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Sob o risco da canção

Por Bravo
Atualizado em 21 set 2022, 22h28 - Publicado em 6 jun 2018, 10h56

Música de Selvagem lança “Volume Único”, com participações de Tim Bernardes, Luiza Lian, Pedro Pastoriz e Sessa

Foto: Gabriel Basile

Por Ana Laura Malmaceda

O grupo paulistano Música de Selvagem faz jus ao nome: sua poética é movida por uma indisciplina com propósito, que desafia os enquadramentos comuns de classificação musical. Assim, não se considera de jazz, ainda que esteja muito próxima do gênero; não parece música erudita, mesmo que seja aparente ao ouvinte o domínio de seus recursos; não é música popular, mas faz da canção o centro de seu segundo disco, Volume Único.

Formado em 2013 pelo baixista Arthur Decloedt e pelo saxofonista Filipe Nader, então recém-chegados ao Brasil depois de peregrinações artísticas na França e na Bélgica, o projeto foi desenhado para que os músicos pudessem explorar a improvisação livre. A sonoridade resultante desse encontro, que conta também com os músicos Guilherme Marques (bateria), Amilcar Rodrigues (trompete e flughel) e Oscar ‘Cuca’ Ferreira (saxofone barítono), é assimétrica e controlada ao mesmo tempo, entre a composição e o espaço para o improviso.

Em Volume Único, o quinteto não perde a essência experimental presente no homônimo Música de Selvagem (2016), mas muda de exercício ao integrar outras quatro vozes. As composições de Luiza Lian, Pedro Pastoriz (Mustache e os Apaches), Sessa e Tim Bernardes (O Terno), artistas que fazem parte da órbita do grupo, são invadidas por uma bruta “massa sonora e sem hierarquias”, levadas a fronteiras insuspeitas pela força dos arranjos.

O disco será lançado no Brasil pelo selo Risco, do produtor Guilherme Jesus, responsável pela gravação de uma rica safra de música independente brasileira, e na Europa pelo selo Shhpuma. A Bravo! conversou por escrito com o grupo sobre esse conjunto de sons inclassificável.

Comecemos pela aparência: o que enxergam na capa? Parece um esquema pictórico do som, uma constelação, matemática e espiritual.

Uma pedra preciosa, mas ao mesmo tempo apenas um volume (pegando emprestado do vocabulário da arquitetura) que preenche uma folha em branco ou o espaço.A matemática é a melhor pista; a Maria Claudia Levy, artista plástica, arquiteta e designer que assinou a arte do disco, tem desenvolvido uma pesquisa fascinante que envolve padrões, repetição, formas geométricas, música e matemática. Inclusive, em um trabalho recente dela chamado Intervalos Geométricos, podemos encontrar literalmente esquemas pictóricos de sons, através da utilização de espirais. Não é esse trabalho que vemos no Volume Único, mas é interessante você sugerir exatamente isso vendo a capa, talvez essa pesquisa esteja presente de alguma forma em tudo que ela anda fazendo

O jazz é caracterizado pela incorporação e utilização quase irrestrita de sons. Já a canção é neurótica em sua forma, repetitiva, fechada como um poema. Por que dedicar-se a canção?

É consenso que todos os membros do grupo se formaram no jazz, ainda que passando por caminhos muito distintos; como você disse muito bem, o jazz é muito grande, complexo e abriga mundos muito diferentes. Hoje o trabalho individual de cada um, e o nosso trabalho coletivo, já não encontra mais tanta afinidade com esse gênero musical e, na verdade, achamos difícil localizar um gênero que contemple tudo aquilo que a gente faz e (principalmente) gostaria de fazer. Nós produzimos muito seguindo essa premissa; seja em processos composicionais ou através da improvisação livre. Trabalhamos muito com formas livres e abertas, utilizando recursos do jazz, da música popular, da música erudita e contemporânea, sem a preocupação consciente de resultar em algum gênero específico. Já a canção possui restrições de forma, além do universo infinito de possibilidades da palavra. Essa tensão entre a forma fechada da canção e as nossas formas abertas nos pareceu muito fértil para novas ideias e talvez tenha sido o fio condutor da criação desse disco. Mas existe também uma dimensão mais emocional/irracional. Admiramos verdadeiramente os compositores convidados no disco. São amigos que fazem parte de nossas vidas, e nós sempre sentimos muita vontade de tocar com eles, de mostrar que é possível fazer música juntos, que essas fronteiras não existem de verdade.

A voz é o novo instrumento que vocês integraram ao conjunto sonoro, assim como a palavra. O que muda no exercício criativo quando incorporadas essas outras camadas?

Muda muita coisa. Porque não existe nada mais importante e essencial do que a palavra, e nada mais verdadeiro e profundo do que a voz. Nosso exercício criativo foi totalmente balizado pela presença dessas outras camadas. Buscamos em alguns momentos colocar a voz fora de contexto, sozinha e frágil em primeiro plano, e em outros momentos incorporá-la no meio de nossa massa sonora, sem privilégios ou hierarquias. A palavra foi inevitavelmente fonte de inspiração para a concepção dos arranjos. Em cada música se estabeleceu uma relação diferente com a letra, seja de uma forma mais abstrata ou mais concreta.

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A improvisação livre parece um desafio à estrutura da forma, de tentar rompê-la estando dentro dela. Falem um pouco sobre isso no trabalho de vocês e no trabalho com a canção.

A improvisação livre é um risco constante, um exercício de criação no instante presente, em que se percorre um espectro muito largo, do mais controlado ao mais espontâneo. Um balanço entre razão, inspiração, forma e espontaneidade. Nos nossos trabalhos precedentes, a improvisação já coexistia com a composição. Mas as composições do primeiro disco foram pré-concebidas para acolher a improvisação livre dentro delas, diferentemente das 4 canções do “Volume Único”, que já possuíam vida própria bem antes do disco. Nós reestruturamos essas músicas, transformamos elas em outra coisa e houve certamente um diálogo constante com as versões originais das canções, seja por semelhança ou diferença.

Numa entrevista do Tom Jobim a Clarice Lispector, ele se diz preocupado com o estado da música numa época na qual sente ‘uma falta de tempo na humanidade’. Vocês se veem com a mesma questão? Acham que a geração de músicos da qual fazem parte (no tempo e no local) esboça respostas?

Essa questão é difícil. Hoje, certamente estamos aprendendo cada vez mais a consumir tudo o mais rápido possível, ninguém consegue se manter atento por mais de 30 segundos. A música acompanhou essa tendência; virou um produto de consumo rápido. O problema disso é que não existe mais espaço para contemplação e esse espaço é muito importante para a arte. Por isso vivemos constantemente resistindo, buscando esse espaço de contemplação para o nosso público e até para nós mesmos, em nossas vidas privadas. Acreditamos que sempre a melhor resposta é fazer; continuar produzindo e certamente hoje se produz cada vez mais música independente e interessante.

Serviço:

Música de Selvagem — Lançamento do álbum Volume Único. Com Guilherme Marques (bateria), Arthur Decloedt (baixo), Filipe Nader (saxofone alto e barítono), Amilcar Rodrigues (trompete e flughel) e Oscar ‘Cuca’ Ferreira (saxofone barítono). Participações especiais de Luiza Lian, Sessa e Pedro Pastoriz. Quarta, 06 de junho, às 20h30. Sesc Pinheiros. Ingressos R$ 25 (inteira), R$ 12,50 (meia-entrada) e R$ 7,50 (credencial plena).

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