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Vibração e resistência

Por Bravo
Atualizado em 21 set 2022, 22h16 - Publicado em 13 mar 2020, 14h25

Em sua sétima edição, a MITsp — Mostra Internacional de Teatro de São Paulo segue como o festival de teatro mais importante do país e se firma como polo de resistência

“By Heart”, de Tiago Rodrigues (Foto: Guto Muniz)

Por Gabriela Mellão

A MITsp — Mostra Internacional de Teatro de São Paulo inicia hoje seu segundo e último final de semana. Até agora pode-se dizer que, em sua sétima edição, o evento mantém a vibração original, passando a ocupar também um importante lugar de resistência na cena teatral do país. Os idealizadores da mostra Antonio Araújo e Guilherme Marques conseguiram o feito de manter o orçamento dos últimos anos. Em real. O que, diante da progressiva desvalorização da moeda em relação ao dólar e ao euro, significa uma redução significativa.

É mantida a intenção de reunir obras de experimentação de linguagem, embora a linha curatorial também abra espaço para a discussão de espetáculos cuja temática, em sintonia com questões urgentes da atualidade, seja priorizada em detrimento da forma. Caso, por exemplo, de Sábado Descontraído, da ruandesa Dorothée Munyaneza, que usa memórias de sua infância para relatar os horrores da guerra civil de seu país; ou de espetáculos cujo enfoque é a visibilidade trans, como Burgerz, solo do Reino Unido de Travis Alabanza e O Evangelho Segundo Jesus Cristo nas versões britânicas, de Jo Clifford, comemorando uma década de existência, e da brasileira de Renata Carvalho.

A MITsp deixa de reunir obras de gigantes da cena teatral mundial, como já fez no passado, ao trazer criações do francês Joël Pommerat, do polonês Krystian Lupa, do Italiano Romeo Castellucci e do suíço Christoph Marthaler, entre outros. Se por um lado deixa de ser vista, portanto, como uma vitrine do que existe de mais efervescente acontecendo nas artes cênicas do mundo, por outro segue firme sua trajetória como o festival de teatro mais importante do país.

Entre as doze montagens internacionais deste ano, Multidão, que abriu a mostra, dia 5, da diretora franco-austríaca Gisèle Vienne, e Contos Imorais — Parte 1: Casa mãe, da francesa Phia Ménard, se destacam pela ousadia formal.

Multidão é um espetáculo belíssimo, tão dionisíaco quanto apolíneo. Nele, Vienne constrói uma reflexão sobre o vazio da existência ao colocar sobre o palco jovens em uma espécie de transe coletivo, numa festa rave, embalados pela música techno.

A peça é inspirada em A Sagração da Primavera — espetáculo sobre um ritual pagão, composto por Igor Stravinsky e coreografado por Nijinsky, que subverteu a estética da música e da dança do início do século XX dando origem ao Modernismo.

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Como A Sagração…, Multidão funde estruturação e desordem, precisão e descontrole, harmonia e dissonância através de um rito poderoso, em que uma massa de corpos é entregue a um ritmo pulsante, num palco coberto por terra. A força do culto, no entanto, deixa de ter o sagrado como guia. Durante o rito, jovens se agitam em um êxtase generalizado. Aqui e ali, seus estados alterados de sentidos experimentam instantes de luxúria, promiscuidade e violência. São cenas de encontros e desencontros tão circunstanciais quanto efêmeras e insignificantes, desenhadas por movimentos meticulosos, predominantemente lentos, que apesar de individuais a todo momento ressoam o grupo.

Onde foi parar o sagrado na sociedade contemporânea? Essa é a questão chave desse espetáculo visualmente hipnótico, coreografado de forma meticulosa e conduzido por dançarinos virtuosos.

Fragilidades do mundo

Contos Imorais dá seguimento à indagação sobre as fragilidades do mundo atual. A performance singular de Ménard, concebida para a 14ª edição da Documenta de Kassel, em 2017, serve à inúmeras metáforas, como a edificação e derrocada da civilização, ao retratar a construção de uma estrutura que tanto evoca casas improvisadas de imigrantes refugiados e sem-teto, como o Partenon grego. Para levantar esta construção, a atriz é obrigada a fazer um trabalho hercúleo, para o qual se serve de estruturas de papelão, fita, serra elétrica, hastes/lanças, e muito suor.

A construção é lenta, exige paciência e persistência, tanto da artista como do espectador. Já a destruição é rapidíssima. Em poucos instantes, uma intempérie (que neste caso é a chuva) destrói todo o trabalho. O tempo dilatado de elaboração se mostra essencial para estabelecer a sensação de uma experiência real de construção — e depois de destruição.

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Diretor e dramaturgo português em ascensão na cena teatral europeia dos últimos anos, Tiago Rodrigues, o artista em foco da sétima MITsp, veio ao país apresentar By Heart e Sopro, dois espetáculos sobre a memória.

O primeiro é uma obra primorosa que não poderia ser mais simples na forma. Rodrigues está em cena e convida 10 espectadores ao palco. Eles devem decorar o Soneto 30 de Shakespeare para que guardem a beleza dentro de si. Se acontecer uma guerra, se ficarem cegos, se perderem tudo o que possuem, ainda assim eles guardarão a beleza dentro de si.

É emocionante ver essa apropriação da beleza acontecer. Através dela, Rodrigues fala sobre a fragilidade humana. Fala sobre liberdade, resistência, memória, afeto, livros. Fala sobretudo sobre o poder do humano. O espetáculo nasceu da relação de Rodrigues com sua avó Cândida, que era uma leitora assídua até descobrir que estava ficando cega.

A temporada de Sopro se iniciaria hoje (13) no Sesi-SP. Por conta da pausa das atividades do prédio da sede da FIESP, foi cancelada. A obra retrata a trajetória de Cristina Vidal, que há quase 30 anos trabalha como “ponto” no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, misturando histórias de sua memória às de Tchékhov, Racine e Molière, entre outros clássicos da dramaturgia. O restante da programação da MITsp segue inalterado.

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