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Sopro de ar e humanidade

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h40 - Publicado em 17 mar 2017, 11h48

Espetáculo que abriu a 4ª edição da Mostra Internacional de Teatro, em São Paulo, a belga Avante, Marche! parte da precariedade e das fragilidades individuais para chegar ao sublime

Foto: Phile Deprez

Por Gabriela Mellão

Peito estufado, braços elevados e pratos em mãos, um homem liga um aparelho de som e espera a deixa da música para fazer soar seu instrumento. Sua vez demora a chegar. Ele aguarda pacientemente até que desmonta a pose e avança o som para conseguir, enfim, o seu momento.

O sublime apresentado em Avante, Marche!, criação anárquica da companhia belga Les Ballets C de la B que abriu a 4ª edição da MIT — Mostra Internacional de Teatro, em São Paulo, na última terça-feira, reside no precário. É inclusive potencializado por ele. O diretor Alain Platel opta por acender faíscas de esplendor em solos improváveis. Talvez pelo contraste conquistado, elas se pareçam ainda mais reluzentes.

Um dos encenadores mais influentes da Europa da atualidade, Platel tem vocação para extrair potência de fragilidades individuais, herança de sua experiência de início de carreira como terapeuta de crianças deficientes.

Há 33 anos, desde a fundação de seu grupo artístico, o diretor usa vulnerabilidade e imperfeição como matérias-primas. Em busca do extrato da humanidade, mira faltas e falhas enfatizando no palco o que cada intérprete possui de mais pessoal.

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Ainda que não abra mão de virtuosismo, Platel deixa a técnica em segundo plano, privilegiando a expressividade. Dirige pessoas como um viajante sedento a explorar mundos desconhecidos. Muitas vezes opta por trabalhar com não-atores, caso de Gardênia, espetáculo realizado com travestis e transexuais aposentados, indicado ao prestigioso prêmio inglês Oliver em 2010 — que pôde ser visto no país um ano depois.

Corpo e linguagem

Avante, Marche! faz sete músicos, de certa maneira, atuarem, assim como cinco atores e um bailarino arriscarem-se em cena também como instrumentistas. Trata-se de uma mistura nada ortodoxa entre teatro, dança, música, performance e circo na qual corpos esforçam-se em dizer o que ultrapassa o domínio das palavras.

O espetáculo rodou festivais na Europa e chegou, pela primeira vez, a solo sul-americano. Refaz a parceria iniciada em Gardênia entre Platel, o compositor Steven Prengels e o coreógrafo Frank Van Laecke retratando o que parece ser a despedida de um dos membros de uma banda de fanfarra, vítima de uma doença terminal.

A debilidade física ainda não removeu o artista em questão de seu grupo musical, metáfora da sociedade e da própria existência, mas já o obrigou a trocar trombone por pratos e o relegou do centro ao fundo da cena.

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Este ser destituído de nome (Wim Opbrouck, intérprete assombroso, que faz do corpo e da voz instrumentos ilimitados) se confessa um “homem com uma flor na boca”, numa alusão ao texto homônimo de Pirandello escrito em 1922, no qual o protagonista recebe a visita da morte.

Diante da eminência do fim, a vida é reforçada. Ensaio vira ato de tudo ou nada. Paixões antiga se declaram. Música, de marchinhas populares a cortejos fúnebres de Beethoven, torna-se milagre de existência. “Toquem, não parem de tocar”, pede aos integrantes de sua banda o músico decadente, enquanto seu corpanzil exausto e molhado de suor borboleteia pelo espaço driblando com leveza, vigor e entusiasmo de menino o peso da proximidade da morte e dos quilos acumulados ao longo dos anos.

Avante, Marche! tem a precariedade como conceito primordial. Nele, a desconstrução é empreendida como linguagem, e a transcendência se dá pelas vias do grotesco. O ínfimo de dramaturgia revelado em cena se dilui no oceano de ações aparentemente banais, falas desprovidas de sentido, música e silêncio que constituem a obra. Permanecem os rompantes extremados de instinto, oscilações entre luz e trevas que dominam carne e alma do personagem principal em sua derrocada.

Se o espetáculo não se revela de modo racional, sensorialmente ele passeia inquieto pelo corpo do espectador. Convida-o a dançar a vida e a morte, como faz o protagonista, com a intensidade que lhe cabe e todo o ar restante em seu pulmão.

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