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“Para ensinar é preciso vocação e devoção”

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h26 - Publicado em 28 set 2017, 04h39

Rafael Spaca completa a série com grandes desenhistas brasileiros com o mítico professor Daniel Azulay

Por Rafael Spaca

Como um bacharel em Direito se tornou uma das maiores referências em desenho no país?

Desde que me conheço, antes de aprender a escrever, já estava sonhando e rabiscando com um lápis na mão. Com o dedo na poeira do vidro do carro, na cobertura do bolo da minha avó, que estraguei, e nos livros encadernados da biblioteca do pai. Com cinco anos passei a ponta de uma tesoura riscando as lombadas, pergunta se fiquei de castigo? Sou autodidata, fiz um cursinho por correspondência e recomendo três coisas para quem quer progredir no desenho: 1) desenhar 2) desenhar 3) desenhar. O resto acontece naturalmente.

O que veio depois: o artista plástico, o educador ou o desenhista?

Primeiro o desenhista. Depois educador e artista plástico. Mas desenhar é uma atividade constante e permanente.

Quais eram as suas principais referências em desenho? Tem algum mestre em especial que te guia?

Não, não dá para acreditar que um mestre faça milagres no trabalho da gente. Pode aprimorar nossa técnica a partir da observação, estudo, pesquisa. Mas a criação é individual e autêntica quando pessoal. Você pode ter influências, mas o produto final tem que refletir a sua personalidade artística, sua criatividade e imaginação. Minhas grandes influências de traço e desenho são Saul Steinberg, Ralph Steadman, Al Hirschfeld e, o maior de todos, J.Carlos. Na pintura, são referências eventuais, o dripping (gotejamento) de Jackson Pollock, o surrealismo de Magritte, o pop de Warhol, Lichtenstein, tem Miró, Vassarelly e a Toy-Art passando por Takashi Murakami, tudo misturado no liquidificador. É uma vitamina que não tem tamanho.

Desde sempre você imaginava que seu trabalho teria uma ligação no campo da educação?

Não necessariamente. A partir de 1975, quando comecei a ilustrar aulas de História do Prof. Renato Azevedo na TV-E, ganhei experiência durante um ano desenhando em frente às câmeras. Depois, quando ganhei um programa infantil na emissora, decidi criar no Brasil um projeto de educação e entretenimento nos moldes do edutainment do Vila Sésamo, lançado nos EUA pela Children’s Television Workshop.

Quando descobriu que tinha a vocação para transmitir conhecimento?

Em 1976 quando comecei a apresentar os primeiros programas na TV que ficaram no ar pela Rede Educativa e Bandeirantes até 1986. Depois na Band –Rio de 1996 a 2001. Depois (“Azuela do Azulay”) no Canal Futura em 2004 e 2005 e depois no Canal da TV Rá-Tim-Bum da TV Cultura de São Paulo.

Nunca pensou em dar aula em escola ou faculdade?

Já, mas nunca de forma permanente por causa da minha produção, que é bastante diversificada e exige tempo de fazer arte, lançamentos, exposições e muitas, muitas viagens.

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Muitos sabem executar seu ofício, mas poucos são os que conseguem ensinar. Qual é o segredo?

Para ensinar é preciso vocação e devoção, o professor responsável tem que ter consciência da sua missão. Ele motiva, incentiva e contribui com o aluno para auxiliar o aprendizado. Nas aulas de desenho, ilustração e pintura recomendo aos alunos que observem a metodologia de ensino do professor ou professora. Se o aluno só recebe críticas a ponto de se sentir culpado por não aprender, é hora de avaliar se o mestre não tem competência e equilíbrio emocional para ensinar.

Ensinar para criança é mais difícil ou é maior a responsabilidade?

As duas coisas. Mas não é que seja difícil. Já disse diversas vezes que trabalhar com crianças é fácil ou impossível. Ou você fica inteiramente à vontade e interage com elas ou então vai ser difícil, elas percebem o lapso de comunicação e dispersam. Sem a menor cerimônia puxam o celular do bolso e saem do ar com um joguinho na palma da mão.

Você usou a televisão quando poucos tiverem a ideia de usá-la para propagar conhecimento e se popularizar. Quando teve essa sacada? Como surgiu a ideia?

Realmente foi um esforço enorme chegar à televisão. O objetivo era sair do varejo e alcançar no atacado um público maior do que os leitores dos jornais onde eu estava distribuindo as tiras em quadrinhos da Turma do Lambe-Lambe como um caixeiro-viajante, circulando por vários estados de norte a sul visitando redações de jornais.

Como define sua didática?

Lancei em 1983 um Método pioneiro de Desenho com o conceito © Alfabeto Visual. Um sistema paralelo ao método de alfabetização para escrever, que utiliza a memória visual para aprimorar o desenho como forma de expressão a partir dos seis anos, independente de dom, talento ou vocação.

E seu traço?

Meu traço é uma metamorfose ambulante. Sou inquieto e curioso por natureza, em constante movimento e transformação. Se um eletro pode registrar os batimentos cardíacos, meu traço é a linha da minha vida, na palma da minha mão, na ponta do lápis ou invisível nas obras sem contorno.

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Seu traço estampou também os livros que lançou e outros que foi convidado a ilustrar. Acredita que pelo fato de se tornar popular, uma figura conhecida, a celebridade ofuscou o desenhista?

Conversa fiada. Quando a gente se torna conhecido, o clichê mais comum é achar que quem tem “fama pode descansar e deitar na cama”. Mas cada trabalho é sempre um novo desafio, sempre uma nova descoberta.

Os jogos interativos, no videogame, foram um ato de loucura num país que ainda engatinhava nessa história?

Em 1976 lancei de forma pioneira os primeiros jogos de raciocínio (“Telegames”) na TV Educativa, os primeiros da TV aberta em rede nacional. interativos. Depois lancei os primeiros CD-ROMs interativos com recursos de multimídia.

Você sempre estava antenado às tendências?

Sim, editava um jornal infanto-juvenil que criei chamado M&VG, Micro e Videogame.

A Turma do Lambe-Lambe foi o seu maior feito na vida?

De forma isolada não, mas foi uma realização gratificante, um sonho realizado ter dado vida a cada um dos personagens que marcaram a geração dos anos 80.

O que te inspirou a criar cada personagem deste universo da Turma do Lambe-Lambe?

O Prof. Pirajá, meu amor pelos livros, a busca do conhecimento. Gilda, a vontade de aprender tudo, autodidata. Pita, o mágico, a Xicória, galinha caipira e cobaia das experiências do Prof. Pirajá.É como um caleidoscópio, a personalidade dos personagens vão se definindo nas histórias e desenhos em quadrinhos.

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Onde teve maior projeção, na TVE ou na TV Bandeirantes?

Na Bandeirantes com a chegada de Walter Clark, que havia saído da Globo. Passei a fazer shows em todo o Brasil, a compor músicas para o programa, a gravar discos e lançar livros, produtos e brinquedos.

Você estreou em 1976 e apresentou durante quinze anos seguidos programas de tevê educativos e inteligentes para o público infantil. Por que te deram essa oportunidade de ter um programa só seu?

Por duas razões. Trabalhei de graça para a emissora durante um ano ilustrando aulas de um professor de história. No ano seguinte eu reunia todas as condições para conduzir um programa pioneiro no gênero, aliando educação e entretenimento.

Era difícil a concorrência com Xuxa, Mara Maravilha e outros programas infantis?

De certa forma, sim, mas o mais difícil era convencer as emissoras a investir no meu programa. As condições de trabalho eram difíceis para não dizer precárias. Na TV-E cheguei a gravar dez programas sem edição em um só dia para compensar a falta de estúdio de gravação e equipamentos disponíveis na semana.

Concorrer com apresentadoras com visual sensualizado era mais difícil do que concorrer com as emissoras a elas associadas?

O público sempre soube diferenciar os programas de estilo Xuxa e as propostas mais educativas dos programas tradicionais. Aliás, é o tipo de conteúdo educativo sem ser didático que prevalece em países de primeiro mundo.

Seus concorrentes faziam entretenimento, buscando audiência. No seu caso, o foco era a educação. Ser diferente era a sua única opção ou um dever?

Nunca gostei de ser obrigado a fazer algo mesmo por dever. Sempre me senti mais confortável fazendo um trabalho que ampliasse a diversão, agregando o valor do conhecimento e do aprendizado. Diziam que o programa não “dava Ibope”. Os índices de audiência eram ridículos, na TV-E dava traço. Como isso é possível? Estamos no século 21, estou com setenta anos e uma geração inteira me agradece com dois milhões de acessos no Facebook porque meus programas animaram sua infância e contribuíram nas suas carreiras e escolhas profissionais…Como dizia Millôr Fernandes: — “Viva o Brasil, onde todo dia é Primeiro de Abril!!”

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Acredita que foi um revolucionário num certo sentido?

Com certeza. E pioneiro dos primeiros telegames para crianças da TV aberta em todo o Brasil.

Você influenciou de forma construtiva a geração dos anos 80 que aprendeu contigo a desenhar, construir brinquedos com a sucata doméstica, a importância da reciclagem e sustentabilidade em defesa do meio ambiente. Não era muita coisa para transmitir?

Sim, mas alimentar um programa de uma hora diária em rede nacional era coisa pra xuxu, tinha que rechear de conteúdo diversificado e interessante. Tinha “Vamos Desenhar”, “Vamos fazer Brinquedos”, “Convidado Especial’” , Telegames, Correspondência, Vamos Contar Histórias, Reportagem Externa, Musicais etc, etc.

Por que não há nenhum programa parecido com o seu na tevê atualmente? Essas temáticas não são importantes nos dias de hoje?

Há muita opção e canais de informação ao alcance da criança. Mais do que ela possa se fixar em uma coisa só. Os pais têm que orientar, incentivar além do estudo, a socialização e prática de esportes e exercícios ao ar livre.

Te reconhecem ou já te esqueceram?

Ah,ah, não tenho esse problema. Os pais não deixam, estão sempre me apresentando aos seus filhos, o que é uma honra e um prazer gratificante.

Qual foi o maior elogio que recebeu de alguém que te assistia e se transformou com os seus ensinamentos?

“Daniel, obrigado por ter animado, alegrado a minha infância, você foi muito importante para mim descobrir e exercer a profissão(*) que eu tenho hoje, e que é meu orgulho, dos meus pais e da minha família.” (*) desenhista, ilustrador, arquiteto, carnavalesco, cientista de robótica, estlista de moda, artista de circo, palhaço, recreador, professor de música, etc, etc…

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E a maior ofensa?

Todas as vezes que me programa saiu do ar.

Muitos dos seus telespectadores viraram desenhistas?

Sim, animadores, cartunistas, ilustradores, web designers, de computação gráfica, até confeiteiro premiado de bolo artesanal. Já tive contato com todos eles e os depoimentos são de emocionar!

Era mais importante ensinar a desenhar ou fazer as crianças se familiarizarem com o desenho, educando o olhar e a sensibilidade?

O mais importante é respeitar a individualidade e o tempo de cada criança. Com orientação adequada e estímulo, cada uma desenvolve e descobre à sua maneira o seu potencial criativo e meios de expressão através da arte.

Atualmente você viaja pelo mundo expondo, fazendo palestras e conduzindo workshops de arte, educação e responsabilidade social. O que fala e o que escuta nestas ocasiões?

É sempre interessante e variado. Conviver e compartilhar meu trabalho com culturas diferentes é gratificante.Apresentei meu projeto social “Crescer com Arte” nos Estados Unidos e fiquei feliz com o Prêmio Ambev/Instituto Kanitz e reconhecimento pela International Child Art Foundation nos Estados Unidos. O programa Ação da Rede Globo, fez uma matéria completa sobre as minhas oficinas em entrevista com Serginho Groisman.

Gostaria que falasse das suas obras de arte contemporânea. O que te inspira e o que pinta?

Em 2006 lancei no Rio, um projeto de exposição itinerante chamado A Porta/The Door. Durante sete anos realizei exposições de arte contemporânea em Helsinque, Estocolmo, Lisboa, Nova York e Miami. As exposições e obras da mostra foram reunidas no livro de arte A Porta/The Door com edição bilíngüe. O projeto itinerante foi encerrado em 2013 com a Exposição na Galeria Arquivo Contemporâneo no RJ. Mais informações podem ser acessadas no site www.danielazulay.com.br/contemporaryart.

Não faz muito tempo você fez especiais para o Canal Futura e para a TV Rá-Tim-Bum. Como foram esses trabalhos?

No Canal Futura fiz Azuela do Azulay premiado com o Prix Jeuneusse de melhor programa infantil na categoria especial.Na Rá-Tim-Bum fiz uma série de tiras em quadrinhos em desenho animado, sentado na prancheta do meu atelier, com os personagens da Turma do Lambe-Lambe.

Quando voltou à tevê, o que sentiu de diferente da época do ápice do seu sucesso (TV Educativa e Bandeirantes), para aquele momento (Futura e Rá-Tim-Bum)? O que mudou na forma de fazer televisão e nas crianças que o assistiam?

A tecnologia mudou de forma definitiva o conceito do que é lúdico e de interesse das crianças.

Sente falta da tevê ou a internet supre essa lacuna?

A internet supre com vantagens. É um ambiente livre e democrático com audiência enorme e garantida.

A tecnologia deixou as crianças menos criativas?

Não, pelo contrário, além de mais criativas, mais bem informadas.

Você chegou a lançar discos, um deles com Lucinha Lins e Sivuca. o Daniel Azulay cantor é um grande desenhista?

Não, não preciso ser um grande cantor, gravei discos para dar o meu recado em linguagem musical que é essencial para o show-business. Havia um conflito de direitos autorais de outros artistas músicos em ceder suas músicas para o programa. Essa foi a principal razão porque passei a compor e a gravar minhas próprias canções para a TV e para os shows. Foi mais um aprendizado, meu songbook está na internet à venda pela Vitale com prefácio de Ricardo Cravo Albim e apresentação de músicos como Roberto Menescal, Carlos Lyra, Celso Fonseca e Henrique Cazes, entre outros. Estudei Harmonia e Violão nos anos 60 e 70 com Oscar Castro Neves, David Tygel, Wanda Sá e Almir Chediak que foram meus professores. De forma alguma me tornei um exemplo do tipo que como “cantor é um grande desenhista”.

Atualmente você capitaneia o projeto social Crescer com Arte, dirigido para crianças e adolescentes. Fale a esse respeito.

Surgiu há quinze anos como uma bolsa de estudos para quem não podia freqüentar minhas oficinas de desenho. É um projeto bem-sucedido, voltado para crianças de comunidades em situação de risco social, mais informações sobre as entidades beneficiadas podem ser acessadas no site www.danielazulay.com.br

Por tudo que fez ao longo da sua trajetória profissional, acha que é reconhecido à altura ou não?

Pra ser sincero, ando tão ocupado que nem parei pra pensar nisso.

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