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Pulp superlativo

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h23 - Publicado em 7 dez 2017, 10h38

Aos 87 anos, R. F. Lucchetti contabiliza mais de 1.500 livros, além de 25 roteiros de filmes, 300 para HQ, 80 para televisão…

Por Rafael Spaca

Se a conta não estiver errada, são 1.547 livros escritos com pseudônimos, 32 livros assinados com o nome próprio, 25 roteiros de filmes já lançados (entre eles, Delírios de um Anormal, com Zé do Caixão; As Sete Vampiras, com Ivan Cardoso) e outros 25 roteiros à espera de algum produtor, 300 roteiros para histórias em quadrinhos, 80 scripts para a televisão (como por exemplo Além, Muito Além do Além, exibido pela Rede Bandeirantes entre 1967 e 1968), 100 seriados para rádio. Se não bastasse tudo isso, R.F.Lucchetti, esse inquieto senhor que fará 87 anos no início de 2018, ainda quer mais — agora, está lançando Cinco Bonecas de Olhos Vazados. Em breve, Poemas de Vampiros.

Escondido até pouco tempo atrás, foi graças ao poder das redes sociais que o “papa da pulp”, como é conhecido, foi redescoberto por uma nova legião de admiradores. Abaixo, um papo com o homem que não para — escreve, participa diretamente de todo o processo de produção do livro e os vende diretamente em sua página no Facebook.

O senhor está lançando Cinco Bonecas de Olhos Vazados. Esse livro é o de que número na sua bibliografia?

Desde 2013, eu separo minha carreira de autor em duas fases. A primeira delas foi de 1942 a 2012, quando escrevi 1.547 livros (a maior parte deles por encomenda e assinada com pseudônimos). Já nesta segunda fase, iniciada em junho de 2013, foram publicados 13 livros: Emir Ribeiro Ilustra Fantasmagorias de R. F. Lucchetti, As Máscaras do Pavor, O Museu dos Horrores, O Abominável Dr. Zola, Os Amantes da Sra. Powers, Rachel, Onde Está Blondie?, A Filha de Drácula, Noite Diabólica — Contos Fantásticos, O Escorpião Escarlate, As Sete Vampiras, Poemas de Vampiros e Cinco Bonecas de Olhos Vazados.

Além de Cinco Bonecas de Olhos Vazados o senhor irá lançar mais quantos livros ainda este ano?

Simultaneamente a Cinco Bonecas de Olhos Vazados, está sendo lançado Poemas de Vampiros, que marca a estreia da Editora Clepsidra.

O senhor é um dos poucos autores que tem um selo para chamar de seu. Como se deu isso?

Eu chamo isso de um milagre. Em abril de 2014, recebi a visita de duas pessoas com sotaque estrangeiro (um deles misturava o castelhano com o português). Fizeram uma espécie de entrevista comigo. A princípio, imaginei que eram jornalistas. Depois, eles revelaram que eram amantes de histórias de Suspense e Horror e que estavam fundando uma editora. Contaram também que haviam lido o livro Fantasmagorias e tinham se surpreendido com a qualidade dos contos e quiseram me conhecer. Conversamos um dia inteiro. Durante a conversa, mostrei a eles alguns originais inéditos e também alguns livros que poderiam ser republicados. Quando estavam indo embora, disseram que voltaríamos a conversar, pois queriam lançar livros meus. Não acreditei muito nisso. Porque tal coisa já havia acontecido em outras ocasiões. Uns dois meses depois, um deles voltou à minha casa, já com a proposta de criar uma coleção com o meu nome. A seleção dos livros a serem publicados nessa coleção ficaria a meu critério. E, como sabiam que eu era um amante de Edgar Allan Poe, batizaram a editora com o nome de Editorial Corvo. Ela iria publicar apenas livros de minha autoria. E o primeiro livro publicado foi As Máscaras do Pavor.

Como é a sua parceria com a Editorial Corvo?

Meu filho (Marco Aurélio) e eu temos de cuidar de tudo: a seleção dos livros a serem lançados, ilustrações, revisão/copidesque dos textos, diagramação, capa etc. Fomos nós também que tivemos de escolher a gráfica onde os livros são impressos. Talvez isso seja inédito no mundo: um autor profissional controlar de modo absoluto sua obra. A editora paga todos os custos. A venda é feita exclusivamente por mim, por meio do Facebook. Os livros não são comercializados em livrarias. E sou eu quem faz os acertos com a editora.

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Como funciona esse mecanismo?

Sou eu quem vende os livros. Todos os exemplares vendidos vão autografados e com dedicatória. São enviados pelos Correios. E estou surpreso com a quantidade de leitores. A cada mês, o número aumenta mais.

O que é a Coleção R. F. Lucchetti?

Será uma coleção de 15 livros principalmente dos gêneros de Horror e Suspense. Publicará também um de Ficção Científica: Gênesis Depois do Fim. São livros de 100 a 120 páginas. Todos ilustrados e com um prefácio a meu respeito ou sobre a minha obra. O formato deles é 13x18cm. A coleção já está no volume cinco.

Qual é o seu público?

É um público bem diverso. Tem universitários, homens de negócios, profissionais liberais, donas de casa, professoras, adolescentes. E há também os amantes do Horror e do Mistério.

Cinco Bonecas de Olhos Vazados é um romance autobiográfico? Em muitas passagens o senhor está presente… ou seria uma mistura de policial, horror e biografia?

O livro inteiro está fundamentado na metalinguagem, em que o autor interfere na trama e às vezes conversa com os personagens e os leitores. Ele é uma mistura de Romance, Suspense, Horror, Humor e Biografia. É um livro único na minha bibliografia.

Por que nesta o senhor se faz presente?

Porque Cinco Bonecas de Olhos Vazados é um livro experimental. Sempre quis escrever algo do gênero, em que pudesse extravasar todos os meus delírios (não são poucos). Pude fazê-lo nesse livro, cuja ideia me foi sugerida por Daniel Piquê, um músico brasileiro de Música Eletrônica. Foi um verdadeiro desafio escrevê-lo, ainda por cima no ano mais difícil da minha vida, em que tive de realizar quatro angioplastias. Há muitos anos eu tive um sonho em que havia a capa de um livro e o seguinte comentário: “Esta é uma história como há muito não se escrevia.” É o que eu tentei fazer com o Cinco Bonecas.

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No livro, senhor retorna com o detetive Bernard Calhoum, de Os Amantes da Sra. Powers (volume quatro da Coleção R. F. Lucchetti). Naquele livro, ele pode parecer um vencedor no final, mas na verdade é um perdedor. Já em Cinco Bonecas de Olhos Vazados, ele pode no início parecer um perdedor, mas no final se torna um vencedor. Fale a respeito.

Não posso falar a respeito, porque daí estaria revelando uma parte importante da trama. O que posso dizer é que Bernard Calhoum é um dos principais personagens do livro, surgindo na metade de história. E o curioso é que ele revela o que aconteceu na vida dele depois de Os Amantes da Sra. Powers (há um hiato de 40 anos entre as duas histórias).

Outra personagem que retorna é Kate DeVille, que é uma atriz. Está presente em Onde está Blondie? e é a principal figura feminina de Nos Domínios de Drácula (que será o sétimo volume da Coleção R. F. Lucchetti). Em A Filha de Drácula, ela também é mencionada. Por que Kate DeVille está tão presente em suas histórias?
Minha intenção é criar uma obra em que as histórias e os personagens estejam mais ou menos interligados. É o meu universo. Kate DeVille faz parte, portanto, desse universo. Quero ressaltar que meus personagens são independentes. Eles têm vida própria. Não ficam restritos apenas às histórias em que eles aparecem. Nem sei o que eles estão fazendo, quando não estão na história. Eu me divirto com isso.

O livro é uma “salada” em que se colocam Ian Fleming, Georges Simenon, Thomas Burke , O Fantasma da Ópera, Jane Pouca Roupa, o Museu dos Horrores do sr. J. Perkins, Vonetta, Frankenstein e até Jack o Estripador. Não é muita referência para um livro só?

Acredito que não. Sempre gostei dessas referências. Em todos os meus livros existe isso. É o meu estilo.

Uma das suas inspirações foi também uma chinesa que o senhor viu certa vez no bairro da Liberdade em São Paulo. Por que ela mexeu tanto contigo?

Porque foi um acontecimento único. E talvez porque ela me fez lembrar de duas personagens: Sumuru (a rainha do crime), criada pelo inglês Sax Rohmer; e a Dragon Lady, a grande vilã da história em quadrinhos Terry e os Piratas, de Milton Caniff. Às vezes, fico na dúvida: essa chinesa existiu mesmo ou foi fruto da minha imaginação? Porque minha mente é meio conturbada. Vivo mais na fantasia do que na realidade. Na verdade, sempre detestei a realidade.

O livro é uma homenagem ao Gialo e a Mary Shelley. Já a partir do título é uma homenagem a eles. Gostaria que falasse a respeito desta influência que eles exercem no senhor.

O título é exatamente uma homenagem ao Giallo. Procurei homenagear dois dos principais diretores deste gênero: Mario Bava e Dario Argento. Também homenageei um dos maiores mestres do Horror cinematográfico: o subestimado Jean Rollin, um esteta do Surrealismo. Enfim, Cinco Bonecas de Olhos Vazados é uma homenagem ao universo do Horror, Mistério e Fantasia.

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O Giallo é gênero cinematográfico genuinamente italiano. O cinema italiano te influenciou mais que o cinema americano?

Para mim, sim. O cinema norte-americano é por demais comercial. Os únicos filmes norte-americanos que eu aprecio são os de Horror realizados nos anos 1930 e 1940 pela Universal, as fitas de Horror produzidas pelo russo Val Lewton na RKO os Noirs (muitos deles dirigidos por cineastas europeus que na época, décadas de 1940 e 1950, residiam nos Estados Unidos). Essas fitas são verdadeiras aulas de cinema.

E o cinema brasileiro?

O cinema brasileiro nunca me influenciou. Porque a maioria dos nossos cineastas tem a mania de fazer biografias, documentários ou então filmes retratando a estética da fome. Não me interesso por isso.

A capa de Cinco Bonecas de Olhos Vazados é resultado de um trabalho de Fábio Moraes com a ilustração feita pelo Gustavo Machado. Essa parceria não foi a primeira que o senhor fez com eles. Como é trabalhar com estes profissionais?

Tive a sorte de poder trabalhar com eles, são alguns dos melhores que existem no mercado. As capas dos livros da Coleção R. F. Lucchetti são um trabalho de outro excelente profissional: Hugo Araújo.

Até onde a capa é importante para um livro?

Título e capa são por demais importantes. São eles que ajudam a vender um livro.

Já são mais de 1.500 livros publicados. Não é muito livro para um país com poucos leitores?

Parte desses livros foi escrita por encomenda, seguindo orientações de editores. São livros que nada têm a ver com a literatura. São lixo editorial. Nem gosto de mencioná-los. Eu os escrevi para sobreviver. A outra parte, uns 100 livros mais ou menos, resume a minha obra. Pretendo publicar todos aqueles que estão inéditos e republicar (da forma como eu quero) aqueles que merecem ser republicados. O grande desafio é o autor encontrar o seu público e vice-versa. Estou satisfeito com o número de leitores que eu tenho.

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Como analisa a questão da leitura no Brasil. Por que as pessoas leem pouco?

Num país em que a Educação é precária e falha não se criam leitores. Também o governo não tem nenhum interesse em que o povo leia e se instrua. Porque, a partir do momento em que tivermos uma massa de leitores conscientes, o governo terá de mudar estruturalmente sua maneira de governar.

Sua vida teve uma guinada com o advento do Facebook, muitos te reencontraram e outros te descobriram. Consegue avaliar o quanto isso te transformou?

Isso aconteceu a partir de outubro de 2014, quando foi lançado As Máscaras do Pavor. Fiquei surpreso com a quantidade de amigos que fiz no Facebook. É gratificante esse contato direto do autor com o leitor. Posso dizer que renasci das cinzas.

Muitos dos leitores que interagem com o senhor dizem que és uma influência para eles. Como administra essa responsabilidade?

É uma grande responsabilidade essa. Mas isso em nada modifica o meu modo de ser. Porque coloco a minha alma naquilo que escrevo, seja o que for. Também sinto orgulho de ser “uma influência” para os novos autores.

O senhor está comemorando 75 anos da sua primeira publicação. No dia 31 de outubro de 1942, um sábado, era publicado seu primeiro texto “A Única Testemunha”, escrito sob a influência da leitura de dois contos de Edgar Allan Poe: “O Coração Revelador” e “O Gato Preto”. Qual avaliação que faz destes 75 anos de profissão?

“A Única Testemunha”, publicado em O Lapiano, um jornal do bairro da Lapa, de São Paulo, foi meu primeiro passo. E estou, com a graça de Deus, andando até hoje. E acredito que o principal é se se renovar a cada livro. É o que eu procuro fazer. Não sei se consigo isso sempre.

A vida vale a pena?

A vida é o maior bem que uma pessoa pode ter. Portanto, ela vale muito a pena e a pessoa tem de tratar de seu corpo como se fosse uma catedral.

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Escrever vale a pena?

Para mim, valeu. Porque pude exorcizar parte dos meus traumas e medos (não são poucos).

O que planeja para 2018?
 Falar de planos não gosto. Mas posso dizer os livros que já estão prontos para serem lançados no ano que vem: O Fantasma de Greenstock, Sortilégio (serão, respectivamente, os volumes seis e sete da Coleção R. F. Lucchetti) e o romance Rosas Vermelhas para uma Dama Triste.

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