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“Talento natural não existe”

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h31 - Publicado em 6 jul 2017, 09h31

Na série com grandes quadrinistas, Rafael Spaca e Rafael Coutinho fazem dupla no nome e no papo sobre Laerte, família, política e trabalho

Cachalote

Por Rafael Spaca

Rafael Coutinho

Você é filho do Laerte, uma bandeira do traço nacional. Mas conseguiu desenvolver um traço próprio e hoje é um dos maiores expoentes do traço no país, ganhou vida própria. Foi difícil chegar até aqui?

Foi, sempre é. Não acho que minha vida foi mais difícil que a de ninguém, trabalho com o que amo, sempre tive total liberdade pra escolher e desenvolver projetos que quis, e sempre busquei por eles. Mas estou rodeado de gente que me ajuda, tenho muita sorte. É um meio muito afetuoso o dos quadrinhos, todo mundo numa luta intensa, buscando por saídas de forma independente, autônoma. Me encontrei aqui, e sinto que encontrei meu público também. Não nego o fato de que, por ser filho do Laerte, consegui abrir portas que não estariam à disposição de qualquer um, mas realmente não trabalho em um meio de abastados. É contra a corrente, sempre. Mas percebi também que não me fazia nada bem me vitimizar e aceitar as derrotas passivamente, tampouco aceitar as limitações do meio editorial e gráfico/plástico. Dava pra escrever um livro sobre os projetos que não deram certo, porque foram muitos. Mas passei a questionar a própria ideia de sucesso, de guerra a ser vencida, e entender essa carreira que escolhi como um caminho coletivo em constante construção. Os livros também, como projetos que preciso concluir independente do que possam gerar posteriormente. Não trabalho com quadrinho para as massas, não vou ficar rico com isso, e acho que entendi isso vendo meu pai trabalhar. Por isso mesmo é que a coisa é tão encantadora, uma mistura de Don Quixote com Matrix. O potencial da linguagem e do meio é infinito, eu só precisava internalizar a coisa do trabalho trabalho trabalho. Mas vale dizer também que não sou tão bem resolvido assim. É um jogo pra ser jogado ponto a ponto.

Rafael + Laerte

Que peso tem carregar o Coutinho no sobrenome?

O Coutinho não pesa, porque meu pai sempre foi o/a “Laerte” apenas. Mas minha família desse lado é bem talentosa, temos expoentes em diversos meios, minha vó é um caso a ser estudado. Minha mãe, Merli, é uma figura que sempre mirou bem alto, teve uma vida muito intensa como médica. Acho que entre eu e meu irmão sempre houve essa exigência auto-inflingida, mas nunca fomos cobrados pra sermos os melhores nem nada do tipo. Nasci e fui criado em uma estrutura familiar meio múltipla, onde minha madrasta, Miriam (mãe da minha irmã), teve um papel forte também. Vivia muito fora de casa, na casa de amigos, e nos mudamos muito também de cidade.

Não sei resumir essa experiência, mas foi uma educação “à esquerda” de uma forma geral. Até um certo momento a maior parte dos meus amigos e amigas eram de classe mais baixa. Essas coisas (eu acho) me deram uma noção mais clara da bobagem de um nome. Sou um classe média alta no Brasil, estudei artes, pude viajar e conhecer o mundo, sem abusos. Então acho que sobrenome é isso, né? Privilégios. Daí que realmente levo uma vida em busca de uma certa “correção” nesse jogo. São os assuntos que mais me interessam como autor, sinto que devo devolver, dando aulas, refletindo, me incomodo com essa discrepância de realidades na nossa sociedade. Mas estou longe de achar esse equilíbrio, se é que há. No fim das contas sei que sou um burguês bem alimentado homem e branco, não posso ser hipócrita.

Mas sim, ser filho do Laerte teve um peso sim. Por vezes ruim, em outros melhor. Hoje em dia somos muito parceiros, sempre fomos. Ele sempre esteve lá nos momentos-chave da minha formação, do jeito dele. Sem alterar muito meu ecossistema, mas ali, mais presente do que como figura formadora de grandes frases e orientações contundentes. O que hoje em dia sou muito grato e realmente acho a melhor forma de acompanhar os filhos. E, como disse, quadrinhos não passa na Globo, não o do meio do qual fazemos parte.

Há muitos pontos de contato com o grande público, momentos onde projetos e ideias repercutem, histórias que criam esse efeito tectônico que toca mais pessoas. Mas realmente não busco pelo glamour da coisa, busco por esse equilíbrio entre liberdade criativa total e bons trabalhos encomendados que dialoguem com esse corpo de trabalho que criei. E claro, pagar minhas contas.

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A Prisão Soldada

Mas vejo nosso meio como um eterno garimpo pelo ouro. Ouro sendo a repercussão de um trabalho, o reconhecimento em um determinado momento pelo esforço empreendido. E não há como negar que todos nós de certa forma cochichamos nos bastidores sobre a possibilidade de um livro virar série, ou fulano que ganhou um grande prêmio na Europa. Acho que de certa forma isso também é parte do garimpo, almejar por esse holofote acompanhado de conforto e grana. Enfim. ARTE, como sempre foi e será.

E nesse cenário construí um papel bem ativo, e gosto muito de poder contribuir, é algo que me satisfaz profundamente. E sei que construí essa dimensão política/fomentadora da cena na minha carreira em parte por ser filho do Laerte. Percebi que era possível abrir caminhos dessa forma e fui abrindo, sozinho ou junto com ele. Algumas delas movidas pelo meu desejo de fazer algo, outras pelo desejo dele em fazer isso e aquilo, outras por fazermos juntos projetos em que acreditávamos, e outras tantas porque realmente queremos fazer e construir com mais gente, para mais gente. Nos beneficiamos com isso também, não é filantropia. Hoje em dia conheço todo mundo do meio, então consigo com mais facilidade me consultar com colegas e construir ideias que considero plataformas para parte do meio crescer, projetos acontecerem.

Fale a respeito da sua mãe e do tipo de influência que ela teve na sua vida.

Minha mãe é uma mulher muito forte e intensa. Somos muito próximos, mas precisamos manter uma certa distância pra não arrancarmos a pele um do outro. Ela agora tem diminuído um pouco o ritmo, mas sempre foi o perfil “três empregos, dois filhos, politizada e culta, fala seis línguas”, um perfil de mulher que acho que apareceu muito nos 60/70, e que nos 80 montaram essa coisa com carreira muito forte. Nunca parava em um lugar por muito tempo, já morou em mais de dez países, apaixonada por medicina, política e as relações humanas. Uma mulher que assumiu o papel do pai numa família com sete irmãos e mais um tanto de primos que orbitavam em volta da família, e sempre foi uma pessoa que vai pra cima, que peita, que questiona.

Confesso que tenho muita dificuldade de resumir minha mãe, mas entendo claramente que tenho questões freudianas profundas pra resolver nessa relação intensa que temos. Admiro muito ela, é meu maior exemplo de feminismo no mundo — imagino que todo mundo diga isso da própria mãe, mas ela é realmente um caso à parte (acho até que ela extrapola essa discussão, é realmente um raro exemplo pra qualquer gênero de emancipação e independência). Temos nossos arranca-rabos e dificuldades, mas sei que minha exigência com o que faço vem em grande parte por ter crescido vendo essa mulher viver, além de ter aprendido com ela a ser atento aspectos da vida, do Brasil, do povo, um tipo de sensibilidade que ela tem com as pessoas que é bem raro. Discutir política e gente com a minha mãe é um negócio louco, ela é muito apaixonada, se exalta, discursa por horas, defende sua visão com muita paixão, além de ser muito safa, vivida, nada passa barato pra ela. Quantas foram nossas conversas, por vezes acaloradas, bem intensas. Mas gostaria muito que ela não fosse tão exigente consigo mesma.

E no desenho, no Brasil e no exterior, quem faz a sua cabeça?

Puxa, tem muita gente. Todo dia conheço dois ou três que me confundem tudo. No Brasil sou fã incondicional de uns dez: Pedro Franz, Diego Gerlach, Rafael Sica, Denny Chang, Paula Puiupo, Laura Lannes, Gabriel Góes. Há uma geração nova com uma compreensão muito incrível da linguagem. O pessoal da Dente, em Brasília (Heron Prado, Lucas Gehre, Gabi LoveLove6), Adonis, Thales Lira, mas a coisa está tão viva que todo dia realmente descubro novos autores que me interessam. No exterior, tenho ficado muito impressionado com as publicações da Fremok, editora franco-belga mais voltada para um tipo de quadrinho mais próximo das artes plásticas. Mas ainda sou fã de alguns autores menos experimentais, como Jaime Hernandes, Tayio Matsumoto, Cyril Pedrosa, Alisson Bechdel. Adoro os desenhos do Grampá, adoro a mistura do trabalho da Dominique Goblet.

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Tudo começou aos 16 anos, desenhando o storyboard do filme Bicho de 7 Cabeças (2001), da diretora Laís Bodanzky. Como surgiu o convite?

Um professor de geografia, o Marcelo, era amigo da Laís. Me perguntou se eu não topava, conheci ela e topei. Ela me ofereceu 150 reais na época, meu primeiro freela. Lembro que me senti muito independente, e depois disso nunca mais parei de trabalhar — mas durante anos os empregos não estariam relacionados com artes, era mais garçom, vendedor, atendente, essas coisas. Os desenhos ficaram péssimos, confesso que não sei se aquilo serviu pra algo na produção do filme, ou se era uma etapa a ser concluída para algum edital ou coisa do tipo. E eu não tinha a dimensão do projeto, só tinha achado a história ótima e queria testar, desenhar uma centena de cenas, era a primeira vez que eu fazia aquilo. E claro, me senti muito envaidecido, eu estava no segundo colegial, só pensava em jogar bola.

Antes disso você já rabiscava?

Sim, sempre desenhei. Na escola desenhar bem acabava sendo não só uma forma de expressão, mas também um jeito de angariar amigos e impressionar professores. Era como se eu falasse chinês. Como viajamos muito depois do divórcio dos meus pais, chegar e desenhar facilitava pra que eu e meu irmão nos enturmássemos rápido. Passei em muitas matérias e salvei a pele de muito amigo/a com desenhos de moléculas tridimensionais e a biosfera em fatias de terra flutuantes.

Storyboard e quadrinhos são quase a mesma coisa?

Não. São completamente diferentes. Storyboards são brincadeira de criança perto de quadrinhos.

A fase de fanzines veio quando? O que produzia?

Veio na Sociedade Radioativa. Antes disso eu já brincava com a ideia, mas de uma forma meio dispersa. Fiz uma série de histórias de uma página em uma publicação dentro de envelopes, se chamava Número”. Fiz uma outra edição quando fui pruma viagem pro exterior aos 18 também, mas a parte mais ativa foi na Sociedade. Era um grupo grande de pessoas que se encontravam no bar pra discutir os rumos do quadrinho em SP, e eu peguei o bonde andando. Eles já estavam na ativa havia anos, e a revista já tinha um perfil editorial bem claro, boêmio/vagabundo/underground. Era claramente um pessoal afim de fazer algo nos moldes das coisas da Circo, só que 20 anos depois, baseando-se nas coisas que a gente vivia na época, pensava. Namoros, casos, trepadas, falta de sentido, cultura de bar, bandas de rock e punk de amigos, poesia, etc. Foi um período muito bom, a primeira vez em que ponderei fazer aquilo de uma forma mais séria. Éramos todos muito pretensiosos, mas era uma arrogância juvenil muito necessária pra gente, muito vital.

Comecei a fazer minha primeira história longa naquela época, a Bingo, além de flertar com o formato de grid fechado em 3X4, o que mantive durante muito tempo e ainda gosto muito. Histórias meio nonsense, com um tipo de humor meio irresponsável e poético. Enfim, acho que comecei a encontrar minha voz como autor ali, testando coisas, me assumindo aos poucos como “quadrinista” de uma forma ainda tímida.

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Pretende publicar uma antologia da série Beijo Adolescente?

Sim. Serão 9 volumes. Mas 2017 tirei pra balanço, preciso de um tempo sem desenvolver história longa.

Antes de ingressar de cabeça nos desenhos, você desenvolveu um trabalho no cinema, especialmente com curta-metragem. Por quê?

Fiz muita coisa antes de cair de cabeça em quadrinhos, e cinema veio um tanto depois. Trabalhei como animador muitos anos, pintei quadros, trabalhei com galeria, saí, tive um coletivo de arte experimental chamado Base-V. Tive uma loja com sócios, a Cachalote. Cinema foi um flerte, em grande parte por ter conhecido o Peppe Siffredi, diretor de cinema e publicidade. Ficamos muito amigos e passamos a fazer um monte de coisas juntos. Escrevemos um longa chamado Spread, dirigimos juntos o Fogo Fácil. Antes disso o Peppe me chamou pra animar partes do curta dele e do Marcelo Mesquita, o Ao Vivo, e foi ali que comecei a entrar mais nisso.

Você logrou êxito no cinema, pensa em voltar a filmar?

Não logrei grande êxito, foram experiências pontuais muito importantes pra mim, mas pequenas. Voltaria sim, gosto muito do potencial da linguagem, consigo me enxergar entrando novamente. Mas não posso mais entrar como eu entrava, na cara e na coragem, arriscando tudo, porque tenho filhotes e outra vida agora. Mas sim, adoraria tentar de novo.

Cinema não dá mais dinheiro do que desenho?

Depende do cinema e do desenho.

É possível pagar as contas desenhando no Brasil?

Sim. Mas é uma profissão que exige do autor um leque de atividades relacionadas bem amplo. Trabalhar com artes gráficas hoje em dia não é mais como era antes, onde o desenhista sentava na prancheta e fim. Dar aula, frilar com ilustração e design são coisas meio que básicas hoje em dia, ninguém mais no meio tenta fazer só quadrinhos. Mas acho que isso é desse tempo novo, onde o profissional liberal se tornou esse ser interdisciplinar com múltiplos desejos artísticos. Mas sim, é possível prosperar na área. Difícil e demorado, mas possível.

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E vale dizer aqui que essa é uma relação a ser definida pelos seres humanos desse planeta de uma forma muito individual. Quanto dinheiro você precisa pra viver, o que esperar do trabalho nessa busca por realização pessoal, tudo isso em uma era em que ser “independente” e “ir atrás dos seus sonhos” são slogans de propaganda de hidratante. Construir uma carreira de artista gráfico no Brasil requer muita disciplina e empenho, aguentar um primeiro arco de uns dez anos muito magros. E sim, depois PODE melhorar. Tenho amigos que são ricos desenhando. Outros que não conseguem sobreviver. Existem os fluxos do mercado, os investimentos do estado em cultura, e a própria capacidade do artista em gerir sua carreira, se tornar uma startup de si mesmo. Nem todo mundo tem esse perfil. Se você realmente quer enriquecer, melhor apostar em publicidade, não quadrinhos autorais.

Robin Hood

Essa geração que está ascendendo é mais generosa em número de talentos do que a do seu pai? É possível fazer algum tipo de comparação?

É, mas um pouco injusto. Somos muito mais gente no mundo, temos a internet pra nos fazer evidentes pro mundo, nos autopublicamos e temos 40 anos de tecnologia ao nosso lado (ele e a geração dele também, vale dizer que somos todos parte desse ecossistema). Em uma mensagem, você mandou seu portfolio inteiro pruma editora na Bulgária. Scanners, impressoras digitais, Photoshop, redes sociais, financiamentos coletivos, tudo em casa, essas coisas mudaram tudo.

Você cursou artes plásticas na Unesp, além de alguns cursos fora de pintura e escultura. Esse curso te serviu tanto para fazer cinema quanto quadrinhos?

Serviu pra me situar. Não sabia nada de artes antes da Unesp. Mesmo com suas deficiências, foi onde comecei a me enxergar como artista, onde construí minha identidade, onde tive meu primeiro contato com a coisa toda. E onde fiz profundas amizades que pautaram minha produção e meu posicionamento nos anos seguintes.

Estudar é importante ou o que vale mesmo é o talento natural?

Estudar é sempre importante. Não consigo nem entender esse papo de talento natural. Estamos sempre estudando, mesmo que não seja pelos meios acadêmicos. Talento natural é coisa da Carochinha. Existem pessoas com facilidades pra línguas, outras pra eletrônica, até mesmo quem tenha facilidade com trabalhos manuais. Mas talento natural não existe. Existe trabalho, repertório, expansão de vocabulário, pra quem quer seguir nas artes. Existe história da arte, existe sensibilidade. Talento natural pra mim é aquele garoto ou garota que, sem nenhum estímulo da sociedade, desenvolveu algo no meio de condições extremas. Mas a partir dali ele precisará de mais, como todos nós. Falar em talento natural é buscar desculpa pra enfraquecer o estado e as políticas públicas, e dizer que a solução da falência do mercado e das instituições ligadas à cultura é a “economia criativa”, como se bastasse ficar olhando uma bactéria se multiplicar na lama pra que toda a vida na terra se autorregulasse e a natureza estivesse salva. Não existe dom, o que existe é estímulo e ambiente pra que a linguagem se desenvolva na pessoa, através de trabalho e dedicação, mesmo que o sujeito pare por anos e retome de um outro pé mais na frente. Já estamos a 100 anos luz da arte conceitual, esse papo é do século retrasado. Ficar usando o Basquiat e o Bispo do Rosário pra construir esse tipo de raciocínio é roubar no jogo. Há gênios que de forma intuitiva constroem raciocínios muito complexos, mas há um acúmulo de informação ali, de empenho, de hora/trabalho, que é intransponível. E é ridículo construir um raciocínio como esse usando um gênio da raça como exemplo, passa a ideia pra milhares de pessoas de que esse jogo é fácil, que basta nascer como Michael Jordan.

Arte é construção.

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Você conseguiria ensinar um leigo a desenhar? É possível transmitir isso?

Claro, ensino muita gente sem repertório, que parou lá atrás na infância. É o que mais gosto de fazer quando dou aula. Parei de dar curso pra quem já desenha. São ferramentas, você só tem que apresentar as possibilidades de uma forma livre, democrática, sem os cânones, sem bonito e feito, certo e errado. Aí vai.

Muchacha, de Laerte

Sua primeira grande publicação foi no álbum Muchacha (2010), quando trabalhou junto com seu pai. A parceria foi boa? Repetiria?

Não foi a primeira, eu já tinha feito bastante coisa. O próprio Cachalote saiu antes. E sim, foi ótima. Adoro o livro, acho uma das coisas mais impressionantes que já li. Sou muito fã do meu pai, acho que ele ainda mantém um raciocínio muito novo, muito fresco. Uma capacidade de sintetizar ações e emoções aliado ao desenho maduro, onde ele consegue relaxar e tencionar essa musculatura do controle e da precisão como poucos.

Repetiria quando ele quisesse.

Você voltou a trabalhar em coautoria, mas desta vez com o escritor Daniel Galera na graphic novel Cachalote. Como surgiu a ideia?

Nos conhecemos quando o Galera morava em SP, apresentados por um amigo em comum, o Grampá. Frequentávamos um bar chamado Mercearia São Pedro, e ambos queriam fazer algo com o outro. No mesmo dia em que ficamos amigos decidimos que faríamos um livro juntos. Mas daí em diante foram dois anos difíceis de resumir, porque fomos ficando amigos no decorrer do processo criativo. Trocamos muita referências, filmes, discos, muitas conversas sobre a vida e nossas vontades. Foi aos poucos que fomos entendendo onde nossos universos criativos se encontravam, e o enredo foi se amplificando, virando múltiplas histórias. Foi a parceria mais intensa que vivi de criação, o Galera é realmente incrível. Muito disciplinado, muito mergulhado desde cedo na ideia de ser romancista. Ele já tinha um corpo de trabalho bem volumoso quando o conheci e eu já tinha lido grande parte.

Aí fomos criando dinâmicas aos poucos: mandávamos e-mails com partes de histórias um pro outro, cada um ia adicionando um ou outro aspecto nas histórias. Havia histórias que eram mais dele, outras mais minhas, mas nunca houve uma separação sobre até onde o outro podia entrar. Mas realmente tenho dificuldade de lembrar os detalhes, foram dois anos e meio muito cheios.

Cachalote

Teve também a feliz coincidência da Cia das Letras estar querendo montar o selo de quadrinhos, e aí conhecemos o André Conti, na época um jovem editor de literatura, muito ligado aos quadrinhos. Ficamos muito amigos, os três, e apresentamos o projeto para uma empresa chamada RT, do Rodrigo Teixeira, com a qual o Galera já havia trabalhado. O Rodrigo se interessou pelo projeto e comprou os direitos de adaptação pra audiovisual, e a partir daí trabalhamos com um pouco mais de respiro financeiro também. O Rodrigo foi um grande parceiro em outros projetos pra mim, como o Mensur.

Te atrai a ideia de trabalhar em parceria?

Muito. Sempre procuro, contrabalanceia bem com os projetos que faço sozinho. Acho que sou um sujeito muito social, social demais até, preciso muito dessas dinâmicas coletivas ou em dupla. Recentemente organizei parte delas num site chamado DUPLAS (quatorzeduplas.tumblr.com), com desenhos que fiz em dupla com um monte de gente. Gosto do desconforto e do aprendizado que vem de encarar alguém muito diferente de mim e tentar me metamorfosear em algo que acompanhe o ritmo e a poética do outro.

Alguns realizadores não gostam de dividir o protagonismo. Você não é vaidoso?

Sou, claro que sou. Dizer que não sou seria de uma vaidade ímpar. Todo mundo é vaidoso, mas acho que são tipos de vaidade, intensidades. Gosto de acreditar que busco me dissolver nesses processos, e que sou consciente o suficiente da minha vaidade pra não deixar ela atrapalhar o que quero realizar, ou entrar no meio das relações. Mas posso estar me enganando profundamente.

Me sinto vaidoso do que já fiz, tenho um orgulho quase estético da coisa (fiz muita bobagem também, mas no geral, acho bom). E acho que lá em casa esse tipo de entendimento de orgulho pessoal e vaidade vinham muito com o pé no chão, em um registro mais controlado. Vinha envernizado dessa consciência política, acho. De tentar enxergar o outro, sempre. É meio ridículo ser exibido, mas hoje em dia acho que tem um grau aí que é necessário. Um carinho no ego mesmo, pra você poder encarar de igual pra igual outros artistas e trabalhar e criar sem medo, sem ruído. A própria insegurança pode ser um recalque da vaidade.

Rafael Coutinho + Bernardo França

Mas arrisco dizer que a vaidade do artista é a de brincar com o fogo dos deuses. É se sentir muito especial por encontrar algo mágico, sentir cada célula do corpo se agitar com uma ideia, um conceito, uma imagem. É um movimento de dança, um ângulo de câmera, uma linha de diálogo. Ver vida nos olhos de um personagem, e o poder que aquilo traz. É perder totalmente a noção do ridículo que é estar sozinho no mundo, rindo àtoa, apaixonado por algo absolutamente inútil. É bom demais quando chegamos nesse lugar, e a única saída é tentar de novo e de novo.

Uma faceta pouco conhecida da sua trajetória é a participação no coletivo Base-V. O que fazia lá?

Éramos iguais: artistas, estudantes de arte, buscando por caminhos por fora do esquema das galerias, próximo da arte de rua, do design e ilustração, mas com um claro desejo de experimentar e testar os conteúdos e técnicas. Era um coletivo de arte, acho — eles ainda fazem coisas juntos, murais, exposições. Além das infinitas discussões sobre arte, sobre mercado, sobre vanguarda, retaguarda, sobre nossa própria produção no meio de tudo isso, fazíamos mail art, panfletos loucos e distribuíamos na rua, muita serigrafia, web art, pintura, muita pintura. Mas a ideia era sempre buscar por algo novo e diferente do que estávamos fazendo, entender o potencial dos projetos em função do que tinham de único e específico. Publicações estranhas, camisetas, lambe-lambe. Passei bons anos mergulhado ali, consumido por aquilo tudo. Assinávamos Base-V sempre, então essa coisa da autoralidade era toda entendida por outro ângulo. Acho que em algum momento em que as coisas já não estavam tão bem pra gente, comecei a fazer coisas do Rafa, quadrinhos, pinturas, e fui me distanciando aos poucos dessa identidade de grupo. Mas são artistas muito poderosos poeticamente falando hoje em dia, todos criaram identidades autônomas depois desse momento. Mas sempre achei incrível como conseguimos (e depois os três) criar algo tão forte e juntos, nos doarmos pra essa visão coletiva.

Você faz muita graphic novel, que são ótimas, mas não são acessíveis a uma boa parte da população. Pretende desenvolver trabalhos mais populares, para alcançar uma camada maior de público?

Acho que já fiz e faço bastante nesse sentido, mas não há um fim nisso, né? Leitura no Brasil é um negócio muito complicado, educação muito sucateada, são muitas frentes atrapalhando nesse meio de campo. Dou muita aula pra população sem grana, sempre tento me manter em algum tipo de sintonia com essa demanda, mas é uma doença no país.

O Escravo Etíope

Como disse, acho o fim da picada ficar me pintando de bom moço em prol das massas, porque sou claramente parte do problema. Mas tento no meu microcosmos jogar pro lado que acredito, nas várias situações que compõem minha vida. Essa reunião de ações que dizem se você tá ajudando ou atrapalhando não geram um número, um coeficiente que te faz sentir que tá tudo bem. Não tá e nunca vai estar, mas não dá pra desistir nunca. Mas quando dei aula em periferia não sentia um alívio de estar ajudando. Sentia que estávamos todos num problema gigantesco e sem solução, e que era preciso respirar fundo e travar uma relação mais longeva com isso do que aquele resultado imediato.

Então, respondendo sua pergunta de forma mais objetiva: sim, as graphic novels são muito caras e inacessíveis. Doei muito livro pra biblioteca, soltei pra download de graça todos os livros da minha editora por muitos anos, curei sites de conteúdo livre e de graça de quadrinhos, organizo um evento de graça no MIS, a DES.GRÁFICA, mantenho um canal aberto pra quem quiser mandar trabalhos e se inscrever na convocatória por projetos, e realmente tento ensinar quadrinhos pra quem tem menos. Dou aulas pelo Sesc há muitos anos, e em todas essas circunstâncias essa pauta aparece, e espero muito que continue aparecendo: como deixar a coisa mais acessível. Mas estou num jogo muito grande, preciso continuar jogando. Preciso vender livros, esses livros precisam se bancar, compra de governo foi pro saco, mercado editorial está em crise e pedindo um cheque alto pra cobrir suas contas. E em cima disso tenho minhas necessidades burguesas de pai de dois meninos, tentando me segurar no meio da melhor forma que posso.

E há outras pautas importantes aí, como a de pouquíssimos negros nos quadrinhos, o machismo endêmico, o movimento feminista, a falta de organização da cena no confronto com o sistema público e os mecanismos de fomento, e claro, os conteúdos, os livros, as obras que precisam ser poderosas e urgentes. Todas elas nos exigem atenção e sensibilidade, nós profissionais do meio, e não pretendo achar desculpas pra elas, continuo atento, na medida que consigo, me engajando eventualmente de acordo com as oportunidades, encaixando as pautas. Não sou só um artista mais, sou um articulador, crio projetos coletivos há bastante tempo já. Sei que preciso ficar atento a mais coisas hoje em dia além do meu trabalho como autor, mas luto pra que ele não perca espaço demais pra essas articulações. Quero ser bom no que faço, quero que meu trabalho me represente na minha totalidade, quero conseguir ir sempre fundo, mas sei que exige empenho e treino constante. É como apneia pra mim.

A Mão Livre

Você publica sua obras na Cia. das Letras. Como é a sua relação com a editora, eles te dão liberdade para criar?

Total. Temos uma ótima relação, conheço intimamente as pessoas ali, são profissionais muito dedicados e carinhosos, gente devota do livro. Embora sejam gigantes hoje em dia, mantém uma escala humana nas relações, tenho bons amigos ali. E nunca me exigiram exclusividade tampouco, entendem que é necessário pro autor se manter aberto pra outras editoras, se autopublicar, vender os livros da própria editora em eventos, etc. Sou muito feliz como autor da casa, até aqui.

Acredita que as graphic novels são as grandes responsáveis em vencer a resistência das grandes editoras em relação aos quadrinhos?

O formato abriu as portas para que os quadrinhos entrassem nas prateleiras das megastores de livros, e isso foi um movimento mundial. E sim, em certa medida, editoras de literatura passaram a olhar pro quadrinho de forma diferente. Editoras de quadrinhos entraram na dança também, mirando esse novo canal de revenda. Mas houve um hiato comprido de uns dez anos, desde a era Collor, e todo mercado se fechou. Essa nova retomada nos meados dos 2000 também foi acompanhada do fim de uma relação longa entre o leitor de quadrinhos e as bancas de jornal, que está também relacionada as distribuidoras do país. Quem controla esse nicho são a Dinap, Panini e JBC. Mangá e herói. Mas acho também que houve uma mudança no perfil dos artistas e a ambição de toda uma geração.

Enfim, é uma conversa longa essa, e também não tenho todos os números dessas movimentações. Houve o boom da cena independente, as feiras e os eventos, e agora vivemos esse outro momento muito peculiar com o estouro da Comicon, e do lado do independentes, o surgimento de uma forte cultura da publicação independente não relacionada aos quadrinhos.

O que sei que, nessa nossa bagunça estrutural brasileira, somos um cenário forte no meio hoje em dia.

Projeto X

Há preconceito com quem lê e faz quadrinhos?

Há preconceito com tudo. Sempre haverá com quadrinhos, mas não é algo que me chame a atenção. Há ainda muita desinformação. O grande público ainda está muito afastado da linguagem, embora estejamos em franca expansão.

O que é mentira e verdade nisso: quadrinhos são a nona arte! e quadrinhos são uma literatura menor!

Quadrinhos não deve nada a ninguém. É uma linguagem, como o teatro, como cinema, música. Ele não é um subproduto da literatura. Há quem diga que vem lá das cavernas, nos primeiros registros de imagem em sequência. Não me interesso muito por esse assunto, e tenho a sensação de que não precisamos mais falar sobre isso, todos nós. Quadrinhos no Brasil tem mais de 100 anos de produção ativa, foram ferramenta na luta pela democracia, fizeram parte da vida íntima dos brasileiros por décadas, e me refiro ao quadrinho adulto, não a Turma da Mônica, que é um outro capítulo bem extenso.

Essa conversa deve ser abordada de duas formas diferentes: uma é a didática, onde quem responde deve buscar com calma educar as pessoas sobre o que está rolando, sobre a história do meio, sobre acontecimentos e informação que de certa forma são de uma elite com grana pra comprar e tempo pra ler um gibi chegando em casa depois do trabalho. E aí eu acho realmente necessário conversar com calma sobre isso, entender que o outro não tem nenhuma obrigação de saber quem foi Portinari ou o movimento concretista, ou quem foi Moebius e Henfil.

A outra abordagem é aquela onde quem pergunta é um sujeito com a cabeça lá nos anos 80, 90, e tem passado tempo demais em fóruns discutindo temas já sem ressonância no meio. É preciso um grande esforço pra simplesmente não ver 40 anos de produção mundial que respondem a essas indagações com muita facilidade.

Trabalhar em jornal está nos seus planos?

Eu colaboro na Folha, na Ilustrada. Em uma área chamada Quadrão, com o Luis Gê, meu pai, Angeli e o Ricardo Coimbra. Já fiz muita coisa pra jornal. É um meio enfraquecido, mas ainda sim muito presente na vida das pessoas.

Qual é o seu plano?

Em julho agora eu, Angeli, Carol Guaycuru, Laerte, Bruno Girello e André Conti, finalmente colocaremos andando o Projeto Baiacu, uma residência de quadrinhos que se desdobra em uma revista/livro, um site com todo esse material da casa (fotos, vídeos, etc) e uma versão digital da impressa, mas extensa. É uma experiência bem nova com a qual trabalhamos há mais de quatro anos, e conta com o apoio do Sesc Ipiranga, do Sesc Digital, do Instituto Hilda Hilst (onde será a casa) e da editora Todavia, que fará a edição impressa e digital. Contaremos com dez artistas na casa e quatro de fora, além de espaço para novos talentos no site. Estamos muito empolgados com isso, vai ser muito bom ver finalmente a coisa em pé.

Tenho outras atividades no ano, dando aulas e lançando os livros. Lanço um outro livro agora, o Modo Avião, projeto em parceria com o músico Lucas Santanna e o escritor João Paulo Cuenca, uma extensão gráfico visual do disco novo do Lucas. Ficou lindo e totalmente diferente do que fiz até aqui.

No fim do ano coordeno mais uma edição da DES.GRÁFICA, no MIS, evento voltado para a experimentação nos quadrinhos, com feira e palestras. O projeto teve sua primeira edição ano passado, muita gente participou e veio de longe. Esse ano queremos melhorar o que rolou, trazer mais gente, expandir o conceito de experimentação no meio. Muito feliz e grato pelo MIS ter apostado conosco nisso, acredito que conseguiremos construir uma base importante pro quadrinho de uma forma geral ali.

Você fez muita animação. Quais as recordações dessa fase?

Muitas. Trabalhei com gente que me ensinou muito, como o Paulo Muppet e a Lu Eguti, da Birdo. Foram uns quatro anos bem animados, hehe. Mas percebi que não tenho o perfil do animador. É um trabalho muito monstruoso pra pouco reconhecimento. É preciso ter um tipo de amor a coisa muito grande, acho que os animadores são de uma seita paralela. Como os quadrinistas, talvez. Recentemente fiz os concepts, cenários e direção de arte com o Pedro Franz de uma animação chamada TORRE, produzida pelo Estúdio Teremim, e dirigida pela Nadia Mangolini e pelo Marcus Vinicius Vasconcelos, sobre a família do braço direito do Mariguella, o Virgílio, vai pra festivais esse ano. Animamos sobre os áudios das conversas que os diretores tiveram com os filhos dele, sobre o desaparecimento do pai, e sobre a vida da mãe com quatro filhos, presa na Torre das Donzelas, e depois como fugitiva e exilada. Então de certa forma continuo me permitindo fazer projetos de animação.

Isso de ser uma coisa ou ser outra é complicada, né? Não tenho coragem de dizer que sou animador, porque parei de trabalhar ativamente com isso há mais de dez anos. A mesma coisa com pintura, que já tem pelo menos cinco anos que não pego. Mas me permito entrar na linguagem e no meio e fazer projetos. A única coisa hoje em dia que tenho coragem de dizer que sou é um bom pagador de impostos.

Black Blocs

Seu pai e sua mãe são politizados. Seus trabalhos, em especial nos desenhos, não possuem esse cunho. É um modo de se preservar dos extremos que assolam esse país?

Acho meus trabalhos bem relacionados com política, me sinto próximo do ambiente. Não faço um trabalho como o que eles fizeram, com ação direta nas bases, um trabalho de conscientização, de luta direta. Mas acredito muito na força da subjetividade, da sugestão, como elemento modificador. Sei porque fui modificado incontáveis vezes por romances, filmes, que não tratavam de política diretamente, mas que mexeram com minha percepção das relações humanas, das estruturas sociais, dos acordos e desacordos. Mas faço sempre muita coisa assumidamente política. A série do Quadrão pra mim é só sobre política. Cobri eleições pra Folha quando o Haddad se elegeu, tenho muitos trabalhos de jornalismo em quadrinhos. Gosto do tema.

Falar de política é um campo minado?

Se você é um cientista político, não. Pra mim é parte fundamental da minha vida, falo de política diariamente, no ônibus, no banco, em casa, com amigos, no facebook. Mas não sou um expert, e não me meto a tentar explanar sobre a cena política atual. Tem muita coisa que não entendo ainda da própria estrutura da política brasileira. Mas entendo que faz parte do meu processo criativo assim como conceito e técnica. Preciso de alguma forma abordar isso tudo em tudo que faço, senão sinto que faltou algo. Mas minha visão da coisa busca por abertura, e não por fechamento, acho. E vivemos nessa época das grandes conclusões, dos textões arrebatadores, todo mundo quer concluir, fechar, catalogar e ir atrás do culpado. Acho importante esse movimento contrário.

E me interessa muito esse lugar onde a arte transborda a política, ou o approach direto e didático, onde perdemos controle do discurso. Onde a verdade dos personagens e das pessoas sai, e essa verdade é maior do que nós mesmos. Procuro muito essa emoção da posição de um corpo, da cor, da intensidade de uma época ali na página, dos momentos onde não concordo com algo que está escrito ali mas consigo me emocionar e sentir que há algo importante sendo dito, algo lá do fundo da vida.

Ainda ouviremos falar muito de você?

Não sei. Quem são vocês mesmo? A minha parte posso garantir que farei, a de vocês é que me deixa em dúvida.

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