupro. O despertar de suas memórias escondidas se dá por acaso: ao testemunhar uma cena de abuso entre dois desconhecidos em um ônibus, Dora inicia uma jornada rumo aos pilares de sua própria história.

A dramaturga Carol Pitzer, integrante do Núcleo de Dramaturgia SESI-British Council em 2016, busca transformar em linguagem o jogo da memória reproduzindo seu desenho labiríntico. Justapõe acontecimentos e sensações da protagonista seguindo lógica própria, num tempo particular. O passado é restaurado aos poucos, através de um constante avançar e recuar de formulações mentais.

A repetição de extratos da cena de violência ao longo do espetáculo serve de alarme. Soa insistentemente, evidenciando uma relação entre a personagem e o abuso observado por ela, ao mesmo tempo em que instiga uma reflexão sobre marginalização do gênero feminino.

O texto ganha densidade quando entrega ao espectador a tarefa de compor uma aproximação entre ambos. Gera um estado de suspensão que permite à plateia uma apropriação sensorial do material. Uma nuvem de tensão parece se inflar no ar e torná-lo temporariamente mais denso e custoso para a respiração. Tal atmosfera, contudo, se esvai nos momentos de concretude do texto, em que a autora revela sua ânsia por conclusões.

A encenação subverte ainda o papel do espectador ao torná-lo uma espécie inusual de voyeur, dada a recusa por fazê-lo receber na retina imagens apresentadas no texto, obrigando-o a compor a trama com sua imaginação.

Foto: Divulgação/Mayra Azzi

Time da Vertigem

Apesar de Enquanto Ela Dormia ser uma criação de Monteiro independente de seu coletivo, o Teatro da Vertigem, a encenadora não abre mão de estar bem acompanhada por alguns de seus parceiros artísticos, como a própria Guedes, o iluminador Guilherme Bonfanti e a cenógrafa Marisa Bentivegna.

Como em seus trabalhos na companhia fundada por Antonio Araújo, a encenadora investiga uma espacialidade capaz de transformar em imagem simbólica a essência do texto. Encarcera a protagonista num cenário- instalação que justapõe a ideia de cela e de casa, em sintonia com O Filho, seu último trabalho no grupo, em que sugere o caos familiar servindo-se de um emaranhado de sofás sobre a cena.

A mescla entre lar e prisão de Enquanto Ela Dormia é representada por um cubo repleto por grades e janelas que abriga a protagonista durante praticamente todo o espetáculo. Além da segurança da casa e do enclausuramento da prisão, reproduz a abertura da mente ao sugerir diversos outros espaços cênicos, como um ônibus e uma sala de aula.

O solo não alcança a o impacto visual de trabalhos fundantes do Vertigem, como a Trilogia Bíblica que transforma hospital, igreja e presídio em teatro e dá origem ao coletivo nos anos 1990; ou mesmo Kastelo, marco inaugural de Monteiro à frente da direção do grupo, em 2009, peça inspirada em O Castelo, de Kafka, no qual um arranha-céu de São Paulo é utilizado como palco para exacerbar a reflexão da obra sobre os castelos da contemporaneidade e suas relações com as grandes corporações.

Em Enquanto Ela Dormia, Monteiro dialoga com a essência do texto de Pitzer elaborando um espetáculo intimista, cuja potência da encenação reside sobretudo na precisão de Guedes e na maneira em que o corpo da atriz torna-se parte indissociável da cena. Sua apropriação como cenário, além de vestimenta da personagem, é inspirada na criação da artista norte-americana Francesca Woodman, cuja obra está no meio do caminho entre fotografia e performance.

Foto: Divulgação/Mayra Azzi

Carne e água

A carne se torna suporte para experiências estéticas diversas que provocam um atravessamento entre intérprete e cenografia. Numa cena bastante perturbadora, por exemplo, transposição literal de uma fotografia de Woodman, Guedes relembra presentes de seu oito anos de idade enquanto desenha sobre o peito as mãos de seu violador.

A água é usada como elemento cenográfico vital na montagem. Serve como metáfora para o inconsciente e as emoções transbordantes do universo feminino. Simboliza ainda vômitos e fluidos genitais, retomando alguns procedimentos cênicos utilizados pela diretora em O Filho.

A personagem rende-se ao abismo de si mesma ao se lançar sobre uma espécie de piscina (situada no piso central da casa/cela), como se tomasse consciência da necessidade de inundar-se de seus medos para seguir caminho. Na ânsia por renovação, acaba por aventar possibilidades de transformações mais amplas. Provoca uma discussão que nasce de uma perspectiva individual com potencial de refletir sobre as amputações as quais o gênero feminino é submetido para moldar-se em uma sociedade patriarcal. Mais do que um relato poético de superação, esta peça inspirada em um fato verídico mostra-se uma obra de arte de dimensões sociais.

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Enquanto Ela Dormia, direção de Eliane Monteiro, texto de Carol Pitzer. Com Lucienne Guedes. Mezanino do Centro Cultural Fiesp (Avenida Paulista, 1313). Quarta a sábado, às 20h30; domingo, às 19h30. Até 22/10. Grátis (reservas antecipadas de ingressos em centroculturalfiesp.com.br)

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