Continua após publicidade

Por um teatro político movediço

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h45 - Publicado em 14 out 2016, 08h23

Por Gabriela Mellão

Ápice da experiência de transpor para os palcos a literatura do nosso continente, A Comédia Latino-Americana, de Felipe Hirsch, convida o espectador não apenas para uma reflexão sobre o país, mas também sobre a essência do teatro de pesquisa

Fotos: Patrícia Cividanes/Divulgação

Em cartaz desde a semana passada em São Paulo, A Comédia Latino-Americana é aparentemente o fechamento do ciclo, iniciado em 2013 pelo diretor Felipe Hirsch, dedicado a transpor a literatura do nosso continente ao palco. Representa, assim, o sumo da experiência adquirida em A Tragédia Latino-Americana e nas quatro versões de Puzzle que formam o ambicioso projeto do diretor curitibano. No todo, contabilizam-se seis espetáculos, mais de 20 horas de encenação e duas perguntas primordiais: como entender esta pátria paradoxal denominada Brasil? E o que é de fato teatro experimental?

Na ânsia de se debruçar sobre rumos e ambivalências de seu país, servindo-se de fragmentos de narrativas sobretudo de escritores desconhecidos da maioria dos leitores brasileiros (caso do argentino J. P Zooey e da chilena María Luisa Bombal), Hirsch propõe uma experiência incomum ao espectador ao mesmo tempo em que o convida a uma reflexão sobre a essência do teatro de pesquisa.

Em sua extinta Cia. Sutil ou fora dela, em montagens como Viver sem Tempos Mortos (em que Fernanda Montenegro se despe de qualquer traço de teatralidade para dar vida a Simone de Beauvoir), o diretor persegue o dito teatro experimental, denominador comum a montagens norteadas por investigação. Do mesmo modo, desde que iniciou sua empreitada latino-americana, o diretor refuta a ideia de espetáculo. Apresenta ao público obras abertas, eternamente em processo, algumas vezes com elenco de texto em punho, sem, entretanto, abrir mão de matéria-prima da maior qualidade.

Continua após a publicidade

Hirsch se presta ao risco contando com um elenco de excelência de atores-criadores (Georgette Fadel, Rodrigo Bolzan e Caco Ciocler, entre outros), de cenários/instalações de sua parceira Daniela Thomas, impactantes tanto visual como conceitualmente, além de textos literários belos e pungentes. O encenador ambiciona pular do abismo. Seu salto se dá bem acompanhado. Pula agarrado aos atores, puxando o público pela mão. A queda é inconstante, encantadora especialmente por sua natureza descontrolada.

Páginas monumentais ornamentam a cena de Puzzle evocando a peregrinação de Felipe Hirsch em obras literárias que pudessem revisar inconsistências do passado e da atualidade do Brasil. Em A Tragédia Latino-Americana, o teatro político do encenador ganha elaboração simbólica: passa a representar muros que são incessantemente erguidos e destruídos em cena, sugestivos ao aventarem um Brasil em permanente reconstrução, hábil em avançar sem sair do lugar.

Os mesmos tijolos de isopor que compõem esses paredões ornamentam a atual Comédia. Após o rompimento da muralha inicial, os tijolos perdem seu valor metafórico. São espremidos na lateral do palco, relegados à estagnação e esvaziados de sentidos. Evidenciam fragilidade no próprio conceito da obra, composta por uma sucessão de cenas desconectadas cujo mérito reside principalmente em expor a vulnerabilidade dos atores e revelar ambiguidades de um Brasil solapado por séculos de contradições.

Se Hirsch busca um espectador entregue à experiência de seu teatro político instável sem travas ou julgamentos, ele ainda é mais exigente com seus atores. Priva-os de ações físicas, recusa marcações fixas, acrescenta e elimina cenas frequentemente — propondo inclusive sistema de rodízio entre o elenco, sempre fazendo uso de fragmentos literários inteiros, inadaptados à embocadura teatral.

Continua após a publicidade

O perigo é eminente e o resultado imprevisível a cada apresentação. Na noite da estreia paulista, Caco Ciocler compôs praticamente imóvel um Hans Staden inebriado com as riquezas do Brasil colonial (sua natureza adornada acima de tudo por bons e boas selvagens), apoiando-se apenas no vigor do discurso criado pelo escritor Reinaldo Moraes. Tornou sublime o experimento de seu diretor, revelando tanto o humor como a tragédia dos conflitos que incidem sobre a história do país.

______________

A Comédia Latino-Americana — Teatro Sesc Vila Mariana (rua Pelotas, 141, tel. 5080 3000) Quinta a sábado, às 20h; domingo, às 17h. Até 13/11. R$ 12 a R$ 40. Não recomendado para menores de 18 anos.

Publicidade