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Poelatria

Por Bravo
Atualizado em 21 set 2022, 22h13 - Publicado em 24 mar 2021, 08h10

Uma conversa sobre processo criativo, influências, humor e (claro) poesia com Leila Míccolis

Por Carlos Castelo

Leila Míccolis é poeta, ensaísta, romancista, contista, roteirista, dramaturga e editora. Estreou em poesia com o livro Gaveta da Solidão. Foi também publicada na antologia 26 Poetas Hoje, em 1975, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda. Sua produção poética, de 1965 a 2012, está no livro Desfamiliares. Nesta quinzena, Leila Míccolis responde às perguntas de Poelatria.

O que é poesia?

LM — Gosto muito da definição de arte da Tulipa Ruiz: “arte é decupar a atemporalidade do agora”. Direcionando o foco para a poesia, sinto-a mais como os gregos a percebiam: enquanto poética, uma ação muito mais ampla do que o fazer poético; ou seja, não apenas como a arte de escrever versos, mas como parte da physis, da natureza, do movimento ininterrupto da vida. E já que em sua essência originária a poética é sempre permanente e atual, eu diria que a busca da poesia, para mim, é encontrar o agora de todos os tempos.

A Musa a conduz e não você a ela? Ou, para você, o processo é mais “disciplinado”?

LM — Bom… minha musa nunca foi diáfana… e continua sendo palpável, com certa audácia rebelde. Nem sempre, porém. Como minha literatura não se direciona apenas à poesia, em alguns formatos de textos preciso ser muitíssimo disciplinada e obediente, para inclusive conseguir cumprir prazos implacáveis.

Como se dá o seu processo criativo?

LM — Não é único, é diversificado, depende do tipo de texto literário do meu momento: novelas de televisão e ensaios acadêmicos precisam de “enredos” anteriores à elaboração dos respectivos capítulos. Crônicas e poesia vêm de insights do mundo à minha volta, através de alguma percepção incomum, muitas vezes contidas apenas em uma palavra-chave que anoto, por senti-la o centro da concepção, mas que nem sei a princípio onde ela vai me levar.

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Existe algum autor (ou autores) pelos quais você se sente mais influenciada?

LM — De início, minha poesia só recebeu críticas negativas, em 1976, do tipo “isto não é poesia, mulher não escreve assim”… Quando pararam as pedradas a ela, tentaram entendê-la através de alguns cânones insubmissos: Rimbaud, Mallarmé, Baudelaire, Gregório de Mattos, poetas que na época eu nunca tinha lido. Então, o poema a seguir penso que ele responde sua pergunta, tem tudo a ver com toda essa minha experiência, e se intitula AUTODIDATA: Sofri / a influência de muitos poetas / que nunca li.

A ironia, o humor, a crítica são características de versos com maior presença da logopeia. Você se considera uma poeta que vai mais nessa linha?

LM — Quando associam a logopeia a estas construções poéticas, sempre traduzo a fala como alguém dizendo: “esse tipo de poesia é um mero jogo de palavras”, ou seja, sempre capto nesta afirmação um subtexto depreciativo. Quem se expressa assim não sabe ou não nota a sutileza da categorização de Ezra Pound, abordando a logopeia como a dança das palavras, justamente a parte reflexiva da linguagem (nas três esferas poéticas a melopeia mergulha no som e a fanopeia, nas imagens, no imaginário). Reflexão é diferente de racionalidade; e a ação reflexiva se dá justamente por ser a linguagem poética conotativa, constituída de figuras de linguagem, sentidos figurados, duplos sentidos, relações, referências, subtextos. Então existe este balé inerente a ela, esta interconexão essencial à sua construção, esta espécie de frame coreográfico. E é justamente esta ligação sutil que faz com que a poesia exerça plenamente suas funções, trazendo para si outros sabores e saberes, como Barth propunha. Além do mais, sabemos que em teoria literária ironia, humor e crítica não são sinônimos. Cada um tem características e processos criativos específicos. A ironia, mesmo com tom de sarcasmo, é um recurso dramático (Brecht o usava muito em seu teatro épico, didático). O humor é um estado de espírito, e a crítica (que pode ser humorada ou irônica) é uma atividade intelectual analítica. Para aumentar ainda mais a complexidade, cada uma dessas ferramentas tem seus graus, níveis e matizes. Portanto, colocar as três no mesmo patamar é no mínimo reducionismo. Na poesia, talvez o elo que as liga é a sensação de incômodo que as três causam, porque desconstroem, rompem com a visão tradicionalista de que o fazer poético seria apenas a procura do belo, dentro dos padrões convencionais.

Humor, em poesia, por vezes é visto como algo “menor”? Há até quem diga que humor não se coaduna com a lira. Qual a sua opinião sobre esse ponto de vista?

LM — Parece-me que pela própria cultura, nós, latino-americanos, valorizamos mais os dramas do que as comédias, mais os choros e lamentações do que o riso (daí o sucesso dos folhetins e das telenovelas). A tragédia é catártica, o riso é demolidor — como no O Nome da Rosa, de Humberto Eco, aliás uma obra extremamente séria. É que o riso é capaz de afrouxar a rigidez dogmática, exercendo uma crítica antiformalista e propiciando um desmoronamento de dogmas, o que — para os ascetas moralistas — levaria ao caos. Mais do que ameaça, um perigo mortal. O riso é assim… perigosíssimo. No ocultismo, chega a desfazer certos feitiços, como no filme As Bruxas de Eastwick… As lágrimas são mais valorizadas e emocionantes do que as alegrias e os sorrisos, não apenas na poesia, mas no próprio cotidiano. E isso vem de longe, não é de hoje. Ouvi durante minha infância toda o provérbio: “muito riso é sinal de pouco siso” — como se rir necessariamente suprimisse as capacidades analíticas ou cognitivas de alguém. Além do mais, como seria a aferição deste “muito” riso, qual o percentual? Quanto à poesia, creio que já respondi a esta pergunta, mas vale insistir: para setores mais convencionais, quaisquer modulações poéticas que rompam com a rígida estética clássica são antipoesia.

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Uma do Questionário Proust: por qual defeito você tem menos tolerância?

LM — Toda vez que ouço a palavra tolerância me lembro de Paul Claudel: “Tolerância? Há casas para isto”. Não chego a ser tão drástica, mas convivo muito mal com certas rimas em “ismos”: autoritarismos, exibicionismos, estrelismos, achismos, fascismos, dogmatismos, nepotismos, favoritismos, proselitismos, extremismos, fanatismos, belicismos, revanchismos, racismos, barbarismos, terrorismos, escapismos, farisaísmos, falsos moralismos e outros ismos como tais.

Para Mallarmé, poesia “se faz com palavras, não com ideias”. Você concorda com a afirmação?

LM — Uma vez foram perguntar ao grande Fellini o que ele achava da frase que Visconti afirmara em público: “Todo mau diretor tinha o nome terminado em “INI”. Fellini riu gostosamente e revidou a provocação com bom-humor: — “Isto só pode ser coisa do Viscontini”… Pois esta frase de Mallarmé foi dita dentro deste mesmo clima, quando Degas disse a Mallarmé que ele tinha boas ideias, mas que elas não acabavam em poemas; e ele contra-atacou dizendo que poesia não se faz com ideias, mas com palavras, atingindo o ponto fraco de Degas que não tinha nenhum domínio verbal… Ou seja: um chamou o outro de mau poeta e o outro deu o troco, reduzindo o grande artista plástico a um desenhista, a um mero pintor de formas abstratas… Foi só uma alfinetada, que deixou Degas sem palavras… literalmente. Não creio ter sido uma profissão de fé, ou uma declaração de princípios. Brilhante como era, lógico que Mallarmé tinha consciência de que toda poesia linear (com palavras) necessariamente articula ideias. Também não penso que ele quisesse dizer que se você não verbalizar suas ideias, elas só existirão dentro de sua cabeça (Mallarmé não gostava de ser óbvio, nem de falas-chavões). Por isso, deduzo ter sido apenas uma frase dita no calor de uma situação tensa entre dois gênios, em que um provocou, e o outro respondeu à altura; assim como não creio que Luchino Visconti e Federico Fellini achem-se mutuamente diretores medíocres… os comentários ferinos dos dois soam-me mais como uma divertida e inteligente jogada publicitária, intuito diferente do ocorrido no tempo histórico de Mallarmé (semelhante, mas não propriamente igual…).

Você tem algum projeto de novo livro?

LM — Tenho vários: três livros de poesia, dois acadêmicos (adaptações de minha tese de doutorado e de meu ensaio de pós-doutorado na UFRJ), dois didáticos (de carpintaria teledramatúrgica e de construção poética), todos à espera de editora. Você sabe de alguma que se interesse?

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