“Sou um perseguidor de ideias”
Na série com grandes quadrinistas brasileiros, Rafael Spaca entrevista Custódio. “A crise é mais rica pra charge que a felicidade”
Por Rafael Spaca
Gostaria que você falasse da sua infância, dos seus primeiros rabiscos e da descoberta do desenho na sua vida.
As primeiras lembranças de gostar de desenho ou de desenhar são atrás do balcão do depósito de materiais de construção onde meu pai trabalhava em Interlagos, em São Paulo. Ele e minha mãe vieram de Santa Catarina para trabalhar no comércio do marido de uma das irmãs do meu pai. Quando nasci eles moravam nos fundos do depósito, em dois cômodos no meio do galpão de estoque. Lembro de brincar entre imensos caibros de madeira, o que devia ser perigoso. Provavelmente me levaram para trás do balcão e ali, naqueles papéis pardos que usavam para embrulhar produtos a granel (era o que se chamava de papel de pão) eu desenhava com aqueles lápis vermelhos e achatados de pedreiro. Eu tinha menos de 5 anos e meus interesses eram carros e futebol.
Você, desde pequeno, gostava de ler e desenhar?
Minha leitura deveria ser, no máximo, jornais velhos que usavam pra embrulhar produtos mais grosseiros, mas não lembro disso. Lembro alguma coisa da pré-escola, de ler em classe. Minha família neste caso era típica de classe média baixa brasileira no início dos 70, livro não era produto muito comum nas residências.
Quais eram as suas referências naquela época?
Na infância foi Disney e Turma da Mônica. Mais a segunda que a primeira… não me encantava muito com a Disney, aqueles bichos humanizados usando luvas brancas e vestidos só com casaco, de bunda de fora. Li Carl Barks sem saber quem era. Fui descobrir depois a riqueza daquilo.
Chegou a estudar em algum lugar ou é autodidata?
Me considero totalmente autoditada. Até o pouco inglês e italiano que falo também vêm por aí. Mas, para não ser injusto, dando um salto de muitos anos a partir da infância, fiz 3 anos de Escola Panamericana de Arte paralelo ao colegial. Aprendi algumas coisas ali, mas talvez muito menos do que custava. Era muito focado no desenho, e eu sempre fui muito mais um perseguidor de ideias . Ganhei uma bolsa por indicação de um conhecido do meu pai, não tínhamos dinheiro para pagar integral. Deve ter sido um grande esforço da família pagar aquilo… Acho que nunca agradeci meu pai corretamente. Ele devia achar que era como uma escola técnica, eu sairia dali para um emprego. Mas eu já tinha referências do Pasquim e de Asterix, da charge política, via de perto as diferenças sociais dos garotos do meu bairro, da escola, da Panamericana, do clube que… achava injusto. Se eu estava longe de ser um underground, também não me integrava muito no que via como “sistema” tradicional de sociedade e pensamento. Socialmente tive o privilégio de conviver com as classes D e E e, ao mesmo tempo, com a B. Acho que essa posição de não me adequar ao mainstream nem me encaixar no alternativo me persegue até hoje.
Você começou profissionalmente na imprensa sindical. Que tipo de cartum, ilustração ou charge fazia lá?
Já peguei a imprensa sindical em decadência comparado com os anos anteriores. Laerte, Chico e Paulo Caruso, Henfil, entre outros, tinham passado daquele estágio e estavam na grande imprensa. Uma vez o Jayme Leão me disse: “É um trabalho de foco limitado, mas necessário”. Fazia charges, tiras em quadrinhos e ilustrações. Como disse o Jayme: o foco era limitado. Mas foram meus primeiros salários como profissional, passei a conviver com amigos mais urbanos e politizados que a turminha de Cidade Dutra e Brooklin, a turma de escola pública e futebol. E, com salário e carro, comecei a conhecer as mulheres mais interessantes também.
Como surgiu a oportunidade para trabalhar na Agência Estado?
Não trabalhei na agência. Eu mandava charges aleatoriamente, eles colocavam junto com as duas mil fotos na galeria de imagem, os editores de jornais do Brasil todo olhavam e compravam ou não. Eu mandava quando queria, normalmente de duas a três por semana.
Na Agência Estado seus desenhos chegaram a atingir até 55 jornais espalhados pelo Brasil. Ali foi a sua consagração?
Isso foi aleatório. Em quatro anos de colaboração, saíram em 55 jornais brasileiros e um ou dois do exterior. Alguns publicavam uma charge quase semanalmente, outros só compraram uma vez. Mas acho um feito legal ter saído em tantos veículos…
É possível ganhar dinheiro sendo cartunista e chargista no Brasil?
Meu primeiro desenho no Pasquim deve estar fazendo 30 anos. Minha primeira HQ publicada na revista Porrada acho que isso também, ano que vem. Desde esta época me pergunto como cheguei até aqui. Se você tem um emprego em jornal que paga seu salário e faz uma “carreira” com certa consistência, creio que se vive razoavelmente. Mas se quiser mesmo ganhar dinheiro, não é a profissão indicada. Qualquer dentista de bairro ou advogado vive muito melhor. Minha definição desse tipo de atividade é esta: se você ganhasse na Mega-Sena amanhã, ia fazer as malas e sumir pra Europa. Em três meses estava desenhando de novo. É necessidade.
Como foi sair da imprensa sindical para a imprensa de mercado?
Eu sempre estive com os pés em vários barcos. Então acho que foi tudo caminhando junto. Só me recusei a fazer campanhas políticas. Nunca fiz, pra ninguém.
Como era, se é que tinha, um retorno dos leitores em relação ao que você publicava no jornal?
Na Agência Estado eu não tinha este retorno. Só sabia onde tinha publicado quando vinha o extrato pelo correio no outro mês.
Qual o tema que mais gosta de explorar em suas charges?
Estou meio parado com charges justamente porque não estou satisfeito com temas atuais. Acho que tem outros com o mesmo problema… a charge talvez tenha tido uma importância uma época, deixou de ter. Talvez esteja voltando, gente como Angeli e Laerte consegue retratar uma época com um desenho, e acho que vivemos uma época que precisa ser retratada. Em 30 anos este período vai jogar no lixo boa parte das pessoas importantes do país, e documentar isso pode ser interessante.
Você fez animações para canais de TV e peças de teatro. Gostaria que falasse a respeito destes trabalhos.
Novamente, sem mitificar muito… eu faço cartuns animados. Eu persigo ideias, e quando as tenho coloco na plataforma que acho indicada. Cheguei a ganhar prêmio de animação, assim com de charge, quadrinhos, tira e cartum. Mas eu não sou um animador. Faço cartuns animados.
Como é o processo de animação, que tipo de dinâmica impõe para realizar estes trabalhos?
É bem trabalhoso, embora meu processo seja de um desenho muito simples. Mas para um criador que controla desde a ideia no papel ou na cabeça, coloca em desenhos e os faz se mexerem, e depois pesquisa ou produz sons, músicas, vozes e vai montando, é bem gratificante. É um quebra-cabeça que se mexe.
A animação ainda engatinha no Brasil, isso faz com que trabalhos com grande potencial para a televisão, internet e cinema fiquem parados. Isso te desanima?
Existem estúdios fazendo coisas interessantes. Tem o Alê Abreu e algumas tevês estatais, e editais públicos deram contribuição, mas não é minha área. Não sou o indicado pra responder.
O futebol, especialmente o Palmeiras, é muito presente em sua vida. Você, nas charges, consegue separar a paixão clubística da independência crítica que a charge pede?
Em qualquer assunto, a crise é mais rica pra charge que a felicidade. O humor se alimenta da tragédia: o escorregão, a injustiça, o erro, o exagero. Tudo isso tem no futebol. Mas as charges de torcedor são, invariavelmente, circunscritas ao seu time e torcedores. Se eu estiver em um jornal esportivo, aí posso fazer algo mais abrangente.
O chargista é isento?
Ninguém é. Nenhum jornalista. No Rio Grande do Sul a associação médica defendeu uma médica que não queria atender uma pessoa de outro partido que não o dela. Você pode se esforçar, mas sua preferência vai aparecer. Ou você ganha uma úlcera.
Todos temos uma inclinação ideológica (na fé, futebol e política). É difícil separar? Já fez algo, um desenho, em que não acreditava?
Já fiz sim. Existe o trabalho autoral que você assina. Mas profissionalmente você pode fazer algo fora do seu leque de crenças. Nunca fiz algo que aviltasse minha opinião, mas acho que todo chargista já teve de refazer charges porque a melhor ideia não foi aprovada.
Nestes tempos bicudos, vira um campo minado falar de religião, sexo, política, futebol e ideologias?
Acho que sim. Mas você precisa ter seu norte e seguir em frente.
Você fez também ilustrações para álbuns de figurinhas. Como foi isso?
Fiz uma releitura pro álbum do centenário do Palmeiras. Foi uma coisa eventual, mas que me encheu de orgulho.
Também já apresentou seus textos de humor em formato de stand up comedy. Fale a respeito deste projeto.
Como eu disse acima, me considero meio que um caçador de ideias. Se eu tenho uma ideia e acho que ela vale a pena ser perseguida, vou atrás. Algumas podem exigir uma tira, outras um desenho animado, outras um álbum de quadrinhos. Algumas ideias precisavam ser texto, e eu escrevi em forma de stand up. Fiz algumas apresentações, foi tudo muito bem, mas achei cansativo ter que começar todo o processo quando se entra em um nicho novo: fazer contatos, ir atrás de oportunidades, falar com gente estabelecida, pedir espaço e chances. Também, de certa forma, o mundo está estranho hoje. Radicalizado. Confesso que me surpreendi quando vi como pensavam algumas pessoas que riam na minha apresentação. As ideias estão claras pra mim, mas ver gente que pensa o oposto que você rindo das mesmas coisas me fez pensar que talvez eu preferisse fazer aquelas pessoas pensar e não rir. Nem sempre dá pra fazer as duas cosias. Preferi dar um tempo, talvez adaptar pra outro formato.
Você nasceu na mesma cidade de Anita Garibaldi, e lançou um livro em homenagem a ela. Como surgiu a ideia deste projeto?
Não, nasci em São Paulo, vivo em Interlagos há quase 50 anos. Meus antepassados são de Laguna, Santa Catarina. Desde garoto, passando férias em Ribeirão Grande, lugarejo onde minha mãe nasceu, tinha desejo de um dia falar sobre Anita Garibaldi que, 150 anos antes, viveu a 10 quilômetros dali. Quando me senti pronto, fiz a biografia em quadrinhos. Foi publicada na Itália em 2016. Falta metade do projeto ainda.
Fale também de Alma, a história da S. E. Palmeiras.
É a história do Parque Antarctica-Palmeiras. Quando soube que demoliriam o estádio, achei que deveria falar daquele espaço, que é anterior ao clube. Sempre houve uma alma de esportista por ai. Primeira partida de futebol oficial do futebol brasileiro, primeira corrida de automóveis da América Latina, primeiro voo do correio aéreo partindo e pousando lá, entre outras coisas, antes mesmo do Palestra Itália comprar o espaço. Conto isso e junto conto a história do clube e da cidade que cresceu em volta. As ilustrações são do Luiz Carlos Fernandes. O livro não existiria sem ele.
Que história é essa da seleção brasileira de escritores? O Pindorama é uma espécie de Polytheama, time do Chico Buarque?
Sempre joguei futebol tenho duas ou três cirurgias e vários parafusos no corpo por conta disso. Fui convidado pelo jornalista Celso de Campos Jr. para fazer parte de um time de escritores que iriam a Frankfurt com o patrocínio no Instituto Goethe jogar contra o time equivalente alemão em 2013. A Federação alemã mantém um time há quase 15 anos. Com treinos semanais, técnico e patrocínio. Fomos com um bando sem treino nem organização, porque houve pouco tempo para preparar, e o foco da entidade que nos convocou aqui em São Paulo era mais cultural. Só que um bando que nunca tinha se juntado em um campo oficial contra um time treinado havia uma década, levamos uma surra vergonhosa de 9 a 1. O projeto previa uma partida de volta aqui em 2014, às vésperas da Copa. O Celso abdicou do cargo e fui alçado ao posto. Sou muito competitivo, no sentido de que tenho que dar o melhor esportivamente. Como tinha uns três meses pra preparar o time, o Instituto aceitou minhas condições de trazer treinador e fazer uns amistosos. Reforcei o time com alguns escritores veteranos boleiros. Empatamos por 0 a 0 com uma bola na trave no último lance do jogo.
Engraçado que dias depois a seleção profissional perdeu em casa por 7 a 1. Além de termos ido muito melhor, aquela derrota limpou a barra do nosso 9 a 1 de 2013. Não tínhamos treino, foi fora de casa com temperatura de 4 graus. Eles salvaram nossa vergonha. Depois disso o Instituto Goethe saiu da organização, o projeto acabou. A relação interna sempre foi ruim, com disputas mesquinhas pelo poder no time. A vaidade de escritor potencializada pela vaidade de jogador, um inferno. Quando saiu a entidade séria que mantinha tudo coeso, o time desabou. A ideia era fantástica, mas o trabalho pra manter é brutal, ninguém carregou o piano depois. Mas fiz dois ou três amigos que vou levar pra vida.
Você recebe convites para ilustrar livros infantis. O que um escritor ou editora precisa fazer para te seduzir a participar de um projeto infantil?
Ilustrei pouca coisa nesta área. Acho que é das mais desenvolvidas no mercado brasileiro. Não deve em nada pra nenhum lugar do mundo.
O que ainda pretende fazer?
Estou em fase de crisálida. Amadurecendo algumas coisas em algumas direções. Tem a ver com Anita, e também internet.
Em poucas linhas, o que significa o desenho pra você?
Às vezes prazer, muitas outras vezes sacrifício. Gosto mais de escrever do que desenhar, o erro e o conserto do erro me dói menos. Mas a sensação de um bom desenho feito e terminado é das melhores que um artista pode sentir na vida.