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Todo Caruso canta?

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h39 - Publicado em 1 abr 2017, 11h38

A série de entrevistas com grandes desenhistas brasileiros traz hoje Paulo Caruso, mestre da caricatura e do humor político

A Muda Brasil Trancredo Jazz Band, com o irmão Chico, Aroeira e Luis Fernando Veríssimo

Por Rafel Spaca

Você é arquiteto formado pela FAU/USP. Apesar de conceitos diferentes, as profissões de cartunista e caricaturista e de arquiteto têm em comum o desenho, o traço. Isso significa que o desenho sempre esteve no seu horizonte?

Fui levado para a arquitetura pelos comentários que diziam que quem desenha bem tem de fazer arquitetura. Na faculdade me dei conta que meu desenho era expressionista, exagerado, não tinha nada a ver com o desenho de espaços e materiais a que a arquitetura se propõe. Mas, como eu, vários outros colegas foram derivando para suas áreas de trabalho. Tínhamos possibilidades repartidas entre Projeto Arquitetônico Planejamento, Urbanismo, Comunicação Visual, Desenho Industrial . No meu caso optei pela comunicação visual, e minha tese de formatura foi sobre isso. Acabei apresentando meu TGI como uma revista de quadrinhos intitulada “TeGêY”, uma descontraída história da linguagem dos quadrinhos.

Desde pequeno tinha facilidade para desenhar?

Desde a primeira infância, a partir dos quatro, cinco anos de idade já desenhava histórias em quadrinhos.

Primeiros desenhos

Como você construiu seu repertório de referências culturais numa época sem internet?

Jornais, revistas de HQ, a TV e o Cinema eram fontes de inspiração e curiosidade. Entrando na faculdade, no final dos anos 60, logo apareceram O Pasquim e outros jornais da chamada imprensa alternativa que foram seduzindo minha geração.

Você é cartunista e caricaturista, trabalhou em todos os grandes jornais e revistas do país. Para ter êxito nesta área, mais do que saber desenhar, é preciso saber interpretar o que está acontecendo no mundo?

Na verdade minha postura como desenhista ilustrador sempre buscou o casamento ideal entre palavra e imagem, uma das garantias de comunicação de qualidade…

O que é mais importante, a técnica ou a sensibilidade?

Esse encontro entre as duas áreas da expressão são fundamentais. Os melhores exemplos, tanto em artistas quanto nas publicações, é diretamente proporcional a esse equilíbrio…

Gostaria que falasse do seu trabalho na revista Isto É. Você trabalhou lá durante 25 anos, onde manteve a coluna Avenida Brasil na ultima página da revista. Com a vida política em constante movimento, como fazia para selecionar o que de mais relevante aconteceu naquela semana?

Comecei com minha página Bar Brasil na revista A Careta, editada por Tarso de Castro, um dos fundadores do Pasquim e meu patrono na imprensa paulista: primeiro na Folha de S.Paulo, depois nessa revista editada pela Editora 3. Depois migramos para a Isto É. A reunião de pauta da Careta acontecia em um bar ao lado da editora, e foi onde propus uma seção fixa, como a página do O Amigo da Onça em O Cruzeiro.

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Com Alex Solnik como roteirista criamos o Bar Brasil, um retrato do estado brasileiro que parecia na mão de um dono de botequim, o General Figueiredo, que bradava que prendia e arrebentava quem fosse contra a abertura por ele patrocinada. Depois de encerrada A Careta migramos para a Revista Senhor e logo Isto É Senhor. Após a distensão política e a abertura propus então a mudança para Avenida Brasil, com outros espaços representantes desse momento, a Igreja, a Panificadora Centrão, a Banca de Jornal, entre outros…. Participava das reuniões de pauta e movia os assuntos da política e comportamento para o espaço dos meus desenhos

Na coluna Avenida Brasil você fazia um retrato bem humorado da nossa política e do nosso processo de redemocratização. Chegou, em algum momento, a incomodar a censura, especialmente a famigerada Dra. Solange Teixeira Hernandes, diretora do Departamento de Censura a Diversões Públicas entre 1980 e 1984?

Nunca houve uma manifestação formal dessa nossa senhora…

Você tinha liberdade editorial para se manifestar?

A última palavra é sempre a do editor da revista, a não ser que seja você o editor! Houve algumas interferências mas sempre impus minha concepção, uma vez que, sabendo qual o veículo que eu estava publicando, tentava não entrar em conflito com a linha editorial. Cheguei a ser censurado em alguns jornais e negociei a publicação antes de, em último caso, ser obrigado a deixar a publicação. Depois incorporei a frase de meu irmão, “aos inimigos não se pede nada, nem demissão!”.

Para um trabalho semanal, como a coluna Avenida Brasil, a chance de fazer uma obra-prima ou cometer um erro tremendo é igual. Conte então qual foi, neste período, sua melhor charge e a que se arrependeu de fazer.

Minhas charges, hoje que não tenho onde publicá-las, me parecem proféticas. Uma charge que me arrependi amargamente de publicar, foi, quando, no meu começo de carreira, divido entre o desenho e minha banda de música, atendi à sugestão do editor Cláudio Marques que me pediu pra desenhar um urso com o chapéu russo atrás de uma câmera da TV Cultura. Era a campanha que ele movia — e na câmara dos deputados o Zé Maria Marin — contra o Wladimir Herzog, como um comunista à frente da TV estatal…

Você, além de artista, é um agitador cultural. Organizou para o Memorial da América Latina em São Paulo o 1º Encontro Brasil x Argentina de Humor, que contou com a participação dos mais influentes artistas do gênero entre os dois países, expôs no MASP, onde conquistou junto com seu irmão Chico, o prêmio de melhor desenhista no ano de 1991, pela Associação Paulista de Críticos da Arte e, em 2015, monta uma grande exposição de desenhos sobre São Paulo e os Paulistanos Ilustres Ilustrados que são nomes de ruas, praças e logradouros da cidade. Esse trabalho de produtor e curador de exposições te fascina? Por que?

Mais do que isso, me ajuda a celebrar essa arte e estes artistas, promovendo encontro que propiciam os debates sobre estas questões das quais falamos…

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Normalmente o artista prefere desempenhar seu oficio sem lidar com a burocracia, mas o produtor precisa lidar com isso. Consegue conversar com burocratas para viabilizar seus projetos? Como resolve isso na sua cabeça?

Me recordo quando, no evento do Memorial, propus ir ao encontro dos artistas argentinos, e a secretária me garantia que isso não era necessário, pois eles enviariam “vouchers” pelo correio. Briguei pra fazer esse contato pessoalmente, trouxe os originais na minha bagagem para exposição, além de fazer contato entre artistas rivais que sem minha presença não teriam vindo ao evento…

Como foi a experiência de trabalhar para o jornal O Estado de S. Paulo durante a Copa de 94, nos Estados Unidos?

Charge de O Estado de S. Paulo

Está tudo narrado no livro Copa de 94Desenhando Longe, que eu pensava em editar como primeiro de uma longa série, mas só rendeu esse exemplar até agora. Como eu iria sozinho, para depois encontrar Mario Prata e Mathews Shirt, meus colegas de redação, comecei anotando tudo que era telefone e endereço de sucursal onde eu teria que me encontrar. A partir de um certo momento, quando notei a alegria de um colega de vôo, um senhor judeu apaixonado por viagens, meu caderno de endereços e anotações virou meu diário de bordo.

A seleção brasileira, nesta copa, tinha um futebol carrancudo e sua verve é o humor. Como conciliar isso?

Eu ia a campo com meu bloquinho de desenhos, anotava escrevia e desenhava o tempo inteiro, chegaram a me inspecionar pra saber se eu não era espião de outro time…

Você também é músico e compositor. Em 1998 lançou seu primeiro CD — “Pra seu Governo” — com o Conjunto Nacional, junto com seu irmão Chico Caruso, Luis Fernando Veríssimo e Aroeira. Como surgiu a ideia de reunir esse time e realizar este trabalho?

Em 1985 o Salão de Humor de Piracicaba, sob a presidência de Miguel Paiva, convidou aos cartunistas que faziam música para uma apresentação. Lá fomos eu e meu irmão Chico, nos encontrarmos com Reinaldo (hoje do Casseta e Planeta), um ótimo baixista, Cláudio Paiva, um péssimo baterista, mais o sax alto de Luis Fernando Veríssimo, Mariano era clarinetista e o próprio Miguel Paiva que atacava junto com Zé Rodrix. No caminho pra lá, contemplando aquela imensidão de canaviais intuí, tive um “insight”! Essa banda já tem nome! O lema do Tancredo no Colégio Eleitoral da primeira eleição indireta no Brasil era “Muda Brasil, Tancredo já!, daí nasceu a “Muda Brasil, Tancredo Jazz Band”

Hoje não muito, mas nessa época ainda tinha aquela ideia que o artista tem que ser especialista em sua área e ficar preso nela. Sofreu preconceito por transitar também na música?

Não, pelo contrário era bem visto até pelos músicos que ficavam contentes com minha adesão a eles…

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Depois desse primeiro trabalho, veio seu segundo CD com O Conjunto Nacional, uma divertida sátira musical sobre o mar de lama intitulada E La Nave Va pela Som Livre. Vocês já começaram a sonhar alto com essa ideia de música? Levou a sério mesmo?

Bem, quando eu tinha 15 anos sonhava ser um Beatle, depois não parei mais, acabei virando eu mesmo, com a resignação de que não sou nenhum Paul McCartney…

E la Nave Va

O que te incomoda mais: que te chamarem de Chico Caruso ou confundir seu trabalho (uma charge, caricatura) com os trabalhos dele?

Acho divertido, bolei um número que fazemos juntos falando ao mesmo tempo e explicando nossas diferenças que não existem, estão todas dentro das semelhanças. Em 11/11/2011 fundamos com outros pares de gêmeos o Sindicato dos Gêmeos, que você pode acessar pelo site www.sindicatodosgemeos.com

Gostaria que falasse dos seus trabalhos que estão no Museu da Sátira e Caricatura da Basiléia, na Suíça. Você é um dos poucos artistas brasileiros que possuem trabalho lá, não é?

Não sou o único, nos anos 70, se não me engano, veio uma comissão sueca entrar em contato com nossos artistas e marcavam reuniões no hotel onde se hospedavam e compravam desenhos originais em dólares!

Este é um dos trabalhos que está exposto lá, o pintor recortando o céu entre os edifícios.

Como foi publicar suas charges e caricaturas em O Pasquim 21, onde teve oportunidade de experimentar as dimensões ”standard” de um jornal a cores?

Uma maravilhosa experiência, pois foi onde publiquei os maiores desenhos da minha vida, pôsteres, em páginas dupla, de jornal standard a cores! Isso nunca havia acontecido. E foi mais uma conquista do meu outro ídolo, o Ziraldo, que também comecei imitando até virar eu mesmo…

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Você sempre trabalhou com comentários bem humorados sobre a política. Como analisa esse patrulhamento, nos dias de hoje, tanto de um lado quanto do outro, em relação à política? Era assim antes ou ficou pior com o tempo?

Um retrato da divisão nacional após a ascensão de um metalúrgico e uma mulher na Presidência da República. Setores conservadores e a direita radical vão ocupando seu espaço e isso se reflete nos lares brasileiros. Eu votei na Dilma, mas meu irmão gêmeo votou no Aécio, pois nós, apesar de gêmeos univitelinos, praticamos o livre arbítrio. Tem gente que não perdoa…

E essa onda do politicamente correto? Hoje você tem que pensar duas vezes antes de fazer qualquer desenho, pensando se pode atingir determinado grupo, credo, raça ou pensamento ideológico?

Seu primo Spacca tem uma tira maravilhosa sobre isso, se não me engano sobre um filme que vai tendo que mudar o roteiro para adaptar-se ao “politicamente correto”. É um preço alto para o humor pagar…

“Se Meu Rolls Royce Falasse” e “Enfim Um País Sério!” (ambos lançados pela Devir Editora), já podem ser considerados clássicos da literatura política no Brasil. Como surgiu a ideia de lançar estes dois livros?

Foram os dois livros finais da coletânea dos desenhos publicados em Isto É e na revista Domingo no Jornal do Brasil, retratando a passagem de Lula na política brasileira. Ele, que no primeiro número do Bar Brasil era um carroceiro em terceiro plano na paisagem, depois vira dono do boteco. Antes dele, logo depois da segunda coletânea do Bar Brasil na Nova Republica, vieram os outros livros sobre Tancredo e Collor (A Sucessão Está nas Ruas, O Bonde da História e Assim Caminha a Modernidade, depois Itamar (Se Me Fusca Falasse), FHC (O Conjunto Nacional e O Circo do Poder) pra encerrar com esses dois livros, o primeiro uma referência ao episódio. No dia da posse, da falha do Rolls Royce Presidencial, o segundo na avaliação do país pelo FMI como país bom para se investir…

As pessoas se interessam por política?

Mesmo que não se interessem, a política se interessa por elas.

Por que o período do Lula na presidência te fascinou?

Na comparação com Serra ele se projetou como mais definido politicamente na direção dos que vinham mais de baixo da escala social. Como registro desse momento, tenho um livro que acompanha essa corrida disputada entre eles, No Galope Do Ibope, como uma corrida de cavalos no jockey. Lancei com exposição no Jockey de São Paulo e no Jockey Club do Rio de Janeiro Foi quando fiquei sabendo que havia sido demitido da Folha, pois eles tinham outro instituto de pesquisa, o Datafolha…

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A Lava-Jato é um prato cheio para seu trabalho com charges políticas?

Cheio, mas ainda não sei do que… Esse racha no judiciário também mereceu um desenho meu da estátua da Liberdade sendo partida por um togado fortudo.

O que está acontecendo com o Brasil?

Estávamos à beira do abismo e demos um passo adiante. Antigamente era pior, depois piorou!

Fale do programa A Cara do Jazz, que você apresenta na Rádio Eldorado.

Foi uma experiência pra mim que, como músico, achava que conhecia muito de jazz, mas percebi que nos primeiros meses havia esgotado meu reprtório, então tive que me dedicar a aprender. Uma experiência que durou quatro anos mas a Eldorado resolveu tirar do ar, agora estou cogitando migrar para a internet…

Você está desde 1986 na TV Cultura, criando desenhos ao vivo, no programa Roda Viva. São décadas trabalhando no mais importante programa de entrevistas da tevê aberta. Pode contar algumas curiosidades a respeito da sua participação no programa?

Várias histórias interessantes, uma parte só quem está nos bastidores presencia, outras vão ao ar e marcam muito a qualidade do programa, como a entrevista com Millôr Fernandes, tomando um uisquezinho pra relaxar. Numa delas por exemplo em que houve quase um confronto corporal entre Quércia e o jornalista Rui Xavier; outra a da desfaçatez de Leonel Brizola quando é questionado pelo jornalista Lenildo Tabosa Pessoa do Estadão, sobre Fidel Castro apelidá-lo como “El Ratón”. Brizola riu e desfez da pergunta chamando o jornalista de rato, que ninguém ali tinha mais cara de rato do que ele. Outra quando da Roda Viva com o ator e palhaço Patch Adams, é solicitado a ser breve em função do tempo da entrevista que estava em seu final ele desdenha dessa imposição, diz que não tem nada a ver com isso, que ele veio do exterior pra ser entrevistado e vai falar o tempo que quiser…

Já aconteceu de algum convidado do programa fazer um pedido inusitado a você?

Não me ocorre nenhuma, em geral os entrevistados são simpáticos ao meu trabalho. Senti um certo desconforto quando caricaturei o Dr. Adib Jatene com “I * Malluf”( com um coraçãozinho), já que ele havia sido secretário de cultura na gestão Maluf…

Uma ilustração vai para o entrevistado, e as outras, vão parar aonde?

Uma ou duas para o entrevistado, outras para os jornalistas por mim caricaturados e a maioria fica para meu acervo documentado pela TV Cultura.

Pretende lançar um livro com as ilustrações destas décadas à frente do programa?

Houve uma edição comemorativa pelos 18 anos do programa, e espero que saiam outras já que estamos chegando aos 40 anos de existência. Além disso gostaria de fazer uma edição com meus comentários e eventualmente imagens dos desenhos sendo realizados ao vivo, coisa que raramente os editores mostram durante o programa, só quando concluído é que o desenho vai ao ar.

Recentemente o cantor e compositor Chico Buarque decidiu retirar sua música da abertura do programa, e pelas redes-sociais há uma crítica imensa taxando o programa de ser governista. Esse, na sua ótica, é o momento mais difícil do programa?

Sem dúvida é uma questão delicada, a canção do Chico mais do que marca do programa era um registro de uma época em que a liberdade de expressão estava tolhida, então era uma bandeira sentimental importante para caracterizar a liberdade de expressão que o Roda Viva representa.

O que ainda falta fazer?

Mais bons programas…

Qual é a receita para vencer na carreira de cartunista e caricaturista?

E eu sei lá? Acho que se você ama o que faz, acaba impregnando o ambiente desse amor, então é por aí. No desenho do pintor no balancim pintando o céu coloquei um sub título:

“De Cada Profissão Uma Arte,

O Encanto Em Toda Parte!

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