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O mestre da narrativa

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h18 - Publicado em 20 mar 2018, 07h17

“Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk”, do russo Nikolai Leskov, mescla Shakespeare com policial noir

Por Carlos Castelo

Imaginem uma jovem com uma vida vazia, casada com um velho comerciante, que, por alguma razão, transforma-se numa cruel assassina. Lembra bastante um romance de um Raymond Chandler. Só que não. No caso estamos falando de Rússia e de Catierina Lvovna, a heroína fria e calculista de um escritor pouco conhecido no Brasil: Nikolai Leskov.

Muitos críticos veem Catierina como um símbolo da libertação feminina em relação à opressão patriarcal, inclusive porque, em nenhum momento de sua trajetória no livro Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk (Editora 34), ela se arrepende das atrocidades cometidas.

Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk é uma obra de arte de peso. Inspirou a famosa ópera de Dmitri Shostakóvitch, de 1934, e o filme Lady Macbeth Siberiana, do cineasta polonês Andrzej Wajda. Foi publicada pela primeira vez em 1865, na revista Epokha, editada nada mais, nada menos do que por Fiódor Dostoiévski.

Nikolai Semeónovitch Leskov nasceu em 1831 e é considerado um mestre da narrativa russa. A ponto de Walter Benjamin lhe dedicar o célebre estudo O Narrador, de 1938. Neste texto, Benjamin afirma que Leskov frequentou a “escola dos antigos” e o compara a Heródoto.

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Deixo o próprio pensador explicar a permanência e a atualidade do texto de Leskov:

“No capítulo XIV do terceiro livro de suas Histórias encontramos um relato muito instrutivo. Seu tema é Psammenit. Quando o rei egípcio Psammenit foi derrotado e reduzido ao cativeiro pelo rei persa Cambises, este resolveu humilhar seu cativo. Deu ordens para que Psammenit fosse posto na rua em que passaria o cortejo triunfal dos persas. Organizou esse cortejo de modo que o prisioneiro pudesse ver sua filha degradada à condição de criada, indo ao poço com um jarro, para buscar água. Enquanto todos os egípcios se lamentavam com esse espetáculo, Psammenit ficou silencioso e imóvel, com os olhos no chão; e, quando logo em seguida viu seu filho, caminhando no cortejo para ser executado, continuou imóvel. Mas, quando viu um dos seus servidores, um velho miserável, na fila dos cativos, golpeou a cabeça com os punhos e mostrou os sinais do mais profundo desespero….

…Montaigne alude à história do rei egípcio e pergunta: porque ele só se lamenta quando reconhece o seu servidor? Sua resposta é que ele ‘já estava tão cheio de tristeza, que uma gota a mais bastaria para derrubar as comportas’. É a explicação de Montaigne. Mas poderíamos também dizer: ‘O destino da família real não afeta o rei, porque é o seu próprio destino’. Ou: ‘muitas coisas que não nos afetam na vida nos afetam no palco, e para o rei o criado era apenas um ator’. Ou: ‘as grandes dores são contidas, e só irrompem quando ocorre uma distensão. O espetáculo do servidor foi essa distensão’. Heródoto não explica nada. Seu relato é dos mais secos. Por isso, essa história do antigo Egito ainda é capaz, depois de milênios, de suscitar espanto e reflexão.”

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