Segredos de família
Fábio Meira fala do processo de criação do longa “Duas Irenes” e da construção de duas personagens fortes e questionadoras, que enfrentam assuntos atemporais
Por Laíssa Barros
Irene, uma garota de 13 anos, de uma família tradicional do interior, descobre que seu pai tem uma filha de outra mulher, com a mesma idade e o mesmo nome dela na cidade ao lado. Sem que ninguém saiba, ela decide procurar a garota e um mundo de descobertas se inicia. Essa é a premissa do primeiro longa-metragem como diretor de Fábio Meira.
“Eu me interesso muito por um cinema que aporta de si, se projeta. É tão bom quando a gente vê um filme e aquilo transforma a gente e toca em questões nossas. Eu queria que esse filme fosse isso. Queria que o espectador se apropriasse dos detalhes do filme conforme sua bagagem”, conta o Fábio, que começou no cinema como assistente de Ruy Guerra, se formou pela Escola Internacional de Cinema de San Antonio de Los Baños em Cuba e já realizou nove curtas e média-metragens.
O nascimento e o desenvolvimento da relação das duas Irenes, os sons, as cores, os olhares trocados, a natureza, o silêncio dos segredos, a perda da ingenuidade, a hipocrisia e a força das meninas. Tudo é capturado pela direção sensível de Fábio, que aproveitou de histórias familiares ouvidas durante toda a vida para criar um excelente roteiro que fala sobre se ver no outro, odiar o outro, as duvidas de crescer e sobre as tentativas das meninas de entenderem o meio em que vivem ao tempo em que questionam uma sociedade patriarcal e machista.
“Esse assunto é atemporal, assim como a sociedade patriarcal é atemporal. Por todo lugar que a gente passa as pessoas se identificam, contam histórias parecidas. No mundo inteiro e em qualquer tempo uma família tem sempre um segredo”, lembra o diretor.
No 45º Festival de Cinema de Gramado, onde teve sua estreia nacional, As Duas Irenes levou o prêmio da crítica ABRACCINE de Melhor Filme, Melhor Roteiro, Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Direção de Arte. Protagonizado pelas jovens estreantes atrizes Priscila Bittencourt e Isabela Torres, que dominam o filme e são uma grande e essencial surpresa, o elenco ainda conta com Marco Ricca, Susana Ribeiro e as atrizes do Grupo Galpão Inês Peixoto e Teuda Bara.
Em entrevista à Bravo!, Fábio fala sobre suas referências, seu estilo de direção e sobre a construção de seu primeiro longa-metragem. Confira a entrevista na íntegra.
De onde vieram as duas Irenes?
Não tem como fugir. É muito concreto. Foi a partir daquela brincadeira do jogo do anel que mostra quantos filhos você terá. Essa brincadeira foi feita na minha família quando eu era adolescente. Era uma coisa mística, mas dava certo com todo mundo, menos com meu avô, que teve filhos fora do casamento. Fiquei impressionado com isso e mais tarde fiquei sabendo que ele tinha duas filhas com o mesmo nome. Uma tia minha e outra menina que não era filha da minha avó. Quinze anos se passaram e eu fui convidado pra fazer um curso de roteiro com o Gabriel Garcia Márquez e essa história meio que brotou na minha cabeça de novo. Quis escrever um roteiro sobre isso e fui falar com a minha tia, ela disse que não queria falar sobre esse assunto. Então o filme parte desse ponto. O resto é tudo ficção. É o filme do “e se”. O filme que conta o que poderia ter acontecido se ela tivesse ido encontrar essa outra menina
E a partir dessa história pessoal, que referências você trouxe pro roteiro do filme?
Fui pegando muito do que eu já tinha de formação da minha família. Eu sempre fui muito calado. Introspectivo. Totalmente observador e muito esponja do ambiente. Tinha todo um repertório de histórias de família, e o roteiro foi se alimentando de tudo isso. Sempre convivi muito mais com mulher do que com homem. Então eu sempre tive esse fascínio pelo universo feminino, que eu acho muito mais complexo, muito mais rico. Conversei muito com minhas tias e primas sobre a parte do corpo feminino, que é muito especifica e onde eu não tinha acesso. Principalmente sobre transformação do corpo, esse momento do banheiro, de trocar de roupa, de não gostar do que o corpo é. Fiz também uma leitura de psicanálise sobre a relação com o duplo e também a relação delas com o pai. Temas centrais do filme. Foi uma pesquisa baseada em Freud mesmo. Escolhi a idade de treze anos porque é a idade perfeita da perda da inocência. É a idade linear entre a vida infantil e a vida adulta, que e o momento que a gente começa a ver como os adultos funcionam, como eles não são mais ingênuos, como eles são cheios de segredos e hipocrisias. Nessa idade elas podem pensar se vão fazer igual ou se vão fazer algo diferente da vida delas. Me interessava muito falar sobre a perda dessa ingenuidade e fui levando a história por esse caminho.
Os sons são muito importantes pra essa história. Principalmente os sons do pai das Irenes. Por quê?
Pra mim, uma coisa muito importante nessa história é a ausência do pai, que é sentida de uma forma diferente por cada uma. Essa ausência é também sentida pelos sons dele e também pelos objetos dele. Por isso, foi importantíssimo dar atenção para essa parte sonora, além da atuação do Marco Ricca. Ele entrou poucas vezes em cena, mas a presença dele ressoava o filme todo e eu precisava isso. Precisava que a ausência dele fosse presente, porque a ausência era tamanha que ficava pairando sobre a história.
O filme não tem um ano definido. Isso foi intencional?
Era muito importante pra mim que o tempo fosse meio arcaico pra falar sobre a sociedade patriarcal que já deveria ter deixado de existir. Mas ao mesmo tempo eu queria falar do presente também. O filme é uma fábula: a menina que descobre que tem uma irmã com o mesmo nome à mesma idade dela e é oposto dela. Então era importante não localizar o tempo exato pra que várias gerações pudessem entrar naquela história e se apropriar dela. Esse assunto é atemporal, assim como a sociedade patriarcal é atemporal. Por todo lugar que a gente passa as pessoas se identificam, contam histórias parecidas. No mundo inteiro e em qualquer tempo uma família tem sempre um segredo.
E a escolha da locação?
Queria muito fazer na Cidade de Goiás. Eu fiz meu primeiro curta lá e também sou fascinado pela luz da cidade, pela beleza da cidade. O filme tem muita natureza, muito bicho, muito vento. Queria muito essa ação do vento e da natureza. Isso pra mim é fundamental pra contar a história das duas Irenes, porque isso também as une. Eu queria mostrar essa cidade que é tão pouco mostrada e mostrar mais do que um cartão postal. Mostrar uma cidade gostosa, que poderia ser em Alagoas, na Colômbia ou no México. Que tivesse um perfume latino-americano. Era importante que fosse uma cidade meio que de deserto quente durante o dia e fresca durante a noite. Que tivesse um tempo muito lento e que tivesse muito sol durante o dia. O filme é feito todo com luz natural. A Daniela Cajías usou sete espelhos pra iluminar o filme e só. A matéria prima, além do talento da Dani e da equipe dela, foi a luz de Goiás.
E como foi a direção das duas atrizes protagonistas estreantes?
Elas são muito inteligentes. Um ator tem que ser inteligente pra poder tomar decisões rápidas a cada momento. Eu não queria que elas chegassem muito estudadinhas ou com uma atuação para televisão. Eu queria que elas tivessem que olhar uma no olho da outra e saber o que a outra estava pensando e ficar ali vivendo a cena. Elas são muito inteligentes e eu queria que elas improvisassem. Queria saber o que elas queriam me propor. Eu ia colocando o roteiro pouco a pouco, elas não leram ele antes. Mas, a nossa ligação estava tão interessante que na improvisação elas acabavam falando frases que eu tinha escrito no roteiro e que elas não tinham acesso. Frases escritas exatamente iguais. Então era um pouco mágico, a gente estava muito dentro do filme das personagens e numa sintonia muito bonita. Também tive muita ajuda da preparadora de elenco Verônica Veloso que me ajudou a construir esses personagens fazendo as meninas entrar em cada Irene. Porque na realidade cada atriz tem uma personalidade diferente da Irene que representa.
As duas Irenes são meninas bem fortes e cheias de personalidade, isso foi proposital?
Queria que fossem duas meninas fortes e que questionassem. Elas vieram pra questionar e querem ser donas do seu próprio nariz. Porque tem que esperar o homem chegar à mesa para comer? Porque elas não podem sentar na cabeceira? Elas questionam isso e muito mais. Elas querem a cabeceira, elas querem tomar as rédeas. O filme e naturalmente feminista e vem de um processo meu em ter sempre vivido e convívio com mulheres fortes. Pra mim era natural que essas personagens fossem meninas que questionassem o lugar delas na sociedade.
A direção do filme é cheia de detalhes e minuciosidades. Qual a importância disso pro filme?
Eu me interesso muito por um cinema que aporta de si, se projeta. É tão bom quando a gente vê um filme e aquilo transforma a gente e toca em questões nossas. Eu queria que esse filme fosse isso. Eu não queria dar tudo pronto. Queria que o espectador tivesse alguns detalhes e que cada um se apropriasse desses detalhes do filme conforme sua bagagem.Como eu vim de uma família que não fala muito, eu me interesso muito pelo Tchaikovsky. Vim de uma família onde se discute sobre uma planta fora do lugar, mas não pelo verdadeiro motivo que se queria discutir. Então eu quis falar disso no filme. Os detalhes constroem as tensões. Tem muita gente que fala que o filme tem muito suspense. Justamente por ele ter poucos elementos, você tem que ficar ligado. Você nunca sabe o que esta se passando na cabeça das Irenes, quais vão ser os próximos passos delas. O som do relógio, das arvores, os roncos, as rimas, os objetos, o filme é muito cheio de detalhes. Ele é construído em um tom menor, cada detalhe é muito importante. Na releitura você descobre coisas novas também. Ele é construído em camadas.