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Por que ler Rousseau hoje?

Por Bravo
Atualizado em 21 set 2022, 22h15 - Publicado em 1 jul 2020, 05h50
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Em entrevista, Pedro Paulo Pimenta, professor de filosofia da USP e organizador do livro “Rousseau — Escritos Sobre a Política e as Artes”, lançado pela editora Ubu, fala sobre a atualidade do pensador do século XVIII

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Jean-Jacques Rousseau na pintura de Allan Ramsay (1766)

Por Caio Sarack*

O que tem a nos ensinar um pensador que viveu suas experiências políticas num tempo tão distante e essencialmente distinto? A característica inaugural do pensamento filosófico especulativo foi a intenção de encontrar a Verdade, com maiúscula, em detrimento da veracidade, algo — digamos — mais aproximativa. As origens da filosofia podem nos levar a entender o método e interesse que Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), ainda no século XXI, pode produzir no seu leitor: se a verdade sobre a soma simples de 1 e 1 sempre me leva ao mesmo resultado, por que não podemos procurar certa imobilidade e universalidade nos conceitos político-históricos ou sobre os caminhos dos gêneros artísticos?

A hipótese rousseauista aparece para nós como um salto, ao mesmo tempo, de crença e ciência. Sua crítica à ciência porém não pode colocá-lo na mesma trincheira dos terraplanistas e antivacinas, mas deve sinalizar ao leitor que sua postura é de alguém que não busca na descrição direta e indiferente o caráter científico, mas na persuasão que move a racionalidade sensível de um humanista. A verdade e a virtude são indissociáveis para o filósofo, o sujeito que conhece é o mesmo que ajuíza sobre o justo.

O livro que tenho em mãos é resultado do belo trabalho editorial e crítico da edição da Ubu, Rousseau — Escritos Sobre a Política e as Artes, que conta com a organização do professor da Universidade de São Paulo, Pedro Paulo Pimenta, e apresentação de seu colega de departamento na USP, o professor Franklin de Mattos. A edição reúne todos os principais trabalhos do filósofo de Genebra, personagem incontornável da filosofia política que cimentou muitas das bases revolucionárias do fim do século XVIII e dos princípios republicanos que persistem em nosso imaginário político.

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Num dos itens do primeiro capítulo de Por que Ler os Clássicos?, do italiano Italo Calvino, lê-se que toda primeira leitura de um clássico é uma releitura. Com a obra de Rousseau, o mesmo não só se verifica, mas também teimosamente se contradiz: o texto filosófico está tão atrelado ao seu belo uso discursivo que parecemos jovens sendo seduzidos: “Sei de antemão com que pomposas palavras atacar-me-ão: luzes, saberes, leis, moral, razão, decoro, gentilezas, docilidade, amenidade, polidez, educação etc. A tudo isso responderei apenas com outras duas palavras, que soam de forma ainda mais intensa a meus ouvidos: ‘virtude, verdade!’, exclamarei continuamente.”

O tom acalorado de que tudo está em jogo quando estamos contra os ataques à virtude e à verdade mobiliza nossos humores. Saber, hoje, que estávamos à porta da Revolução e reconhecer na tinta do filósofo o ânimo coagulado de um século, faz a vez de sedução suficiente para o novo leitor ingressante sem que ele tenha de obrigatoriamente comparar sua empolgação aos estudos que se fez de Rousseau por Jacques Derrida, Claude Lévi-Strauss, Bento Prado Jr., Luiz Roberto Salinas Fortes ou Jean Starobinski.

Não só de sensibilidade, porém, vive o homem, mas de toda a tecnicidade do poder e sua burocracia. Do contrato social ao contrato de multinacionais, muito se passou e transformou a compreensão do que é legítimo ou ético em tempos de outras revoluções: sai a Francesa, entra a Informacional e a da Inteligência Artificial. O que tem a nos dizer o filósofo genebrino?

“Desigualdade é, a um só tempo, um dado natural e uma realidade política — o que faz dela uma questão tão incontornável quanto intratável”, diz o organizador da edição, Pedro Paulo Pimenta. Em tempos de avanços técnicos inimagináveis, como ser capazes de configurar um contrato que leve em conta a fome e miséria de alguns e o lucro e dividendo de outros? Se a desigualdade pode ser descrita na natureza, isto não nos permite dizer que a realidade política é o seu mero desenvolvimento causal, legitimando todas as assimetrias que, tanto na época do XVIII quanto hoje, como se houvesse uma fórmula na cabeça humana que determinaria todas as relações básicas e complexas da sociedade.

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Aí está uma força de análise que poderia inflar os pulmões da ciência política de hoje: e se, como Rousseau apontou o erro de Hobbes, estivéssemos tomando como naturais as dinâmicas sociais? E que a resistência em negociar e debater certas conformações sociais são muito mais o sintoma de uma luta entre forças contrárias do que de fato a descrição verdadeira de uma natureza humana? A gravura que ilustra a bela capa (L’afficheur, de Étienne Fessard) toma um sentido interessante para nós: fixando o cartaz no espaço público de modo nostálgico, o homem de costas é incógnito para que possa ser todos nós, interessados na discussão franca e implosiva, necessária para revermos nossos contratos.

Leia a seguir a entrevista completa com Pedro Paulo Pimenta.

Professor, a primeira pergunta (apesar do risco de ser reducionista) que surge para os leitores práticos diante de uma coletânea de escritos do século XVIII, é aquela sobre a sua validade ou pertinência nos dias de hoje. Tal questão, aliás, assume ainda mais intensidade pelas demandas mui utilitárias às quais estamos submetidos e sua pouca exigência na qualidade das respostas. De modo que lhe pergunto mais diretamente: por que ler Rousseau hoje? E ainda: o que significa reeditar Rousseau hoje?

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Rousseau é um autor clássico. Grande escritor, mudou a língua francesa e a literatura europeia. Filósofo original, renovou a filosofia política, a reflexão sobre as artes, a moral. Como todo clássico, merece ser lido por si mesmo, mas guarda ressonâncias para a nossa época. E não adianta tentar alinhá-lo às nossas marcações ideológicas, porque Rousseau não é um autor programático. Ele nos interroga, e exige que tomemos posição frente a uma filosofia marcada por certa concepção da espécie humana e do mundo que ela habita — que é um mundo natural, clivado pelo social. Nisso tudo, tem lugar central o problema “da origem e dos fundamentos da desigualdade entre os homens”, pois essa desigualdade é, a um só tempo, um dado natural e uma realidade política — o que faz dela uma questão tão incontornável quanto intratável.

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O solo conceitual que Rousseau providenciou para as declarações modernas de direitos e, sobretudo, as reflexões sobre suas atividades práticas e políticas na coletividade ainda tomam certo tom atual e radical quando folheamos seu Contrato Social ou o Discurso sobre a Desigualdade. A escrita de um projeto pragmático, no entanto, não é a intenção de Rousseau com seus textos, certo? De que modo, portanto, a radicalidade de Rousseau pode nos conduzir na reflexão sobre as relativizações de direitos humanos e dos recentes matizes em que se apresentam as desigualdades dos homens (e mulheres)?

Os escritos de Rousseau foram lidos, admirados e criticados pelos mais diversos filósofos, e isso aconteceu desde o momento em que foram publicados. Em especial, seus textos políticos tiveram profundo impacto, com ressonâncias imediatas em eventos políticos de monta, como a Guerra de Independência norte-americana, a Revolução Francesa, ou a rebelião dos escravos no Haiti, para mencionarmos apenas alguns. Mas Rousseau não fornece um programa de mudança social ou política, e mesmo o Contrato Social é uma obra de crítica e reflexão, que ensina a ver de uma nova maneira as instituições políticas e econômicas, mostrando o seu lastro nas características de nossa espécie e apontando para as limitações e contradições inerentes a elas.

Outro ponto que sempre me cativou na filosofia moderna, principalmente a iluminista, foi a importância do espaço público não só na divulgação de seus pensamentos (cartas, revistas, concursos, cafés etc), mas também em fazer de seu tempo o próprio campo em que conceitos políticos complexos como liberdade, coletivo e instituições (que remontam larga tradição) podem ser postos à prova. Em tempos de ciência política quantitativa e análises de surveys, como Rousseau nos preveniria a não reduzirmos todas as relações políticas às estatísticas e à coleção de gráficos?

Rousseau não foi cientista político, economista ou sociólogo, embora tenha tratado de temas que depois entraram no rol de preocupações dessas ciências. Via-se a si mesmo como um naturalista, a quem cabia estudar o homem, animal dotado de sensibilidade própria e de uma faculdade — a razão — que se consolida no uso dos signos, ou da linguagem. Daí o lugar central das artes em seu pensamento, que não tinha pendor estético, mas antes, se quisermos, era de feitio “linguístico”, como perceberam, aliás, alguns de seus melhores leitores (Derrida, Lévi-Strauss, Prado Jr., Salinas Fortes, Starobinski). Por trás do encanto de sua prosa magnífica, Rousseau era um filósofo rigoroso, sistemático mesmo, e na sua época o rigor não era confundido com exatidão. Era uma qualidade indissociável da filosofia, que se ocupa do trabalho do conceito.


*Caio Sarack é mestre em filosofia pela USP e professor do Instituto Sidarta e do Colégio Nossa Senhora do Morumbi.

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