Rito do descarte
Dançarinos virtuosos entregam-se ao ritual do jovem contemporâneo em “Multidão”, espetáculo de abertura da MITsp
Por Gabriela Mellão
Um retrato dos ritos da juventude de hoje. Em Multidão, espetáculo da diretora franco-austríaca Gisèle Vienne que abriu ontem (5) a MITsp — Mostra Internacional de Teatro de São Paulo no Auditório Ibirapuera, jovens experimentam um transe coletivo em uma festa rave, embalados pela música techno. Artista de dança-teatro que há 20 anos se projeta sobre a cena europeia com espetáculos sombrios, ainda que belos e vibrantes, Vienne cria Multidão inspirada em A Sagração da Primavera — o espetáculo sobre um ritual pagão, composto por Igor Stravinsky e coreografado por Nijinsky, que subverteu a estética da música e da dança do início do século XX dando origem ao Modernismo.
Como A Sagração…, Multidão funde estruturação e desordem, precisão e descontrole, harmonia e dissonância através de um rito poderoso, em que uma massa de corpos é entregue a um ritmo pulsante, num palco coberto por terra. A força do culto, no entanto, deixa de ter o sagrado como guia. Amparada por uma encenação hipnótica, conduzida por dançarinos virtuosos, Vienne constrói uma reflexão filosófica sobre o vazio da humanidade contemporânea.
Durante o rito, jovens se agitam em um êxtase coletivo. Aqui e ali, seus estados alterados de sentidos experimentam instantes de luxúria, promiscuidade e violência. São cenas de encontros e desencontros tão circunstanciais quanto efêmeras e insignificantes, desenhadas por movimentos meticulosos, predominantemente lentos, que apesar de individuais a todo momento ressoam o grupo. Ao final do rito retratado por Vienne, nada permanece, além de sujeira.
A diretora também apresenta na MITsp o solo Babaca. Fruto de uma parceria entre ela e o escritor americano Dennis Cooper, a obra é uma reconstrução imaginária dos crimes cometidos pelo serial killer Dean Corll (1939–1973), conhecido como “the candy man”, homem que torturou, estuprou e executou mais de vinte garotos na cidade de Houston, no Texas, em meados dos anos 1970. Em cena, enquanto cumpre sua sentença de prisão perpétua, Corll (vivido pelo ventríloquo e ator francês Jonathan Capdevielle) serve-se de fantoches para recompor os crimes cometidos.