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Puro ouro

Por Bravo
Atualizado em 21 set 2022, 22h14 - Publicado em 12 nov 2020, 09h01

Estreia nos cinemas “Boca de Ouro”, filme de Daniel Filho baseado na obra de Nelson Rodrigues

Por Claudia Chaves

Com um obra formada sob o signo da palavra inquietante, considerada por ele próprio como um teatro desagradável, Nelson Rodrigues trabalha os temas do incesto, da violência, do sadismo, do masoquismo, do amor e da morte, da moral feminina/masculina, em uma sub-urbe imaginária, por puro acaso localizada no Rio de Janeiro. Dessa matéria-prima nasce, em 1959, Boca de Ouro, o grande protagonista masculino, um marginal que vive em um “castelo”, no qual comanda o destino e, sobretudo, o impulso sexual incontido de três mulheres. E agora se apresenta a refilmagem de Boca de Ouro, por Daniel Filho, a ser lançado nesta quinta-feira no Brasil, após uma trajetória internacional. O diretor, tal qual um cirurgião preciso, vai abrindo cada camada da história, removendo e limpando os abscessos que compõem a narrativa original.

Clássico do teatro brasileiro, Boca de Ouro estreou nos palcos em outubro de 1960, no Teatro Federação (mais tarde Teatro Cacilda Becker), com direção e atuação de Ziembinski no papel-título. A primeira filmagem ocorreu em 1963, com direção de Nelson Pereira dos Santos e, no elenco, Jece Valadão, Odete Lara e Daniel Filho. “Eu acho filmar peças ótimo. E o Nelson Rodrigues é muito cinematográfico na maneira de escrever as peças e deve ser refilmado de Ouro é uma excelente história de paixão e poder”, diz o diretor Daniel Filho .

Utilizando um procedimento típico da literatura — um narrador-guia que muda a versão da história de acordo com seu sentimento ou ressentimento — a saga de Boca de Ouro, interpretado com acerto por Marcos Palmeira, é contada em três versões diversas, uma para cada amante, na voz de Guigui, a Guiomar , amante- residente, que traz Malu Mader de volta aos cinemas.

A escolha de Daniel, ao abrir o filme com imagens em preto e branco, chuva e um carro típico dos anos 50 e depois apresentar as imagens coloridas, estabelece o imediato diálogo com Nelson Rodrigues, cujo significado da obra se aclara pelos conflitos e dramas em que os personagens, sempre de forma contraditória, mostram as mazelas da alma humana. De forma totalmente fiel e com enorme competência ao cerne da peça — um crescendo de perversão aguda, assassinato, tortura, corrupção, ódio, desprezo, Daniel Filho encara a obra sem mão pesada e sem qualquer grotesco.

Boca, o bicheiro implacável, solitário, é o grande personagem masculino de Nelson Rodrigues. É título, mas é paciente do que as mulheres querem dele. Um objeto de três formas de querer, e que se resumem ao cerne da obra do autor: como o prazer sexual é o que nos define. Marcos Palmeira diz que seu foco foi o texto. “Essa foi a minha referência, patriarcão, com cara de cordeiro, mas é um lobo. Nelson prevê essa promiscuidade entre marginalidade e sociedade. Quantos bocas, quantos milicianos, traficantes e bicheiros. É um filme atual e que mostra que só fomos piorando.”

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As três personagens femininas, nenhuma delas protagonistas, são interpretadas de forma equilibrada e com uma ótima composição de figurino e caracterização que vai diferenciá-las externamente para evidenciar ainda mais que o desejo sexual é idêntico. Guigui/Malu Mader, a amante residente, ex-passista e destaque da Portela quando é a mãe e mulher infeliz se apresenta de forma relaxada. No Castelo, comanda tudo, exuberante nos gestos, na voz e na roupa. Celeste/ Lorena Comparato se alterna entre a “inocente do subúrbio”, simples ,recatada e a ambiciosa fanática por Grace Kelly que coloca de forma lasciva o colar de esmeralda. A rica Maria Luisa/Fernanda Vasconcellos tem o falso pudor das poderosas naquilo que veste, fala e age até explodir na cama com Boca. Um ponto da composição se destaca. Guigui aparece sempre com o mesmo figurino, aprisionada na sua situação.

Daniel Filho constrói uma obra detalhista, detalhada, cuidadosa que consegue ser uma fiel reprodução visual das peças de Nelson. A alça do soutien branco aparecendo sob a roupa preta; o velho sem camisa fumando no corredor do Conjunto do Pedregulho; a enfermeira misturada à multidão na casa-palácio de Boca; a pequena barriga do personagem principal. A soberba direção de arte de Mário Monteiro é o chão dos elementos cinematográficos que ressaltam a direção de atores, cujo gingar de um arquetípico jeito de ser carioca é o diferencial da brilhante direção de Daniel.

Fala Daniel Filho sobre a escolha do texto rodriguiano. “O Nelson merece ser refilmado sempre. Minha intenção nunca é mexer no Nelson ou dar uma interpretação. Aliás, eu, como diretor, não acho que devo incluir minha interpretação. Meu desejo é ter a interpretação que a peça pede. Como eu já disse, me acho um diretor sem personalidade porque gosto de adquirir ao máximo a personalidade do autor, do que ele quer contar.” E aí dizemos nós, fãs de Nelson, o filme tem total personalidade e, podemos afirmar com segurança, Boca de Ouro de 2020 é a melhor transposição de Nelson Rodrigues.

Claudia Chaves, jornalista, Doutora em Letras pela PUC-Rio, Diretora do Centro Cultural Municipal Oduvaldo Vianna Filho (Rio), jurada do Premio APTR, jurada do Cine-PE

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