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Um testemunho do Ato da Virada

Por Bravo
Atualizado em 21 set 2022, 22h24 - Publicado em 25 out 2018, 13h25
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Artistas se juntam à campanha de Haddad nos Arcos da Lapa; fala dura de Mano Brown marca a noite

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Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação

Por Claudio Leal

“Vamos virar”, disse o ator Paulo Betti, de punho cerrado. “Ou vira, ou vai embora. Mas eu não quero ir embora de novo, não”, respondeu a atriz Marieta Severo, no palanque do Ato da Virada do presidenciável Fernando Haddad (PT), nos Arcos da Lapa, terça-feira (23), no Rio de Janeiro.

Em 1969, então casados e perseguidos pela ditadura militar, Marieta e Chico Buarque partiram para o exílio em Roma. A atriz, hoje casada com Aderbal Freire Filho, se referia ao discurso do candidato de extrema direita Jair Bolsonaro (PSL) transmitido por telefone a um telão na Avenida Paulista, no domingo (21).

Em tom violento, o ex-capitão ameaçou seus adversários “vermelhos” com o exílio ou a prisão: “Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia”. Na Lapa, uma parte dos artistas cogitava a possibilidade de exílio ou autoexílio, em caso de vitória do ultradireitista.

Com pulseiras vermelhas, ocupavam as cadeiras atores como Osmar Prado, Tonico Pereira, Antonio Pitanga, Débora Bloch, Jonas Bloch, Humberto Carrão, Zezé Polessa e Luís Miranda, o músico Wagner Tiso, os cantores Renato Braz e Teresa Cristina, o ex-chanceler Celso Amorim, o teólogo Leonardo Boff e a escritora Conceição Evaristo, além do diretor Luiz Fernando Lobo, o mestre de cerimônia no palanque.

Presença silenciosa, a atriz e ex-deputada federal Bete Mendes era ali a testemunha dos crimes de um militar que seria repudiado em três discursos da noite. Em agosto de 1985, na comitiva presidencial de José Sarney ao Uruguai, Bete reconheceu seu torturador no Doi-Codi, em 1970: o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932–2015), à época adido militar da embaixada brasileira em Montevidéu.

Em 2016, Ustra ganhou homenagem do deputado Bolsonaro no voto favorável ao impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT). Ex-chefe do Doi-Codi de São Paulo, num período em que foram apontados mais de 500 casos de tortura, o coronel teve sua obra “A Verdade Sufocada” citada como livro de cabeceira — não se sabe se o único — do candidato do PSL.

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“Bolsonaro já era pra ter sido punido pela justiça no momento em que dedicou o voto do impeachment a um torturador. Não podia sequer ser candidato”, comentou o diretor teatral Aderbal Freire Filho, pouco antes do início do comício.

Às 20h48, gritos na lateral do palco. O locutor anunciou a chegada de Mano Brown, Chico Buarque e Caetano Veloso, o trio central da noite de Haddad e sua vice, Manuela D’Ávila (PCdoB).

Sorrindo, Chico ergueu em triunfo a placa da ex-vereadora carioca do PSOL Marielle Franco, assassinada em março deste ano ao lado de seu motorista, Anderson Gomes. De costas viradas para a multidão, o compositor ficou de frente para os fotógrafos, numa inversão moral da imagem da placa de Marielle destruída e escarnecida pelos deputados eleitos Daniel Silveira e Rodrigo Amorim (PSL) em Petrópolis, na região serrana do Rio.

“Boff!”, gritou e aplaudiu Chico, avistando o teólogo ao fundo. Entre cochichos, Caetano o chamou para a beira do palanque, de onde o baiano anunciou a entrada de Haddad, Manuela e Guilherme Boulos, o candidato derrotado do PSOL. Havia dezenas de espectadores em cima do aqueduto.

Acompanhado de Ana Estela, sua mulher, Haddad cumprimentou todos os artistas e ouviu pedidos de “vamos virar”. O petista repetiria o mantra: “Vamos virar, vamos virar…”. Um adesivo de “Lula Livre” estava colado em seu braço esquerdo. De longe, acenou para o cantor paulistano Renato Braz e cruzou o tumulto de ombros para apertar a mão do amigo.

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Outra vez sentada, Zezé Polessa cruzava os dedos. A jurista e professora Carol Proner vez quando sussurrava no ouvido de Chico Buarque, seu namorado. Enquanto os oradores pediam por democracia no país, a filha de Manuela sorria e rodopiava atrás da cadeira da mãe.

O pastor Henrique Vieira fez o primeiro discurso a empolgar os milhares de militantes: “Jesus foi preso, torturado e assassinado por um Estado violento. Por Jesus, aquele que ainda assim não usou o ódio como resposta, mas viveu e morreu por amor, a igreja tem que ser autônoma diante do Estado e do partido. Mas ela não pode ser neutra diante da opressão e da violência. A igreja precisa estar do lado dos oprimidos e dos pobres deste país. Esse é o lugar de Cristo na história. Jesus foi vítima de tortura. Então não podemos apoiar quem homenageia torturadores!”.

O rosto de Haddad formava uma máscara imperturbável, animada por olhos vivazes e amenos sorrisos. De sua cadeira, destacavam-se na multidão de 70 mil pessoas os cartazes “A bancada evangélica não nos representa”, “O amor vencerá o ódio”, “As avós vencerão o ódio” e “Para competir com robôs acesse o coração”. Tremulavam bandeiras vermelhas do MST e do PT, as amarelas do PSOL e mais uma, gigante, com motivos em verde e amarelo.

Até 21h16, Haddad bebera dois copos de água mineral, depositados embaixo de sua cadeira. No chão, uma poça crescia até a bolsa de Manuela.

“Vim aqui para demonstrar que nem todo humorista é de direita”, iniciou Gregório Duvivier, abafado em seguida pelo grito de “Fora, Gentili! Fora, Gentili!”.

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De um lado a outro, Haddad perguntou a Manuela e Ana Estela:

– Quem é esse?

– Danilo Gentili — informou a vice.

– Ah.

O rapper Mano Brown, líder dos Racionais MC’s, encontrou uma plateia entusiástica ao assumir o microfone. Até aquele momento, ele se mantivera atento, mas pétreo, ao lado de Caetano.

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“Boa noite. Vim aqui representar a mim mesmo, certo? Eu não gosto do clima de festa”, avisou Brown. Como se levasse um eletrochoque, a Lapa silenciou — e o rapper avançou: “Não gosto. A cegueira que atinge lá, atinge nós também. Isso é perigoso. Não tá tendo motivo pra comemorar. Tem, sei lá, quase 30 milhões de votos pra alcançar aí. Não temos nem expectativa nenhuma pra alcançar, pra diminuir aí essa margem. Não sou pessimista, sou realista. Eu não consigo acreditar que pessoas que me tratavam com tanto carinho, pessoas que me respeitavam, que me amavam, que me serviam café de manhã, que lavavam meu carro, que atendiam meu filho no hospital, se transformaram em monstros. Não posso acreditar nisso. Não posso acreditar. Essas pessoas não são tão más assim. Se, em algum momento, a comunicação do pessoal daqui falhou, vai pagar o preço. Porque a comunicação é a alma. Se não está conseguindo falar a língua do povo vai perder mesmo”.

Haddad e Ana Estela acompanhavam o discurso sem alterar os músculos, justamente o oposto da multidão, que, vista do palco, parecia agitada e surpresa. Caetano, concentrado. De boné, camisa preta e calça militar, Brown tinha gestos corporais expressivos: “Falar bem do PT para a torcida do PT é fácil. Tem uma multidão que não tá aqui que precisa ser conquistada ou a gente vai cair no precipício. Eu tinha jurado pra mim mesmo nunca mais subir em palanque de ninguém, entendeu? Política não rima, não tem suingue, não tem balanço, não tem nada que me interessa. Eu gosto de música. Mas… Eu estou vendo casais se separando, amigos de 35 anos deixando de se falar. Tenho amigos…”. Um coro de “Haddad sim!”, no lado esquerdo do público, motivou um apelo do rapper: “Se eu puder falar vai ser bom… Eu vou parar também, já era e foda-se”.

Um espasmo de vaias surgiu e logo arrefeceu.

“Tenho amigos que eu não tenho mais como olhar no rosto deles, por causa de política. Não vim aqui pra ganhar voto, porque eu acho que já está decidido. Agora, se falhou, vai pagar. Quem errou vai ter que pagar mesmo, certo? Não gosto do clima de festa. O que mata a gente é a cegueira e o fanatismo. Deixou de entender o povão, já era. Se nós somos o Partido dos Trabalhadores, o partido do povo tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta pra base e vai procurar saber. E as minhas ideia é essa. Fechou”, concluiu Mano Brown.

Caetano percebeu o mal-estar e, não mais que três segundos depois dessa reprimenda, assumiu o microfone e antecipou seu discurso: “Eu acho que a fala de Mano Brown é muito importante porque traz a complexidade do nosso momento. A mera festa pode parecer que temos uma mensagem simples a passar. Ele trouxe complexidade”, iniciou Caetano, aliviando a inquietação da militância de esquerda na Lapa. “O Brasil tem sido bombardeado há algumas décadas por uma imbecilização planejada em que filósofos dizem palavrão para acostumar a mente brasileira à ideia de que o cafajeste é que nos representa. E é isso o que nós precisamos poder negar dentro de nós, não só os que estamos aqui, que já lutamos contra isso, mas encontrar meios de dizer àqueles que se deixaram hipnotizar por essa onda. Eu estou aqui por isso, em parte como vocês, em parte como Mano Brown, porque me oponho à cafajestização do homem brasileiro. O que nós estamos defendendo aqui, na campanha para a eleição de Fernando Haddad e Manuela D’Ávila, é a dignidade do povo brasileiro, de cada homem brasileiro”, finalizou o compositor.

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O discurso do rapper continuava a dividir a arquibancada. O cantor Renato Braz defendeu-o num canto de conversa: “Ele trouxe uma voz da periferia, pouco ouvida mas necessária neste momento. Foi muito importante”. Com receio da vitória de Bolsonaro, Mano Brown não estava distante do sentimento geral da plateia. Em São Paulo, ele vira a onda ultradireitista em seu próprio bairro, o Capão Redondo, e nesse espírito chegaria ao “Ato da Virada”, ainda assustado com o fascínio da população mais pobre por um candidato com propostas violentas e antipopulares.

Se Caetano soou diplomático e aguerrido, ao destacar a complexidade trazida por Brown, Chico Buarque entrou decididamente como quebra-gelo: “Eu entendo perfeitamente o que Mano Brown disse aqui, tendo a concordar que é muito difícil, sim, mas prefiro crer que ainda é possível virar o jogo”, declarou Chico, de saída aplaudido.

“Eu imagino que lá fora muita gente, cidadãos conservadores, cristãos, os chamados coxinhas tenham votado no candidato fascista e agora estejam vendo a onda de boçalidade que toma conta das ruas, cada vez mais. E que depois do primeiro turno só fez piorar e ninguém sabe onde vai parar. Onde vai parar a matança de gays, mulheres, de trans, de travestis, de estudantes, de capoeiras que ousaram dizer que votaram no PT. E que, nas periferias, onde afinal está o povo que mais sofre com a miséria e a violência, e votaram por mais violência e mais miséria, votaram contra si mesmos, eles, talvez, na última hora, virem o voto. Não queremos mais mentiras. Não queremos mais força bruta. Queremos paz. Queremos alegria. Queremos Fernando e Manuela”, encerrou o compositor.

A voz do Capão Redondo ecoaria ainda no meio do discurso de Haddad. Às 22h, depois de Boulos e Manuela, o presidenciável se dirigiu à Lapa: “Eu tenho um anúncio pra fazer a vocês: domingo, nós vamos ganhar a eleição. Está no ar. Desde ontem estou sentindo no ar uma virada…”.

O Haddad plácido do início da campanha desarrumava os cabelos: “Você não é nada, Jair Bolsonaro! Você é vazio! Você não é capaz de enfrentar um debate! Você não é capaz de enfrentar uma entrevista sem censurar jornalista livre!… Tem como ídolo… Não como vocês, que têm Mandela, que têm Gandhi, que têm Lula, que têm Marthin Luther King… O ídolo dele é um torturador! É o Ustra!”. A multidão o acompanhou com vaias ao coronel.

“Um sujeito desse deveria receber recursos da Câmara Federal prum tratamento psicológico”, recomendou Haddad. Neste ponto, Bete Mendes balançou a cabeça, aprovando as palavras.

Passado o ataque ao adversário, Haddad daria razão ao discurso do rapper. Os músicos Brown, Chico e Caetano já haviam deixado o palanque, como ficara acertado antes com a produção.

“Eu compreendo, entendo e respeito o que disse aqui o Mano Brown. Respeito muito. Primeiro porque ele veio aqui. Ter vindo aqui tem um significado muito importante. Mas o que ele disse é sério. Tem irmãos e irmãs nossos que estão na periferia revoltados, e com razão, com tudo que está acontecendo”, afirmou Haddad. “Nós precisamos dar razão às pessoas para conquistar as pessoas. O sentimento delas. Não estou falando dos coxinhas que sempre nos odiaram. Estou falando das pessoas que estão revoltadas porque estão desempregadas, que deixaram a universidade porque não têm como se manter. Porque saem de casa procurando um destino, procurando um trabalho e não encontram. Essas pessoas, nós precisamos abraçar daqui para domingo. Nós precisamos sentar para conversar. Nós precisamos dialogar. Eles não são nossos inimigos”.

No final do Ato da Virada, os candidatos lançaram rosas brancas e vermelhas para os militantes. Os seguranças enfim conduziram o petista a uma van. Uma senhora identificou o assento do candidato, atrás do vidro fumê, e bateu na janela com três rosas vermelhas: “Vamos virar, Haddad!”.

O presidenciável ressurgiu na casa da produtora Paula Lavigne, mulher de Caetano e uma das maiores mobilizadoras de artistas para o comício na Lapa. Chico Buarque e Mano Brown estavam sentados no mesmo sofá. Ar mais leve, Haddad contou o que dissera há pouco sobre o discurso de Brown. Alegre com a queda de seis pontos de sua rejeição, na pesquisa Ibope daquele 23 de outubro, ele confiava numa redução ainda maior depois da denúncia da “Folha de S.Paulo” sobre a campanha ilegal dos bolsonaristas no Whatsapp. Na capital paulista, ele começava a ultrapassar o ex-capitão. “Vamos virar”, repetia o petista, cheio da adrenalina do mais importante comício de sua campanha.

Aproximando-se da roda de músicos, Haddad pegou um violão e se escalou para acompanhar o “Samba do Vira-Voto”:

Cada vira-voto é coragem, resistência e esperança…Vira vira voto, vira, vira, vira, vira vira voto, vira vira vira…”.

Chico acompanhava com os lábios:

Vira vira voto, vira, vira, vira, vira vira voto, vira vira vira…”

À meia-noite, o compositor se juntou a Haddad, Ana Estela, Mart’nália, Mosquito, Caetano, Paula e Teresa Cristina no coro daquele outro samba:

Apesar de você/ Amanhã há de ser outro dia…”.

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