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Sambas do Absurdo partem de Camus para questionar a tradição

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h37 - Publicado em 29 abr 2017, 09h13
Juçara Marçal, Gui Amabis e Rodrigo Campos. Foto: Luan Cardoso

Por Andrei Reina e Paula Carvalho

Lançados no dia da greve geral, os Sambas do Absurdo reúnem melodias compostas por Rodrigo Campos, letras de Nuno Ramos, voz de Juçara Marçal e arranjos (criados em samples e mellotron) de Gui Amabis. Na capa do disco, um burro carrega uma caixa de som. A foto foi feita em 2006 na instalação Vai, Vai, de Nuno, que colocou três dos animais para circular carregando caixas de som no Instituto Tomie Ohtake. Entre outros textos, as caixas reproduziam as quatro primeiras estrofes de Se Todos Fossem Iguais a Você, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes (“Vai tua vida / Teu caminho é de paz e amor / A tua vida / É uma linda canção de amor”).

É pau / pedrada / no meu caminho / um resto de toco / um corpo sozinho”, em Absurdo 2, também é uma das referências que o disco faz à tradição da música popular (Águas de Março, também de Tom). Por meio das letras fragmentadas de Nuno, o álbum revisita a tradição do samba também para “reivindicar uma posição de destaque nessa transformação”, como pescado por Romulo Fróes em texto de sobre o disco, no Absurdo 1: “Pode deixar que eu mesmo canto / aialaiá / eu mesmo sambo / aialaiá / eu mesmo tento, um pé no pé, outro na câmera”.

Sambas do Absurdo está disponível em plataformas de streaming e no Youtube e deve, futuramente, ser lançado em vinil. O show de estreia do trio será no dia 10 de maio na Casa de Francisca, em São Paulo. Juçara, Rodrigo e Gui receberam a Bravo! no estúdio da YB, gravadora pela qual o disco foi lançado, para uma conversa (quase de boteco) na véspera do lançamento, que você pode ler abaixo.

Bravo!: De onde veio a ideia para a produção do disco?

Rodrigo Campos: Antes de fazer o disco a gente começou a fazer umas músicas, e antes de fazer as músicas teve a leitura do livro. Foi um impacto pra mim ler o Mito de Sísifo, que eu descobri num documentário [Viver com Camus]. Eram várias pessoas, leitoras, falando do Camus. Eu achei interessante que era, por exemplo, um cara que tinha ficado no corredor da morte lendo O Estrangeiro, e o livro dava uma esperança pra ele. Um cara na África, que tinha um trabalho super difícil, aí ele lia o Mito de Sísifo e o livro ajudava ele. Aí tinha a Patti Smith, que também gostava muito de Camus, e falava disso no filme. Tinha um professor japonês… Eles foram em vários países achar leitores. Achei curioso o impacto do Camus em várias pessoas diferentes, e não intelectuais. 
Até então eu tinha uma visão diferente do Camus, filósofo, romancista, ensaísta. Fiquei curioso com aquilo e fui procurar os livros pra ler. Quando me deparei com o Mito de Sísifo foi o que “bateu” mais, eu entendi qual que era a questão ali, desse Camus quase pastor — o documentário também tinha essa função de alentar as pessoas. 
Hoje conversando com um jornalista especializado em Camus, ele falou que na sua palestra ele diz que o Camus é quase um filósofo de boteco. Só que é uma coisa de boteco bem feita (risos). É uma coisa popular.

Juçara Marçal: Mas não é uma coisa superficial, como seria de boteco, né. É uma coisa muito precisa porque é o Camus.

Rodrigo: É! Só que bate. Tem uma diferença de quando você tem que estudar um livro, ter que ler várias camadas pra tirar, pra chegar. Camus já te oferece direto.

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Gui Amabis: Não precisa ter muitas referências pra entender, né. Você consegue acompanhar.

Juçara: É, ele até pega o mito, parte daquilo… Mas ele faz uma relações muito diretas, muito claras. Então fica muito assimilável. Os conceitos que poderiam ser muito difíceis de assimilar… Você tem uma epifania: “nossa, entendi agora!” (risos).

Rodrigo: No documentário, tinha um professor japonês de uma universidade, o cara super estudioso de Camus, e tinha um cara que é um pedreiro na África, e os dois falando do Camus com a mesma paixão. E aí comecei a fazer uns sambas, pensando no livro e tal, mas na hora de escrever eu achei que não era pra mim o estilo de escrita. Experimentei uma coisa ou outra ali mas não senti que era o caminho. Aí um dia encontrei o Nuno [Ramos] num bar.

Gui: Num boteco. Filosofando num boteco (risos).

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Rodrigo: E aí comentei com ele do livro, falamos do absurdo, ele falou de outros autores que gostava e que tinha a ver um pouco com o tema. E aí no final perguntei “Pô, por que você não faz as letras?”. A gente teve uma sintonia ali do assunto… Aí ele topou fazer. 
Na sequência, quando a gente tinha feito já uns três sambas, a Juçara falou “ô Rodrigo, quer fazer um show de sambas comigo?”. E eu disse que por acaso estava compondo uns sambas e tal…

Juçara: Aí calhou. Ele foi me mostrando os sambas novíssimos, aí a gente foi decidindo que ia ser o show — ele nem tinha decidido que ia ser um disco. Aí pensamos em já fazer o show com esse repertório. O Nuno é muito rápido, também, então Rodrigo mandava as melodias e na semana seguinte ele já vinha com as letras. No processo de ensaio iam chegando as canções prontas. 
E aí o primeiro show que a gente fez foi esse que era só eu e o Rodrigo, lá no Bar Semente, no Rio — que é um bar tradicionalmente de samba. Só que a gente já tava com uns sambas esquisitos (risos).

Rodrigo: Quando fizemos o show, já pensamos em fazer um disco. E aí a gente chamou o Gui, porque faltava um elemento na estética musical que também fosse absurdo. A questão do absurdo nas letras, na temática, já dava pra pescar ali. Mas se fosse só um samba, do jeito que eu compus, seria mais normal, não teria tanto esse link. Aí veio o Gui, desconsertar nossos sambas de um jeito harmônico (risos).

Gui: Isso foi o que ele falou pra mim: tenho os sambas, sambas do absurdo, e pros arranjos você tem que pegar isso que você faz e fazer mais ainda. Eu diluo um pouco isso nas minhas coisas. Eu trabalho muito com sample, com recorte, colagem, dobras de instrumentos criando timbres diferentes. E aí geralmente quando eu vou produzir um disco as pessoas não querem o absurdo, as pessoas querem coisas que fiquem bonitas, pra emocionar, enfim. As pessoas não falam isso exatamente, mas você sente que é isso que elas querem, né. Então eu diluo isso até pra não ficar muito com a minha cara, assim. Pra eu não ficar tão presente no disco das outras pessoas.

Nesse caso, foi isso: vai pro extremo — e foi também o que eu fiz no meu primeiro disco [Memórias Luso-Africanas]. Foi um processo bem extremo, de samples… E eu fiquei pensando que eu tinha que ir um pouco por aquele caminho mas os arranjos seriam diferentes. Aí veio o Duprat na cabeça, com os arranjos que ele fez pro Paulinho da Viola, em Sinal Fechado… Pensava um pouquinho nas coisas do Gil Evans… Dirty Projectors. Pensei que, se misturar tudo isso, pode ficar bonito. E no fim a canção, né. Porque às vezes você quer fazer uma coisa diferente, arrojada, e a canção não permite.

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Juçara: A canção te dá o que ela precisa.

Gui: Pro meu ouvido, é. O tempo da melodia, pra mim, é o que vai mandar no ritmo todo. Qual a levada que você vai fazer na percussão pra mim depende do tempo que é dividida a melodia. Então, no caso do samba, tem a levada clássica do samba, os padrões — samba de breque, partido alto, samba mais pro afoxé… Enfim. E a gente queria fugir um pouco disso, das levadas rítmicas. Mas ao mesmo tempo você tem que fazer isso e não agredir a melodia, e não agredir o canto.

Rodrigo: O violão também eu gravei um pouco pensando em samba mesmo, cavaquinho… Então, justamente a sobreposição disso é você [Gui] saindo e eu não, né. É um choque interessante.

Gui: É, foi um estudo pra conseguir fazer assim.

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Bravo!: Rodrigo, mas você acha que os sambas já eram meio partidos, assim? Meio fragmentados? Porque você escreveu, imaginamos, sob o impacto da leitura.

Rodrigo: Eu tenho essa referência do samba como essa coisa primeira, da minha formação. Comecei tocando cavaquinho, percussão. Só que eu passei por outros caminhos, então meu estilo de composição não é necessariamente tão tradicional assim. Já tem algo diferente… Mas não deixa de ser uma levada de samba. Só que aí um acorde que troca já desconstrói um pouco isso.

Gui: É, mas tem umas músicas também que já são bem na essência desconstruídas. O Absurdo 3, por exemplo, já é. O 1…

Juçara: O 4… Já têm uma estrutura mais deslocada, uns posicionamentos mais inesperados.

Gui: É. Você não espera isso de um disco de samba.

Rodrigo: Total. Isso que é legal de chamar “Sambas do Absurdo”. Porque, justamente, se você for pensar… O Absurdo 8, por exemplo. Se a pessoa vai sentar pra ouvir um disco de samba, sambas do absurdo, caralho, o que é isso?

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Gui: A o 7 é mais samba, o 5.

Bravo: É muito difícil gravar pelo número, não? (risos)

Juçara: É nada! (risos).

Gui: Eu demorei, confesso.

Juçara: A gente nem usa, assim, recursos de memória. A única que ficou assim foi a da tiazinha.

Bravo!: Quando Nuno mandou as letras ele já mandou cantando ou Juçara foi adaptando um texto?

Juçara: Não, ele canta. Do jeitinho dele (risos).

Gui: Tem que lançar isso, depois (risos). As guias do Nuno.

Rodrigo: Ele vai tentando já mostrar a prosódia, tentando encaixar.

Juçara: Ele deixou até aberto pra gente mudar algumas coisas se achasse que não encaixava… Mas a gente mudou pouco, na verdade. Foi mais coisa de encaixar o verso.

Rodrigo: Acho que você [Juçara] também fez questão de cantar [do jeito dele]. Eu senti que numas horas daria pra tirar uma coisa ou outra mas você manteve. Achei legal isso de manter. Pode até ficar um pouco menos redondinho mas tá ali a palavra.

Juçara: Tem uns versos que o final é meio deslocado no tempo, a palavra meio que sobra… Mas a gente achou que isso era interessante também.

Rodrigo: A coisa do samba é legal que depois que você vai fazendo, vai conectando… O que foi feito e as possíveis reflexões, né. O fato de ser samba, né. O samba é um gênero que tem uma coisa existencial. Depois que a gente descobriu que o Camus era filósofo de boteco (risos).

Juçara: Tudo fez mais sentido (risos).

Gui: Nelson Cavaquinho.

Rodrigo: Nelson Cavaquinho, cara. Paulinho da Viola.

Gui: Pixinguinha.

Rodrigo: É a filosofia no bar, é a filosofia mais direta.

Gui: É sabedoria adquirida mesmo.

Rodrigo: Os temas desses caras — Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Sidney Miller — você vê que são mais existenciais, que todo mundo tá lidando com a mesma matéria prima.

Gui: É engraçado que esses caras provavelmente não tiveram referências de estudos de filosofia, nada disso. Então a inteligência que um cara desse tem que ter pra, na vivência dele, elaborar tudo aquilo na cabeça dele, sacar aquilo tudo e sintetizar num samba, ou numa letra, ou numa conversa ali com os amigos… 
Uma coisa é o cara que estudou, colégio, tem as referências. O cara tem memória boa, liga as coisas… Mas esses outros expressam realmente a inteligência, né. Enfim. Quero ouvir depois as guias do Nuno (risos). Fiquei curioso.

Bravo: Uma coisa que eu achamos muito interessante ouvindo o disco é que parece que ao mesmo tempo que vocês partiram de uma coisa super abstrata, né, um livro de um filósofo sobre o absurdo, o disco é bem chão, a letra do Nuno tem coisas muito concretas — a perna, a piscina. A coisa de ser um samba, alguns samples aparecem de uma maneira bem marcada.

Gui: Duros, né. Meio como sustos.

Bravo: Ficamos curiosos pra saber como vocês lidaram com esse material, as escolhas.

Juçara: Foi sendo construído aos poucos, mesmo. O Gui começou a trabalhar a partir de guias que a gente fazia. A gente gravava do jeito que era, mandava pra ele.

Gui: Não, vocês foram em casa um dia, né?

Juçara: É, sim, mas partiu de uma coisa voz e violão. E aí ele ficava com isso e trabalhava.

Gui: Aí eu ia mostrando pra eles e íamos pensando. Mexíamos nas formas um pouco, depois o Rodrigo. Depois, quando foi gravar a voz a gente deu mais uma ouvida e mexeu em mais coisas. E aí fechou.

Juçara: Mas foi bem conectado, né. Não foi uma coisa que um decidiu ao contrário… Foi bem junto. A gente gravou já com ele [Gui] junto, sempre trocando.

Gui: Pra mim, quando a música é boa, é muito legal. Vem uma melodia interessante, a letra, é muito legal ficar trabalhando. Dá vontade de ficar ouvindo, quanto mais você ouve mais ouve outras coisas na cabeça… Eu punha, ficava ouvindo fazendo café, em looping, pra começar a pensar as coisas. Foi muito gostoso. E foi rápido.

Bravo!: Durou quanto tempo?

Gui: Três, quatro meses.

Rodrigo: Nuno queria até fazer mais músicas… (risos).

Juçara: Você chegou até a fazer mais duas, né? Chegou a ter a possibilidade de ir até o absurdo 10. Mas aí o Rodrigo percebeu que essas outras duas já estavam num outro momento, já não era mais o momento mito de Sísifo… Aí ficamos só nessas.

Gui: E o disco tem só 20 e poucos minutos, né.

Rodrigo: Ele é denso. É curto mas é denso, de música e de letra.

Juçara: É, acontece muita coisa ali naqueles minutos.

Gui: Acho que se estende muito fica uma coisa um pouco cansativa. Curtinho assim a pessoa fica com vontade de ouvir do começo. E não só ouvir “aquela” música que ela gostou, porque quando o disco tem 15 faixas, uma hora e meia…

Bravo!: E o repertório dos shows? Que outras coisas vocês vão tocar?

Juçara: A gente incluiu outras coisas do repertório do Rodrigo. Músicas do São Mateus [Não É Um Lugar Assim Tão Longe], do Bahia Fantástica.

Bravo!: Com novos arranjos?

Juçara: A gente tá fazendo só voz e guitarra ou voz e violão, por enquanto. Mas tem uma ideia do Gui colocar também os arranjos dele em algumas músicas desse outro repertório.

Rodrigo: Tem a ideia também de fazer um arranjo prum samba conhecido, sabe, pra dar essa ideia pro público de como seria esse arranjo do Gui num samba conhecido. Você ouvir ele dentro dessa estética, né. Porque você tá ouvindo ali um monte de samba inédito naquela estética, as coisas se misturam um pouco.

Bravo!: Parece normal.

Rodrigo: Mas aí quando você ouve um samba que você já tem uma referência dentro dessa estética…

Juçara: E no show o Gui canta mais.

Gui: Eu canto três músicas do Rodrigo, duas do Bahia Fantástica e uma do São Mateus. O Rodrigo até sugeriu pôr música minha, mas aí todas as músicas são do Rodrigo, achei que quebrava um pouco a linha. Vamos fazer só músicas do Rodrigo porque dá mais unidade.

Bravo!: Mas tem uma conversa enorme, né. Tem músicas que estão no disco da Juçara. O Walter Garcia (em artigo e aulas) fala que o seu disco tem tudo a ver com o que estava acontecendo no Brasil em 2013, 2014. E esses absurdos, também têm esse sentido?

Juçara: Não que a gente tivesse pensado “vamos fazer um disco para retratar esse momento histórico absurdo”.

Gui: E lançar no dia da greve geral (risos).

Rodrigo: A questão é se o absurdo é político, né. O absurdo é político?

Gui: É, mas eu acho que não teve nada a ver com o momento.

Rodrigo: Mas o absurdo é político?

Gui: Não, a política é absurda. (risos)

Rodrigo: Mas o que é que vem antes? A política, a filosofia, as duas coisas juntas?

Gui: Eu acho que a política vem antes.

Rodrigo: Vem antes da filosofia? Você acha que um indivíduo não formado filosoficamente tem uma capacidade política?

Gui: Acho que a política é um nível mais baixo. A filosofia é um pouquinho mais… Você pode usar a filosofia na política.

Rodrigo: Eu acho que a filosofia é política no sentido de formar o indivíduo politicamente, pra atuar politicamente, pra ter ideias políticas.

Juçara: Faz sentido. Até o próprio Camus, com essa ideia do mito de Sísifo. O homem que nesse movimento mecânico toma ciência disso, se torna outro. Mais consciente. Nesse momento do Mito de Sísifo acho que a reflexão dele para um pouco aí, mas n’O Homem Revoltado é a continuação, né. Vira um homem de luta. É uma consequência dessa tomada de consciência. Opa, o absurdo é isso? Como é que eu lido com isso? Ou você se suicida ou você aprende a viver num mundo absurdo. E essa tomada de consciência, levada adiante, eu acho que é essa atuação política. Você se revolta.

Rodrigo: Você empurra a pedra conscientemente, sabe que está empurrando, e quando você solta a pedra também sente toda a liberdade.

Juçara: Ele fala uma coisa bonita, diz que você se sente vitorioso nesse momento. Você tem um poder ali.

Rodrigo: Você negou os deuses, você ama a vida.

Gui: Mas o trabalho de muita gente é essa pedra.

Juçara: De todos nós, Gui.

Gui: Eu acho que o de músico é um pouco menos. Trabalho de arte é diferente.

Juçara: Mais ou menos. São pedras diferentes, mas…

Gui: Não sei, eu acho que sou meio sortudo de trabalhar com música e fazer música. Tem trabalhos que são…

Juçara: Mais literalmente carregar pedras.

Gui: Mais literalmente. Trabalhos duros, de todo dia.

Juçara: É, acho que a questão é um pouco mais além do que isso.

Bravo!: Como assim mais além?

Juçara: Você pode tomar literalmente como a ideia do homem que faz o trabalho duro, mas eu acho que o fato de você viver nesse mundo é carregar. Cada um tem a sua pedra.

Rodrigo: Você pode se sentir nesse looping da pedra em qualquer situação.

Juçara: Sem necessariamente ser um trabalhador braçal. Nesse sentido.

Rodrigo: Só acordar de manhã que você já sente a pedra (risos).

Juçara: Ele fala também das maneiras de você contornar o desconforto, né. E a religião é uma delas. Religião te dá uma ilusão de menos absurdo.

Bravo!: Tem também o cara que não se deu conta do absurdo.

Juçara: Exato… O homem absurdo surge quando o ele se dá conta.

Bravo! (Andrei): Aproveitando o ensejo do ensaio do Walter, ele diz que o modo como você canta no Encarnado tem uma sabedoria, como se você cantasse do ponto de vista de alguém que já viveu muitas coisas. Tanto que ele compara com a figura da Nanã. Não sei se dá pra comparar com os Sambas do Absurdo, porque ali no Encarnado você tem personagens mais delineados, o Damião, João Carranca, a mulher da Ciranda do Aborto… Só que nesse caso agora você tá trabalhando com um material bem fragmentado. Queria saber, primeiro, o que você acha dessa análise (do Walter) e como foi a sua abordagem para o material dos absurdos, se teve alguma diferença.

Juçara: Primeiro, no Encarnado a escolha foi de composições diversas. Não tinha essa unidade que tem o Sambas do Absurdo, que é música do Rodrigo e letra do Nuno. Tem uma unidade que já é dada. O Encarnado não, foram coisas que foram sendo construídas no processo de ensaio. Mesmo a escolha do repertório não foi uma coisa fechada de antemão. A gente trabalhava uma música, aí eu lembrava de outra que achava que tinha a ver e ia colocando na roda e isso foi construindo o repertório. Mas acho que o jeito de colocar a voz ali foi principalmente ligado à sonoridade das guitarras. Era uma coisa de colocar a voz dentro desse contexto que as guitarras e a rabeca traziam pra mim. Eu canto ali alimentada por esse som.
É completamente diferente do processo do absurdo. A diversão é essa, né: como é que a voz entra dentro de um contexto xis de instrumentos, arranjos. A brincadeira é essa (risos).

Rodrigo: Ontem, no Cultura Livre, um cara falou nos comentários pela internet que a Juçara…

Gui: Canta todas as músicas como se fosse a única música que ela soubesse cantar.

(risos)

Juçara: É super bonita essa imagem da Nanã que ele usa. Mas é análise dele. Não pensei nada disso, não (risos). Eu vou fazendo. Tem a coisa de você escolher um tom porque você acha que ele é mais interessante, que vai ficar mais confortável na voz, ou que vai ficar mais desconfortável e isso tem a ver com a canção. Mas o resto é interpretação e eu já não tenho como falar.

Bravo!: Já é objeto, né. (risos). E você, Rodrigo, [depois do Bahia Fantástica e do Conversas com Toshiro] tá saindo das guitarras?

Rodrigo: Acho que agora tá rolando esse movimento de voltar pro que eu sempre fui, né. Eu sempre toquei violão e cavaquinho. Eu até comentei com a Ju que eu estava com dificuldade de tocar violão, tá pesado na mão… Guitarra é toda levinha. Mas o disco que eu vou fazer depois, que o Gui vai produzir também, a ideia é voltar ainda mais. Tocar percussão, que foi a primeira coisa que eu toquei.

Gui: No São Mateus você tocou bastante percussão. Eu lembro.

Rodrigo: E talvez pensar agora em como fazer esse caminho de volta. Na guitarra você tem todas as possibilidades dos timbres, você aprende a tocar muito em prol do timbre. Eu faço uma nota e a nota soa. No violão, você dá uma nota e ela morre. Seria pensar também no timbre do violão, como esticar esse timbre, como fazer linhas em vez de acordes… Acho que talvez vou lidar um pouco com isso. Na guitarra você constrói riffs, no violão tem o acorde… Não sei o que vai ser.

Gui: No próprio Sambas você já foi mais pro violão e cavaquinho, né.

Rodrigo: É, mas você é o elemento desconcertante. Agora é pensar como ser o elemento desconcertante com os instrumentos tradicionais. 
Tava pensando aqui que essa coisa da Juçara cantar cada música como se fosse a única também é muito absurda (risos). É o momento. É o agora, estar sempre no presente (risos).

Bravo!: E a capa? Como vocês escolheram?

Juçara: Foi o Nuno. Ele mostrou pra gente e falamos: yes!!! (risos).

Rodrigo: É um trabalho dele, de 2006. E tem um outro desenho, que talvez seja do vinil, que ele fez especialmente. É o desenho da pedra rolando a montanha. Em grafite…

Bravo!: Fomos procurar saber o que era a exposição (Vai, Vai, de 2006) e vimos que tinha Se Todos Fossem Iguais a Você reproduzida nas caixas de som que os burros levavam.

Juçara: Com Dona Inah cantando.

Bravo!: É um diálogo com a MPB canonizada, né. Como vocês sempre fizeram.

Rodrigo: Tem também a coisa do burrinho carregando a caixa. Como se a pedra do músico fosse carregar a caixa até o fim da montanha, depois a caixa cai… Aí o burrinho volta a pegar a caixa… (risos)

Gui: Por que que eu toco mesmo? Por que eu faço show mesmo?

Juçara: Ô, se passa.

Bravo!: Mas acaba sendo uma segunda referência a Tom Jobim, né. Tem uma coisa com Águas de Março numa das letras.

Rodrigo: É pau, pedrada.

Juçara: O Nuno faz uma citação, né.

Rodrigo: É uma letra muito de slide, também.

Gui: Eu sinto isso muito em quase todas as letras do Nuno.

Rodrigo: Mas interessante isso que você falou da matéria. Tem um erotismo no sentido de se referenciar à matéria. Estamos falando do absurdo mas nos apegando à vida, de algum jeito (risos).

Juçara: É, ao carnal. Tem a ver, também.

Rodrigo: É! Sísifo gostava da vida.

Juçara: Tem uma história de que ele já tinha ido pros infernos e os deuses dão uma licença pra ele ir resolver algo com a mulher pra depois voltar pro inferno. E aí ele chegou lá e não quis voltar mais (risos).

Rodrigo: A vida é boa.

Juçara: Tem essa coisa da pedra mas na verdade são vários mitos relacionados ao personagem.

Rodrigo: Tem uma coisa bonita que é: ele empurra a pedra mas está tudo bem. Ele fala disso no final do livro. Está tudo bem, é isso mesmo. Quando ele solta a pedra ele olha o mar, descendo. É bonito.

Juçara: É o momento de liberdade. Bonito mesmo.

Rodrigo: Você [Juçara] se refere a esse lado. Eu tenho me referido ao lado mais obscuro. Só que no fim é um livro que tem uma questão da negação da esperança, mas é isso em prol de você viver cada momento mais intensamente. De aproveitar cada momento.

Juçara: O momento que a pedra tá lá embaixo é o momento da felicidade. A amargura de saber que você vai ter que voltar lá e a felicidade de saber ter cumprido. O absurdo e a felicidade estão juntos, não dá pra pensar que um é consequência do outro.

Rodrigo: É preciso imaginar Sísifo feliz, né, ele diz.

Juçara: O Gui não aguenta mais Camus (risos).

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