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O silêncio e o nada

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h27 - Publicado em 31 ago 2017, 16h32

Bob Wilson retorna ao país com “Conferência sobre Nada”, peça escrita em forma de partitura por John Cage

Bob Wilson em cena. Foto: Lucie Jansch

Por Gabriela Mellão

John Cage abriu espaço para o silêncio através da música — o mesmo silêncio que Bob Wilson explora em seu teatro visual, que faz da cena campo de uma experiência sensorial no qual tempo e linguagem são redimensionados. Se a relação entre as obras dos dois norte-americanos, ícones da vanguarda artística do século 20, existiu até recentemente de forma tácita, ela é assumida em Conferência sobre Nada, espetáculo de 2012 que o diretor apresenta hoje e amanhã no Sesc 24 de Maio, em São Paulo. No domingo será exibida uma gravação de uma performance dos anos 1990 do monólogo Hamlet, em que Wilson se divide entre o personagem-título e os demais da tragédia shakespeariana.

Em Conferência sobre Nada, o encenador sobe ao palco para discursar, muitas vezes sem dizer uma única palavra, sobre a importância da pausa. “Estamos vivendo em situação de multidões. Precisamos de espaços para reflexão. Precisamos de tempo para pensar”, disse ele para a revista Bravo! O silêncio, acredita, é porta de entrada do devaneio.

O diretor percebeu-se entreabrindo a sua nos anos 1960, quando ainda era estudante de arquitetura em Nova York, conduzido pelo próprio Cage numa apresentação de Conferência sobre Nada. Foi tomado por esta obra essencialmente libertária, pautada pela sensibilidade do espectador e não por seu pensamento cartesiano. Tais características marcariam, posteriormente, o teatro de Wilson, como pôde ser visto nos sete espetáculos já apresentados pelo artista no país — entre eles, A Dama do Mar e Garrincha, com elenco brasileiro.

Escrita por Cage como partitura, em frases desalinhadas e repletas de espaços vazios, Conferência sobre Nada transforma palavras, pausas e repetições em sensações. Pode ser apreciada de modo similar a partir do início, do meio ou do fim. “A peça se tornou uma experiência definitiva, fez minha filosofia de vida se transformar completamente”, conta Wilson.

O texto de John Cage

Na realidade, o encenador nunca foi parte da engrenagem que dita o modis operandi do mundo. Desde pequeno ele se mostra embrenhado em estabelecer novos caminhos de relações e percepções. Era gago e disléxico na infância, sem aptidões que alimentassem o conservadorismo de sua família, natural do Texas. Chegou a estudar administração para agradar os pais, mas passou a encontrar algum sentido para si apenas após abandonar o curso e virar tutor em um instituto de crianças com problemas cognitivos.

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Wilson levou ao palco a vivência acumulada neste instituto, e chegou a fazer peças com garotos surdos e autistas. O grande feito, entretanto, foi transformar a experiência em estética. A partir dela, criou uma linguagem que revolucionou a cena teatral ao romper com a lógica e estabelecer uma forma de comunicação irracional com o espectador, desmontando sua expectativa convencional.

Rumo a coisa nenhuma

Conferência sobre Nada faz Bob Wilson relembrar outro acontecimento decisivo em sua trajetória, — evento que para muitos seria absolutamente irrelevante. Em uma das vezes em que visitou seus pais na juventude, o comportamento de um vizinho chamou sua atenção. O garoto de cerca de cinco anos estava sentado no chão com as mãos unidas e elevadas. Assim permaneceu por dez minutos. Quando Wilson perguntou o que ele estava fazendo, a resposta fulminante foi: “Nada”.

Num mundo regido por excessos, em que a abundância de informações, ações e reflexões assola os sentidos, o nada estabeleceu-se para o encenador como algo de valor inestimável. Na peça, depois de alguns minutos de sons ensurdecedores sucedidos de silêncio, Wilson inicia sua jornada rumo a coisa nenhuma. “Estou aqui e não há nada a dizer”, diz ele em cena, coberto de branco da cabeça aos pés em um palco ocupado por cartazes com palavras extraídas do texto de Cage.

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Levada aos palcos pela primeira vez na Alemanha há cinco anos e já apresentada em diversos locais, como no Louvre, em Paris, Conferência sobre Nada apresenta uma síntese poética de sua busca pelo não fazer, pelo não pensar e sobretudo pelo não concluir.

Como Cage, Wilson almeja a experiência em detrimento da ideia. Em vez de perseguir um significado para a palavra ou para o silêncio, faz justamente o contrário. Evidencia a possibilidade de abertura da linguagem, sua complexidade e multiplicidade. “Eu não tenho nada a dizer e estou dizendo. E isto é poesia, como eu quero agora”, resume o artista em cena.

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Conferência sobre Nada, direção e atuação de Bob Wilson. Texto de John Cage. Sesc 24 de Maio (Rua 24 de Maio, 109, Centro, tel. 11 3350–6300). Dias 1/9 e 2/9, às 21h. R$ 12 a R$ 40. Dia 3, às 18h, Hamlet: um Monólogo (projeção). R$ 12 a R$ 40.

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