O mestre da HQ
Entrevista inédita concedida por Álvaro de Moya, nome central nos quadrinhos brasileiros, morto nesta segunda-feira em decorrência de um AVC
Por Rafael Spaca
Conhecia sua história, mas não o conhecia pessoalmente até o nosso amigo em comum, o sr. Kendi Sakamoto (o maior colecionador de HQs do país), nos apresentar. A apresentação foi motivada pela produção em andamento da biografia da atriz Débora Munhyz (a grande musa de José Mojica Marins), em que eu estava trabalhando à época. Álvaro de Moya dirigiu Débora em A B…Profunda (1984), filme de sexo explícito da fase mais “maldita” da nossa famigerada Boca do Lixo. De todas as suas facetas, essa, do cinema, era a mais desconhecida.
O ano era 2015, Kendi Sakamoto marcou um almoço numa padaria chique no também bairro chique de Moema, São Paulo. Chegamos primeiro e logo em seguida Moya nos encontrou. Percebi que ele era um dos nossos quando encheu seu prato de comida, sem esboçar qualquer maneirismo, chutando pra longe qualquer empulhação.
Começamos a conversar sobre cinema, e tudo aquilo que ela falava, de maneira quase despretensiosa, pra mim era uma palestra. Pedi sua permissão e comecei a gravar. Com uma mão eu almoçava e com a outra eu gravava seu depoimento. Moya falava, mastigava e ensinava, tudo ao mesmo tempo. Ao concluir seu depoimento, já imaginava o quão histórico seria. Transcrevi esse relato e ele estará, na sua íntegra, no livro Débora Munhyz, do Terror ao Amor (Editora Laços, 248 páginas), que será lançado agora, no dia 29 de agosto, no Cine Olido.
Depois disso nos encontramos outras vezes, sempre em lançamentos de livros. Nosso último encontro foi no dia 6 de maio deste ano, na Ugra Press, quando do lançamento do meu último livro, As HQs dos Trapalhões (Editora Estronho). Estávamos fazendo um bate-papo quando ele desceu a escada e, em voz alta, Bira Dantas, um dos palestrantes, anunciou: senhoras e senhores, Álvaro de Moya! Todos aplaudiram. Ele se acomodou e começou a ouvir a conversa. Não demorou muito e, na plateia, Moya começou a mostrar quem realmente sabe das coisas ali.
Nunca arrogante, pedante, como vemos aos montes por aí. Esses medíocres que arrotam uma suposta inteligência sempre foram ironizados por Moya. Era um sujeito boa praça, generoso, sempre disposto a compartilhar seu conhecimento.
Nosso último contato foi por telefone. Conversamos a respeito da série de entrevistas para a Bravo! e ele ficou muito feliz. Era um entusiasta da preservação e da difusão da memória e da cultura dos quadrinhos no país.
Deve ter sido sua última entrevista. Segue ela abaixo.
Você nasceu em 1930, como foi a sua infância?
Infância de família burguesa, muito dramática. Narro no meu livro inédito O Mundo é Quadrado.
Nas décadas de 30 e 40 como era o mercado de gibis no Brasil?
Era ótimo para os quadrinhos americanos. Difícil para os brasileiros.
Você é considerado por muitos como o maior especialista em histórias em quadrinhos do país. Esse seu conhecimento foi cultivado desde a infância?
Nós, jovens, queríamos fazer quadrinhos e notamos que precisávamos saber escrever e líamos muitos clássicos: Tchecov, Hemingway, Faulkner, Sartre.
Além de conhecer a história, você também desenha. Como desenvolveu sua habilidade para o traço?
Fui discípulo de Jayme Cortez no desenho, Sylas Roberg em literatura, Walter George Durst em televisão, Rubem Biáfora em cinema.
Se especializou em algum curso?
Me especializei em cabular aulas para ir ao cinema. Ler gibis em vez dos livros escolares. Autodidatismo em coisas que gostava. Literatura, cinema, música, quadrinhos, etc.
Nos jornais O Tempo, Jornal da Tarde, Folha de S.Paulo e O Estado de São Paulo você trabalhou como chargista. Como era a sua dinâmica de trabalho?
Em O Tempo era o ilustrador do jornal. Mas também escrevi artigos. Em dezembro de 1950, Syllas e eu escrevemos um dos primeiros artigos em jornais sobre Al Vapp, autor de Li’l Abner (Ferdinando). E com Walter George Durst sobre o macarthismo em Hollywood.
Qual era o seu enfoque nas charges? Era livre ou seguia a orientação de algum diretor?
Era difícil fazer charges, como desenho e como temática.
O que um bom chargista precisa ter?
Senso de humor, crítica social, humanismo e odiar políticos…
Na Editora Abril muitas capas do Pato Donald e Mickey foram produzidas por você. Nesse caso você tinha que seguir as diretrizes da matriz americana. Como era o sistema de trabalho para estes desenhos?
Só no estilo. Liberdade total para as capas. Notei que as revistas ficavam escondidas nas bancas de jornais. Desenhei uma carinha do Mickey, outra do Pato Donald, assim o jornaleiro via o desenho no topo, embaixo de outras revistas. Os comic books de super-heróis copiaram. Não era importante como o 14 Bis, mas os irmãos Wright dos comics estavam alertas…
Você também desenhou as versões de A Marcha, de Afonso Schmidt (Edições Maravilhosas, da EBAL — Editora Brasil América), Zumbi e Macbeth para a Clássicos de Terror. Fale a respeito destes trabalhos. O traço para este tipo de trabalho é mais apurado?
Eu era influenciado por Alex Raymond (perdão!). Dava muito trabalho, era lento para desenhar e rápido no texto. Pesquisa era difícil na época. Decidi fazer Zumbi sem pesquisa iconográfica como na Marcha. Pensei em Tarzan. Mas o texto questionava o suicídio de Zumbi. Copiei uma carta do governador de Pernambuco dizendo como Zumbi foi traído e morto numa caverna. Até hoje os livros clássicos de História do Brasil como Rocha Pombo, são reimpressos com a balela do suicídio. Já imaginaram? Os quadrinhos perseguidos e contestando os marajás da nossa História?
Tudo era feito em nanquim?
Sim. E papel importado, Schoeler. E pincel Winsor & Newton.
Onde produzia seus desenhos, tinha um estúdio próprio?
Estúdio em casa ou na redação dos jornais.
Como foi montar a Primeira Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos (junto com Jayme Cortez, entre outros), em 1951, na cidade de São Paulo? Como surgiu a ideia e do que se tratava?
Foi uma loucura. Eu que falava e escrevia em inglês, tive a ideia de escrevermos para os artistas americanos pedindo originais com a desculpa de fazer uma exposição. Um deles, não lembro quem, disse que era a primeira vez que alguém pedia para pendurar na parede um desenho seu. Descobrimos que éramos pioneiros…
Como foi a receptividade desta exposição?
Éramos da imprensa, teve cobertura no Rio e em São Paulo, na pioneira TV Tupi (para quem eu desenhara os letreiros do show inaugural do dia 18 de setembro de 1950).
Como define seu traço?
Um Alex Raymond fracassado.
Qual foi o período de ouro na produção e leitura das HQs nacionais?
Anos 30.
Por que ninguém, aqui no Brasil, consegue fazer frente à Turma da Mônica?
Mauricio e Ziraldo vieram beneficiados pela nossa eterna luta pelos quadrinhos nacionais e pela linguagem revolucionária dos comics.
Esse monopólio não é ruim para o país?
Pelo contrário. Mauricio há muito vende mais que Disney. Ziraldo tem mais prestígio internacional que aqui. O mercado provou que os editores do meu tempo eram cegos.
Acredita que podemos criar uma indústria de HQs no Brasil?
A única indústria cultural é a televisão. Graças à Tupi, Record, Excelsior e Globo.
Ainda há preconceito contra as HQs?
Infelizmente, sim.
O que é mais importante: seu trabalho como acadêmico ou como desenhista?
Nenhum dos dois. Apenas como lutador pelo reconhecimento dos quadrinhos como arte.
Que nota você se daria como desenhista?
Não gosto do meu trabalho como desenhista ou autor de quadrinhos. Gosto do que fiz na TV Excelsior. Nos escritos sobre cinema, onde trabalhei na produção, distribuição na Polifilmes, no cinema como exibidor no cine Marachá e sessões malditas, filmes que programei nas televisões. Gosto dos livros Shazam! E Gloria in Excelsior. A nota como desenhista, na minha opinião é muito baixa. Melhor ver as opiniões dos outros.