Uma amiga e ex-colaboradora de Leirner relembra a iconoclastia e as traquinagens do artista, morto aos 88 anos no dia 7 de março, no Rio de Janeiro
Por Melina Dalboni
Uma das principais regras do jornalismo é não se envolver com seu entrevistado. Mas quem inventou essa regra não deve ter conhecido Nelson Leirner, um dos mais instigantes artistas brasileiros. Um artista genial não morre; permanece, porque agora ele é sua obra. Foi difícil e absolutamente encantador reler as dezenas de e-mails que trocamos em 2010.
Como então repórter de um jornal carioca (O Globo), eu o convidei para criar uma obra de arte para ser publicada como capa e sobrecapa. Sempre interessado em plataformas e materiais cotidianos, ele aceitou e começamos a desenvolver o projeto. Foram sete meses de encontros com o artista e sua mulher, a igualmente adorável e encantadora Liliana Leirner, no apartamento deles no Jardim Botânico, que é em si uma instalação: Monalisas nas prateleiras, objetos de pet shop que lembram brinquedos eróticos e ficam reunidos sobre uma das mesas, estante envelopada com a logomarca da Louis Vuitton repleta de Mickeys, Gatos Felix e santinhos.
Nelson pertenceu a uma geração de artistas brasileiros em que obra e artista eram indivisíveis, a existência de um correspondia à vivência do outro — sem grandes estratégias e planejamentos, apenas por necessidade artística de se expressar daquele modo. “Nunca fiz nada pensando em provocar um resultado, tudo foi acontecendo. O artista não provoca. E, na vida, você também não provoca. As coisas acontecem ou não acontecem”, ele disse na época.
Estes encontros em que ele desenvolvia a obra e em que nós conversamos sobre como dar-lhe o suporte necessário terminavam nos fazendo sempre refletir sobre a própria vida a partir do modo como ele olhava o mundo. Sua forma de criar era absolutamente criativa e lúdica. Numa das reuniões, que aconteciam cerca de uma vez ao mês, ele deixou a sala de jantar, atravessou o corredor e sumiu por uns instantes. Voltou com uma imagem de Santa Luzia de 10cm e uma série de figurinhas estampadas com os rostos da macaca e do macaco, que compõem sua obra. Com a ajuda da designer Ana Laet, o artista plástico recortou as figurinhas em forma de máscaras e fixou no corpo da santa como se fosse um vestido curto sem alças. A partir desse protótipo surgiu a obra Macaco ou Macaca that is the question, que vestiu Mariana Ximenes para a capa do jornal.
Minha experiência com Nelson mudou minha forma de perceber o meu próprio trabalho. Deboche, afeto, ausência de regras e de controle e inteligência permeavam nossa relação e também nos confundiam. Mas é que para Nelson nunca existiu vida separada da obra. A ironia com que este artista iconoclasta questionava os parâmetros da supervalorização da arte, da adoração da imagem e de seu status atravessavam a arte e eram seu próprio cotidiano. Mais do que explicar, ele sempre se divertiu, se rebelou e se dedicou a confundir. Pessoas próximas e espectadores — não havia diferença.
Conforme fomos construindo a reportagem-obra, me deparei, emaranhada e encantada, com inúmeros jogos que ele propunha na vida real. Traquinagens, como chamava, ou não. Para começar, e-mails respondidos na forma de diálogo:
Oi Nelson,
Oi menina transparente
Desculpe a correria, ainda não te escrevi com calma.
Como seria você me escrever com calma?
Minhas provas acabaram ontem (enfim, o fim) e aqui está uma loucura com tantas páginas por conta do Natal.
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Não consigo te visualizar correndo, toda descabelada, sempre que te vi você estava impecável e intocável.
Mas só para avisar, decidimos fazer a foto semana que vem mesmo.
Ótimo, mas daria para você me adiantar alguma coisa? Será de dia ou de noite? Pois deixei livre segunda e quarta, night and day for you.
Daí, no mesmo dia, vou te entrevistar. Pensei em chegar um pouco mais cedo.
Tomo meu breakfast geralmente às 10h.
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Bjs, Mel
Bjs, Nel
Hoje, relendo dezenas de e-mails-diálogos que trocamos, senti por não ter tido a coragem de aceitar um de seus jogos por temer a falta de controle e a dificuldade de preservar a chamada imparcialidade jornalística que tanto se aprende nos manuais. Talvez fosse imaturidade dos meus 29 anos diante da experiência e inventividade de um artista, na época com 78 anos, que me impedia de perceber que o desconhecido é quase sempre o caminho a seguir:
Quero escrever muito
por isto escolhi esta maneira
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como no jornal
em colunas
quero falar sobre altar
coincidência?
ou energias próximas?
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sabe o que eu gostaria
que você tivesse uma gaveta
aonde você guardaria minhas cartas
que ela ficasse pequena
aí você teria um armário
quanta coisa que vejo
que ligo a você
à tarde fiz um desenho
que vou te mandar
“rumo a uma estrela”
seria o primeiro da gaveta?
Agora pouco fiz o 2º da gaveta
“um passeio pelo céu”
Mandei hoje um postal
holográfico
mas para mim significativo
as respostas se alternam
e eu nada sei
Num dos últimos e-mails que trocamos, eu lhe escrevi: “Não desista da minha amizade. Embora eu seja mais jovem, sinceramente, parece o contrário”. Não tivesse censurado a linha tênue dos manuais de jornalismo hoje, em vez de ler seus e-mails, eu abriria suas correspondências, que estariam numa gaveta, guardadas em segredo para mim mesma, como ele propunha, para abrir só depois que ele não estivesse mais aqui. E me sentiria mais próxima deste artista, um amigo, definitivamente um gênio que este mundo careta não está a merecer.