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Onde se esconde a canção

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h24 - Publicado em 10 nov 2017, 05h10

Com base na poesia, álbum de estreia de Enzo Banzo mostra que o formato da canção segue vivo na música popular brasileira

Foto: Felipe Ludovice

Por Joca Reiners Terron

Nesta primeira década do século 21, a própria canção parece acompanhar a desaparição de grandes cancionistas como Leonard Cohen. A cada novo disco, Chico Buarque destaca em entrevistas a “crise do formato da canção na cultura popular” (como afirmou à Folha de S. Paulo em 2004), geralmente relacionando o fenômeno à ascensão do rap e à síncope do ritmo falado de palavras que não cantam mais. O próprio Nobel de Literatura concedido a Dylan parece representar simultaneamente a coroação e o final de reinado da canção, a soberana medida da música moderna.

Tal ameaça parece, porém, ao menos àqueles que investigam o furdunço babelizado que é a difusão musical contemporânea através da internet, equivocada ou exagerada. Em qualquer língua ou tradição popular, a canção vem se renovando e “cantautores” de todas as latitudes experimentam — diante de público mais restrito, aquém dos sinais do rádio que marcou a Era de Ouro do gênero no século passado — com maior liberdade e semelhante inventividade que a de seus antepassados.

Canção Escondida, o esplêndido álbum de estreia de Enzo Banzo, originalmente conhecido por seu trabalho com a banda mineira Porcas Borboletas, é uma feliz comprovação da atual riqueza do formato. Ao apelar diretamente a dois aspectos que estão na origem da canção, a poesia e o romance, Banzo revisita o passado com olhos postos no futuro. Da Provença oitocentista de Arnaut Daniel e Bertrand de Born à Minas Gerais do século 21, a base da expressão é a mesma: a poesia.

Em termos concretos, uma canção como Eu, composição de Banzo sobre poema de Arnaldo Antunes, joga uma pá de cal sobre a querela um tanto absurda: letra de música é poesia? Não só é, como sempre foi (que o digam os provençais) e será. Se ainda vigorasse a justiça poética de tempos passados, aquela, que premiava a perfeição cantabile com o êxito radiofônico, esta canção grudaria na mente de todos os ouvintes, e a ouviríamos assoviada pelo cobrador do ônibus, pela bilheteira do cinema e pelo garçom driblando tranquilamente mesas e cadeiras de nosso bar predileto.

Mas os tempos são outros, apesar de a cada dia parecerem ser os mesmos, só que sem as melhores coisas antigas — enquanto as piores se renovam.

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Do passado, a união de um soneto de Camões com o rockinho medieval (graças aos timbres dos sintetizadores de João Leão) é a junção da origem com o porvir, numa dobra temporal. Algo semelhante se dá com o romantismo malandro de Danislau, uma defesa do solipsismo e do amor boêmio que não parece mais caber neste presente tão coxinha.

Portanto, nos reveses de amores desperdiçados, perdidos, almejados e descumpridos da sequência com poemas de Clara Averbuck, Alice Ruiz, Drummond e Marcelino Freire (e a participação de Suzana Salles também simboliza uma viagem no túnel do tempo, que neste caso nos leva às portas do Lira Paulistana na praça Benedito Calixo) está o “núcleo duro” do disco de Banzo, que logo se revela macio e pulsante feito coração de poeta.

Quase ao final, a deparação com a máxima ditada por Leminski soa como um lema: “it’s only life but I like it”. Como se a paráfrase de Jagger e Richards não fosse suficiente, a voz de Banzo emite o seu próprio parecer: “se as almas se encontraram/ foi por se juntarem os corpos.”

A canção não está morta, como disse o Chico, estava apenas escondida nas entrelinhas do poema.

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