Continua após publicidade

“Uma das maldições do Brasil é a manutenção de privilégios”

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h25 - Publicado em 2 out 2017, 12h23

Em entrevista à Bravo! durante uma greve geral, João Moreira Salles fala sobre seu novo filme “No Intenso Agora”, sobre os ecos de 1968, política brasileira atual, sua obra como documentarista e seus próprios privilégios

Cena de “No Intenso Agora”. Fotos: divulgação

Por Ricardo Calil

Se um homem é um homem e suas circunstâncias, como escreveu o filósofo espanhol Ortega y Gasset, então a entrevista com um homem também precisa levar as circunstâncias em consideração. As desta entrevista com o cineasta João Moreira Salles — diretor de Notícias de uma Guerra Particular, Entreatos e Santiago — estão relacionadas à data em que foi realizada: 28 de abril de 2017. Foi o dia seguinte à primeira exibição no Brasil do aguardado No Intenso Agora, no festival É Tudo Verdade, em São Paulo.

O documentário é um filme-ensaio narrado por Salles com imagens de arquivo que captam a ebulição política dos anos 60 em quatro países: o Maio de 68 na França, a Primavera de Praga na Tchecoslováquia, os protestos contra morte do estudante Edson Luis no Brasil e a Revolução Cultural da China de Mao Tsé-Tung. As imagens desta última foram feitas pela mãe de Salles, Elisa Gonçalves, durante uma viagem de turismo ao país asiático, em 1966. O documentarista reúne personagens de origens muito distintas para refletir sobre a dificuldade de recuperar a felicidade de um momento vivido intensamente (a mãe de Salles, como o filme nos informa com discrição, tirou a própria vida anos mais tarde).

No dia da entrevista, em um hotel nas proximidades da Av. Paulista, em São Paulo, a Folha de S. Paulo publicou uma crítica bastante negativa sobre o filme (em geral muito elogiado pela imprensa internacional e premiado no prestigiado festival francês Cinéma du Réel). “A necessidade de repassar a vida pessoal, em princípio, não é um problema. Mas atrapalha, por exemplo, quando força a barra para atenuar uma má consciência burguesa”, escreveu o crítico da Folha. Ele referia-se, não-explicitamente, à condição de privilégio econômico do cineasta (seu pai, o diplomata Walther Moreira Salles, foi o fundador de um dos maiores bancos do Brasil e deixou aos filhos uma das maiores fortunas do país).

Ainda naquele dia, parte do Brasil parou em uma greve geral convocada por centrais sindicais para protestar contra as reformas da Previdência e trabalhista apresentadas pelo governo Temer. Ao andar pela Paulista tomada pela multidão a caminho da entrevista, foi inevitável pensar que este jornalista iria furar uma greve geral entrevistando um cineasta que havia feito um filme sobre a greve geral do Maio de 68 na França.

A conversa com Salles, portanto, foi alimentada pelas circunstâncias individuais e coletivas daquele dia — que continuam válidas e seguem reverberando no Brasil de hoje. A elas retornamos por motivo oportuno: No Intenso Agora estreia em circuito comercial no dia 9 de novembro e poderá, enfim, ser visto e discutido por um público mais amplo. Enquanto o filme não chega, sua página no Facebook exibirá entrevistas, feitas pelo jornalista Bruno Torturra Nogueira, que estabelecem pontes entre o Maio de 68 na França e o Junho de 2013 no Brasil — aqueles meses que nunca terminaram.

Continua após a publicidade

Os primeiros rumores sobre No Intenso Agora davam conta de que este seria um documentário sobre sua mãe. Mas o que se vê na tela é, antes, um filme em torno dela. O filme era, originalmente, uma biografia de sua mãe e se tornou outra coisa ao longo do processo?

O filme jamais foi um filme sobre minha mãe como Santiago é um filme sobre Santiago. Eu tinha dela apenas as imagens da China e nunca imaginei que usaria mais do que isso. Mas o filme nasce de uma questão biográfica, minha e da minha mãe: a incapacidade de se recuperar uma alegria que já se teve, o medo de que as coisas percam o sentido. Não diria que é a minha questão, mas eu estou sempre nas imediações dela. Quando eu descobri as imagens da China e, em seguida, o relato que a minha mãe escreve sobre a viagem, isso se manifestou com muita clareza. Naquele momento, ela estava plenamente ancorada na vida. Pude chegar a Maio de 68 por causa dessa questão. Há uma conexão histórica que não é essencial, mas ela existe. O 68 tem uma presença grande de grupos maoístas, o [filósofo Jean-Paul] Sartre foi maoísta, o [Louis] Althusser foi maoísta. Mas, além disso, nós morávamos em Paris em 68. A gente saiu do Brasil em 64 por causa do golpe, porque meu pai tinha sido ministro do Jango e achou que isso podia ter algum tipo de reverberação. Eu comecei a ler as memórias das pessoas que viveram 68 e, em todas elas, sem exceção, aparece em algum momento essa pergunta, formulada de maneiras diferentes: como sobreviver ao fim daquele momento? Essa é a mesma questão que eu vejo em relação a minha mãe: como sobreviver ao fim de uma alegria que você não consegue mais recuperar. Você teve a totalidade, que se desfez, que se desfaz como em todas as paixões, e você não tem a capacidade de reencontrar sentido na vida, que é cotidiana, que é banal. Foi isso que me permitiu chegar a 68.

Você reúne no filme personagens e experiências muito distintos: [o líder estudantil franco-alemão] Daniel Cohn-Bendit, [a cantora de protesto tcheca] Marta Kubisová, Edson Luís [secundarista brasileiro assassinado por policiais] e, entre muitos outros, sua mãe — que, na visita à China de Mao em 66, era uma turista burguesa. No documentário, você conta que sua família deixou Paris em 68 assustada com os acontecimentos de Maio. O fato de os personagens do filme terem vivido intensamente aquele agora e depois não terem recuperado aquela alegria é um ponto em comum forte o suficiente para atenuar diferenças de origem e reunir assustadores e assustados em um mesmo filme?

Sim. A resposta breve é sim. O que me interessava era aproximar momentos de intensidade, sejam lá quais fossem, e discutir especificamente a natureza dessas paixões — sejam políticas, estéticas, amorosas. O filme não propõe que aquilo que motiva a intensidade da minha mãe seja o mesmo mecanismo dos meninos que estão na rua com a sensação de fazer a História, de desfazer uma sociedade rígida, burocratizada, inflexível. São coisas muito diferentes, mas o sentimento de potência é o mesmo. E, portanto, a ressaca que se segue a isso será também semelhante, por razões diferentes. A meu ver, eles podem ser reunidos. Essa é aposta do filme. É uma aposta ousada, que funciona para determinadas pessoas e não funciona para outras. A liga entre esses dois mundos é onde o filme existe ou deixa de existir. É o risco do filme. Porque, evidentemente, minha mãe nada tem a ver com Maio de 68 e com a Revolução Cultural na China. O que eu acho comovente no movimento da minha mãe é, primeiro, vê-la feliz, que é uma coisa que vi muito pouco. Mas é sobretudo a capacidade que ela teve de — sendo conservadora, profundamente católica e de circular por meios aristocráticos — chegar diante do seu contrário absoluto e conseguir enxergar o que havia de belo no outro que se opõe a ela. Isso é algo que genuinamente me comove. E que, em Maio de 68, acontece também, quando estudantes e operários marcham juntos — o que ocorre uma única vez, no dia 13. Depois, os grupelhos, como eles se chamavam, começaram a se estreitar e ficar nos seus guetos — um fenômeno que a gente conhece até hoje e que está muito vivo no Brasil neste momento, uma incapacidade de empatia em relação à diferença, de ver no outro alguma coisa em comum, uma possibilidade de se encontrar. Acho tem isso tem no Cohn-Bendit, acho que tem isso na minha mãe. Isso me deu a impressão de que era possível encontrar uma liga.

Você é conhecido como uma pessoa reservada, mas seus últimos dois filmes [Santiago, No Intenso Agora] abrem portas da sua privacidade, eles permitem que eu e outros cheguemos até você com perguntas íntimas. Você certamente sabia desse risco. Por que, ainda assim, decidiu fazê-los?

“Santiago”

Porque é disso que eu posso falar, é disso que eu me sinto autorizado a falar. A questão da perda da capacidade de ser feliz é uma inquietação minha, preciso de alguma maneira dar uma forma a isso e aí eu chego a Maio de 68. Que autoridade eu tenho pra falar de 68? Eu não sou historiador, não vivi 68. A única coisa que me leva a achar que posso fazer é trazer 68 pra perto de mim, da minha experiência. E, se isso me abre para esse tipo de mirada que você cita, que seja. É a mesma questão que enfrentei em Santiago: entre não fazer o filme e fazer o filme que é o único que posso fazer — aquele em que apareço como protagonista, mesmo atrás da câmera –, eu prefiro fazer. Porque estou lidando com perguntas que, para mim, são importantes de serem enfrentadas. Esse é um ponto. O outro é que, durante muito tempo, eu falei criticamente sobre a equação prevalente do documentário brasileiro: quem tem filma quem não tem. Diretores de classe média, bem-intencionados, vão à favela, vão ao nordeste filmar a fome, a doença. Não vou me estender nisso, mas você sabe que é problemático, que é outra forma de expressão do privilégio brasileiro, você achar que pode ir à favela e filmar a vida do outro. Imagina o contrário: vem alguém de Heliópolis para seu apartamento em Higienópolis e passa três meses filmando para saber como vive uma família de classe média-alta. Não vai rolar. Então, em algum momento, eu cheguei à conclusão de que, se eu faço essa crítica, eu preciso agir e não apenas falar. Essa ação se expressa da seguinte maneira: vou falar do meu mundo, vou abrir uma janela para o que jamais é visto no cinema brasileiro…

O universo do privilégio.

Isso. Eu não posso negar minha biografia, de onde eu venho. Portanto, me parece politicamente importante — como intervenção no debate sobre o documentário brasileiro — fazer filmes sobre as classes dominantes. E meu modo de fazer isso foi realizar filmes em que eu estou no centro da questão. Eu me lembro de ter feito esse raciocínio com muita clareza durante o Santiago. Mais do que o No Intenso Agora, Santiago abre a porta para minha casa, para o fato de que eu tinha um mordomo, para a relação de classe com ele, para questões que me são muito incômodas. Para além do afeto, que existe também, há dominação na forma como eu filmei o Santiago. O filme que eu tentei fazer em 1992 era um filme mentiroso, que reproduzia essa questão do privilégio: vou lá filmar, fazer dele o que eu quero, eliminar todas as circunstâncias dessa filmagem, e o filme que o espectador verá é o Santiago manipulado sem que a manipulação apareça. A manipulação é uma expressão da maneira como a sociedade brasileira se organiza. Na hora que eu decido fazer o Santiago do jeito que eu fiz, existe uma decisão incômoda, mas sincera, de dizer: se eu acho que o documentário brasileiro padece desse mal de origem, eu tenho que mostrar o que poderia ser um outro caminho. E o outro caminho é Santiago. O No Intenso Agora segue pela mesma veia aberta por Santiago, de uma maneira mais amena. Mas está lá também.

Continua após a publicidade
“No Intenso Agora”

Na Folha de S. Paulo de hoje, há uma crítica do filme que a atribui suas escolhas no filme a uma “má consciência burguesa”. Você se incomoda com esse tipo de crítica que leva em conta sua origem social na análise dos seus filmes? Ou fez Santiago e No Intenso Agora justamente para encará-las de frente?

Esses dois filmes não negam essa questão. Nesse sentido, são filmes mais intransferíveis do que os outros. Entreatos, Notícias de uma Guerra Particular e Nelson Freire poderiam ter sido feitos por outras pessoas, nascidas em outras circunstâncias. Santiago e No Intenso Agora, não. Eu acho que me aproximar de filmes intransferíveis é uma boa coisa, porque aí há uma revelação de um mundo pouco visto no cinema brasileiro. Um mundo que, ao se revelar, pode ser criticado como foi pela Folha e por outros lugares também, com esse discurso de que a classe dominante, quando fala de si, fala porque tem má consciência, que é uma purgação de culpa e que os filmes são uma maneira de se defender. Eu acho que é absolutamente do jogo, justo, que se ache isso. Estou absolutamente consciente e pacificado em relação ao fato de que sou eu e minhas circunstâncias, como diria [o filósofo espanhol] Ortega y Gasset. Agora, se eu for visto apenas como isso, talvez eu tenha fracassado… Não, essa palavra soa forte demais. Talvez eu não tenha conseguido construir uma obra com uma certa autonomia em relação ao que sou. E talvez por isso eu tenha decidido, tanto no Santiago quanto No Intenso Agora, iniciar a trajetória dos filmes fora do Brasil para depois chegar aqui. Porque fora do Brasil as pessoas não sabem quem eu sou, não sabem das minhas circunstâncias. E o filme é percebido pelo que ele é. É uma maneira talvez mais precisa de aferir o que é esse filme, como um objeto autônomo. As reações na França, na Alemanha, na Argentina não levam em conta esse dado que aqui pode ser tomado como o ingrediente central da receita — como o cominho, cujo gosto toma conta de tudo. Não tem como tirar isso do prato que eu apresento no Brasil. As pessoas vieram falar comigo sobre a crítica da Folha: é uma critica muito pessoal. Mas acho que tenho que estar aberto a isso. Num país com a desigualdade social do Brasil, eu não posso exigir que isso não seja uma questão. É uma questão e é legitimo que seja. E vamos em frente. Eu posso ter uma conversa sobre isso, não gostaria de ser alijado da conversa, mas que isso seja parte da conversa é completamente legitimo.

“No Intenso Agora”

Na minha visão, seu olhar sobre a luta política de Maio de 68 é de desencanto. No passado, você já se encantou pelos ideais que foram propostos em 68?

Sim, já me encantei. Eu olho pro Cohn-Bendit, que pra mim é o personagem principal daquela história, e tenho a impressão de que a sociedade que ele e pessoas como ele teriam construído seria uma sociedade onde eu poderia morar e ser feliz. Mas o Cohn-Bendit, no aniversário de 20 anos do movimento, disse algo que nunca o perdoaram por ter dito: “Vencemos na esfera da cultura e, graças a Deus, perdemos na esfera da política”. Porque ele julga, politicamente, que a sociedade que nasceria da revolução se encaminharia aos modelos prevalentes e já conhecidos da época: Cuba, Leste Europeu e outras sociedades burocratizadas e autoritárias. Portanto, ele celebra a derrota politica da geração de 68, porque ela levaria a modelos que eram o oposto daquilo que se desejava naquela euforia libertária. O desencanto que você menciona tem dupla face. Primeiro, o desencanto daquilo não ter dado certo, daquilo não ter se constituído como uma possibilidade real de organização da sociedade, anárquica, libertária, igualitária. Segundo, porque a luta política levaria quase necessariamente a uma sociedade que seria o oposto do que se propunha na rua. Então é uma tristeza dupla. Eu acho sedutor, fascinante e algo que ainda estimula a minha imaginação aquilo que Cohn-Bendit disse para o Sartre: o essencial é a pura espontaneidade, é propor uma coisa nova, que se manifesta e que diz que pode existir. Ela acaba, ele se extingue. Mas ela deixa o sentimento de que, se pôde existir num momento em que ninguém imaginava que pudesse, ela pode eclodir em outro momento também. Como na Primavera Árabe. Era impossível imaginar que um vendedor de frutas que se coloca fogo na Tunísia vai gerar aquilo que gerou. Isso se desfaz. Hoje a Tunísia é um país autoritário.

Ou como no Brasil, em que o Junho de 2013 nos leva a algo completamente diferente do imaginado.

Sim. Mas o desfazimento dessas coisas não deve nos fazer duvidar de que na esquina seguinte não exista a possibilidade de uma nova emergência. Acho que essa é a lição do Cohn-Bendit pro Sartre naquele momento. O Sartre diz: se você não tiver um programa, vai haver uma dispersão, porque vêm as férias, vai acabar. E ele tinha razão. A beleza daquele momento é que os dois lados se contradizem e os dois lados estavam certos. De fato, Maio de 68 acabou rapidamente, em três semanas. Mas os efeitos progressistas, civilizatórios de 68 existem, e podem ser vistos nos direitos das mulheres, dos negros, dos homossexuais. No dia da projeção em Paris, o Romain Goupil [diretor de Morrer aos 30 Anos, documentário sobre Maio de 68 que tem trechos usados em No Intenso Agora] me deu um abraço comovido e me disse: “As vitórias de 68 não foram vitórias pelas quais nós lutamos na rua. O que a gente queria era derrubar o De Gaulle, acabar com uma sociedade que se organiza em torno da propriedade privada e apresentar uma alternativa. Nisso a gente fracassou. Nossa agenda não era a dos direitos das mulheres, de orientação sexual.” Tudo isso acabou sendo efeito colateral de Maio de 68 e diluiu parte da rigidez da sociedade francesa. Tenho amigo que estava em Paris em 68. Ele diz que, na segunda semana de Maio, as pessoas pararam de se tratar de “senhor”, o patrão virou “você”. Perto da Revolução Russa de 1917, parece patético. Mas, numa sociedade tão hierárquica, isso cria rachaduras. O Cohn-Bendit introduz a alegria, o prazer, o hedonismo, a criatividade dos slogans. Esse é o elemento novo de 68. E nisso acho que 2013 no Brasil é semelhante.

Você diz que já acreditou na utopia de uma sociedade igualitária. Como concilia isso com o fato de pertencer a um dos extremos da desigualdade brasileira?

É uma eterna questão. Você tem alguns caminhos. O meu foi propor essa discussão com os filmes, me colocar na arena para tomar o pau que eu tomo na Folha. Fazer o Notícias de uma Guerra Particular e começar uma conversa com quem eu não deveria estar conversando, o [traficante] Marcinho VP. Criar esses curto-circuitos, que não são parte normal da vida brasileira. A partir desses encontros improváveis — eu com o Márcio, eu fazendo um filme em que exponho meu privilégio, eu fazendo um filme como No Intenso Agora –, o assunto é lançado. E, no caso, acho que interessa menos o assunto, e mais quem lança. O fato de ser eu, eu fazendo um filme sobre 68, é diferente de outras pessoa fazendo. Esse é o sentido do que é intransferível. Na esfera do debate público, a maneira como eu tento lidar com esse problema é falando dele, se não explicitamente, mas à margem dele. Tanto assim que você me faz essa pergunta, que talvez não fizesse se fosse um filme sobre o Jorge Ben ou sobre o Nelson Freire. É uma pergunta difícil de responder.

Também é uma pergunta difícil de fazer.

Mas é uma pergunta justa, é importante que seja feita. Nunca deixou de ser uma questão pra mim e nunca vai deixar de ser. E acho que eu não dou uma resposta satisfatória a ela. Mas eu vejo que ela vem se tornando uma pergunta que está no centro do que eu tenho feito.

Continua após a publicidade

O Instituto Moreira Salles [que inaugurou nova sede paulistana em setembro], o Serrapilheira [instituto de apoio à ciência concebido por Salles] e a revista piauí [que Salles edita] também não seriam outras formas de responder a essa pergunta?

Sim, mas são mais tradicionais. Aí a gente já entra no terreno de uma palavra que eu abomino, que é filantropia. É muito mais fácil colher os louros, ser visto como generoso, mas não tem nada a ver com isso. Trazer essa discussão à tona em filmes como Santiago e No Intenso Agora é muito mais incômodo e, acho, muito mais produtivo, no sentido de me expor a questionamentos que são legítimos.

João Moreira Salles

Você disse que sua mãe era católica. E você, tem religião?

Não. Sou um pouco como [o documentarista Eduardo] Coutinho, alguém à espera de querer acreditar, sem conseguir. Às vezes eu ia à igreja naquele espírito do Pascal: se você quer acreditar, primeiro fique de joelhos. Imaginando que, ao me submeter ao ritual, isso prepararia o caminho para recuperar uma fé que talvez eu tenha tido quando era muito novo e que depois eu perdi. Essa inquietação em relação a não encontrar sentido nas coisas se torna mais aguda quando o sentido não é lhe dado de fora para dentro. É mais fácil enfrentar a dissolução da intensidade quando você tem transcendência. Como não tenho, ela precisa ser encontrada no ato de criar, fazer.

Os filmes são, então, como uma forma de buscar um sentido para a vida?

Não o filme em si, mas o processo de fazer o filme. É o trabalho, mexer no barro, junto com as pessoas que me ajudam a fazer. São os momentos em que não tenho dúvida de por que eu estou aqui… Acho que a piauí também, mas hoje em dia eu estou mais afastado do processo do que já estive. Criei a piauí muito em função disso. Tem muito pouco a ver com generosidade, embora eu ache que ela é uma contribuição boa para o ecossistema do jornalismo brasileiro. Acho que ela nasce por uma inquietação particular: o cinema tem barrigas de tempo imensas, e eu queria ter uma razão evidente para sair de casa, ir a um lugar e ser obrigado a produzir, porque todo mês a revista tem que estar na banca. O trabalho também é uma máquina de produzir sentido. Acho que não tem salvação fora do trabalho.

Soube que você nutre um sentimento religioso pelo futebol e, mais especificamente, pelo Botafogo. O que explica uma pessoa tão racional ter uma relação tão irracional com um time de futebol?

Eu também me pergunto: por que diabos? Sofre-se muito, gasta-se muito tempo. E é inteiramente intuitivo, irracional. Mas é tudo isso que me leva a gostar do Botafogo. Os ganhos são de outra ordem e são imensos. É um amor absolutamente gratuito. E isso é divino. Uma vitória ou uma derrota pode definir meu estado de espírito na semana que segue. Aquilo é um termômetro da minha vida emocional. Por quê? Eu não dei um chute. E, no entanto, sou em campo absolutamente solidário àquelas pessoas que eu não conheço. Um estádio de futebol é um nivelador de tudo. Há alguma coisa que se impõe sobre qualquer outra circunstância social, política, racial. A utopia de uma sociedade igualitária dura 90 minutos. Fico ao lado de um sujeito de Madureira, outro do Complexo do Alemão, e naquele momento há um sentimento de irmandade, de uma profunda serenidade de constatar que somos parte da mesma humanidade. Isso pra mim é uma experiência importante. E, num certo sentido, religiosa. Somos poucos, acho que isso é importante no caso do Botafogo. Não poderia ser flamenguista. A ideia é ser uma espécie de Exército de Brancaleone, de “underdog” [azarão].

“No Intenso Agora”

No Intenso Agora é dedicado a Eduardo Coutinho. Quanto falta ele fez como interlocutor para o filme e quanto falta ele faz pessoalmente?

Vai soar retórico e tolo, mas não é. O Coutinho foi um interlocutor constante nesse filme, mesmo depois da morte dele. No Intenso Agora não é dedicado a ele simplesmente porque eu quero prestar uma homenagem, mas porque as questões que atravessam o filme do primeiro ao último plano nasceram de conversas com o Coutinho. Questões como o uso político dos mártires, a maneira como os mortos são representados, por que as pessoas filmam, como filmam. O Coutinho olhava para Junho de 2013 e não estava interessado naquilo que a imagem mostrava. Ele estava interessado em saber por que o menino da Mídia Ninja pegou a câmera e foi filmar. Qual é o desejo dele? O Coutinho não viu nada desse filme, eu teria adorado que ele pudesse ter visto. Porque, de todos os meus filmes, é nesse que ele está mais presente. Quanto à segunda parte da pergunta, é uma falta imensa. Eu conto o Coutinho como um dos dois ou três encontros mais importantes da minha vida. E essas pessoas são insubstituíveis. Ao mesmo tempo, é alguém com quem eu continuo conversando muito. Não é uma conversa de psicóticos. Todas as decisões que eu tomo em relação não só a cinema, como a muitos aspectos da minha vida, são tomadas pensando no que o Coutinho diria, em como ele diria, em como me orientaria. É uma presença realmente viva dentro de mim. Mas seria muito melhor se ele estivesse vivo em carne e osso.

Continua após a publicidade

Estamos conversando hoje em meio à greve geral convocada pelas centrais sindicais contra as reformas da Previdência e trabalhista. Você vê esse tipo de luta política com o mesmo desencanto que eu enxerguei na sua visão sobre o Maio de 68?

Acho que uma das maldições do Brasil é a manutenção de privilégios, em todas as esferas, inclusive na esfera de certas classes trabalhadoras. Eu acho o movimento de hoje absolutamente legítimo, elas têm que lutar pelos seus diretos. Mas os direitos de uns podem eventualmente afetar a vida de muitos. Eu não estou convencido de que o Brasil seja capaz de sobreviver sem uma reforma da Previdência, de que o Brasil seja capaz de reincorporar 14 milhões de desempregados sem uma reforma trabalhista. Não sou muito habilitado para dizer se essas reformas, apresentadas por um governo com muito pouca legitimidade, seja a proposta correta ou o momento correto. Pelo que leio e me informo a respeito da situação em que o Brasil se encontra, a gente não sai dessa situação Sou ambíguo em relação ao dia de hoje. Entendo que as centrais sindicais queiram lutar pelos seus direitos, mas não sei se os direitos mantidos por determinados grupos organizados têm reflexos positivos ou nocivos para a sociedade brasileira de um modo geral. Aprendi com Maio de 68 que aquilo que as centrais sindicais querem não é necessariamente aquilo que produz felicidade. Em maio de 68, a principal central sindical era um braço do Partido Comunista, que era um braço da geopolítica da União Soviética. E eles chegaram à conclusão de que derrubar o De Gaulle não era interessante para a União Soviética, porque o De Gaulle não era socialista, mas era antiamericano. E, por isso, eles chegaram a um acordo com o governo e encerraram as greves. Um marechal soviético disse para um general francês: não entendo por que vocês não vão com tanques para cima dos estudantes. Como vocês permitem uma coisa dessas? São situações muito diferentes, a da França do passado e a do Brasil do presente. Mas o Maio de 68 não me deixa acreditar que essas manifestações nascem apenas de boas intenções.

Suponho que você também não acredite nas boas intenções do governo Temer.

Claro que não. A minha posição é de ceticismo. Mas não de desencanto em relação ao processo politico. Ele é essencial. Junho de 2013 é muito interessante: tem aspectos libertários e, ao mesmo tempo, conservadores, quase reacionários. O reacionário é a desvalorização da politica. Lamento que as pessoas que participaram de 2013 não tenham entrado na vida política, como aconteceu no Chile. A antipolítica é essencialmente reacionária. O [João] Dória é um aspecto disso. Personagens que se apresentam como gestores, não políticos, são efeito daquilo que se manifestou nas ruas. Se a gente tiver um salvador da pátria em 2018, será em parte consequência do que se passou nas ruas em 2013. Não é o único aspecto de 13, mas é um deles.

Protesto em Brasília, em junho de 2013. Foto: Agência Brasil

Há algum aspecto positivo que surge em 2013?

Sou da turma que acredita que a Lava Jato é civilizatória. Jamais se imaginou que parte da elite econômica e política tivesse medo das consequências da aplicação da lei. Não sou cientista político, mas tenho a impressão de que algo de 2013 foi escutado por jovens procuradores como um autorização para ter uma ousadia que nunca tiveram. A Lava Jato se acelera depois de 2013 e se torna mais audaz. A gente pode discutir se houve privilégio a determinado partido, determinados personagens. Mas é uma máquina que não pode mais ser parada e que agora chegou aos políticos da direita, centro-direita, sociais democratas, tá todo mundo implicado. Acho que isso é um dado civilizatório no Brasil, em que a elite sempre esteve acima da lei. Pela primeira vez, a elite tem medo.

Publicidade