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Viva o subsolo

Por Bravo
Atualizado em 22 set 2022, 12h44 - Publicado em 10 nov 2016, 11h11

“O homem precisa unicamente de uma vontade independente, custe o que custar essa independência e leve aonde levar. Bem, o diabo sabe o que é essa vontade.”

Fiódor Dostoiévski, em Memórias do Subsolo

Fotos: Ricardo Lopes

Por Katia Casalvara*

Sim, nós sabemos. O abismo fica logo ali, ou melhor, você já está nele. Conviver com essa sensação quase que diariamente faz parte da profissão do ator. Para aqueles que buscam segurança e uma garantia mínima de conforto financeiro ou mesmo emocional, uma dica: melhor mudar de ramo. Mas ter a “consciência exagerada” dos buracos que existem pelo caminho e mesmo assim insistir em continuar é justamente o que faz dessa trajetória algo digno — e apaixonante.

Alguns atores costumam dizer que foram picados pelo tal bichinho do teatro, porque a sensação é mais ou menos por aí: uma necessidade de fazer, inexplicável, que bate quando se começa a investigar e a se colocar em cena. Os pais podem apoiar ou desencorajar, não importa, se você foi picado, já era. Passada essa fase quase inocente de encontro e encantamento com uma prática que parece cheia de glamour mas que na verdade exige décadas de disciplina e estudos infinitos, muitos desistem pelo caminho e vão ser (in)felizes em seus escritórios, afinal, como é que se vive disso? Outros resolvem mergulhar nesse universo por um tempo pra ver “se dá certo” — como se fosse possível responder o que é dar certo nessa profissão — e voltam depois para um lugar qualquer, mas que seja mais confortável, por favor.

Todo esse prólogo para dizer que há alguns meses eu e mais três parceiros de jornada (Tadeu Ibarra, Dyl Pires e Vanessa Guillen) resolvemos fundar a Abominável Companhia. Decidimos testar na pele o que é estar por trás de absolutamente tudo o que envolve a produção de um espetáculo sem nenhum tipo de apoio financeiro, de patrocínio, de lei de incentivo. Nos conhecemos durante a montagem do espetáculo “Roberto Zucco”, do grupo paulistano Os Satyros (dirigido pelos nossos parceiros Rodolfo García Vásquez e Ivam Cabral), em 2010. Até hoje costumamos dizer que aquele processo foi especial não só pelos prêmios que recebeu, mas sobretudo pelos encontros de vida que proporcionou.

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A ideia da Abominável Companhia nasceu do desejo de continuar o fazer teatral sem esperar o telefone tocar ou mesmo o resultado de um concorrido edital. Era urgente. Estávamos todos em um daqueles momentos “subterrâneos” entre um trabalho e outro, dedão do pé no começo do abismo. O Tadeu voltava de um período de estudos na Suécia, intercâmbio promovido pela SP Escola de Teatro; eu estava às voltas com uma filha ainda bebê e começando a recarregar as baterias ao fazer novas oficinas teatrais; o Dyl, que também é poeta, se recuperava de uma cirurgia no maxilar e a Vanessa tinha acabado de encerrar mais uma parceria (de quase dez anos) com José Possi Neto na assistência de “Ghost — O Musical”. Na manga, nada, absolutamente nada a não ser a vontade de fazer teatro.

Em 2012 o Tadeu havia encomendado a uma amiga dramaturga, a Heloísa Cardoso, um texto que fosse baseado em “Memórias do Subsolo”, a clássica novela de Fiódor Dostoiévski publicada em 1864. Ele pediu apenas para que a dramaturgia desse mais peso à presença da mulher, algo que destoa do texto original, no qual só importa a voz do narrador. O Tadeu tentou montá-lo algumas vezes mas, por diferentes motivos, a ideia nunca ganhava forma. Quando nos juntamos, em junho deste ano, para começar a ler e a pesquisar textos, ele se lembrou deste.

O “Subterrâneo” da Heloísa Cardoso estava ali, pronto para vir a calhar — era baseado em uma obra clássica da literatura universal e da qual todos gostávamos. Quando começamos a estudar o texto moderno e afiado dela, pensamos de cara: “Não vai ser fácil!”, e talvez por isso mesmo tenha nos instigado ainda mais. Tratar de um drama existencial, onde não há exatamente uma história a ser contada, não é algo palatável ao público, mas resolvemos colocar os dois pés juntos no abismo, dessa vez até o calcanhar.

E agora estamos em pleno processo de queda. A peça nasceu no começo de novembro, dia 5, no Espaço Cia do Pássaro, na região central de São Paulo. Uma sala simples e intimista, bem aos moldes do que queria a Vanessa, nossa diretora, para o trabalho. Algo que favorecesse o mergulho desse personagem que “gosta de sofrer” e que no fundo carrega um pouco de todos nós na busca incansável por nos fazermos úteis e felizes no mundo contemporâneo. Como diz o nosso “Subterrâneo”: “tinha cheiro de merda aqui e ele precisaria estar aqui”. Não há como fugir.

Não vou entregar aqui nenhum tipo de interpretação sobre essa nossa primeira montagem (sem spoiler, please!). Posso dizer apenas que costumo chamá-la de peça pocket, não só porque tem 45 minutos de duração, mas porque sabemos que se pretende como um passo inicial e que está aberta ao mundo como um experimento. É nesse lugar que queremos estar agora, do experimentar, do fazer, sem depender de alguém que se lembre de nós. Há algo de libertador nisso.

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Tal e qual o personagem de Dostoiévski, vivemos em uma cidade cinza, mal cheirosa, mal administrada e não temos como escapar dos dramas sociais e pessoais. “O homem gosta de criar e de abrir estradas, isto é indiscutível. Mas por que ama também, até a paixão, a destruição e o caos?”, diz o original. E fazer teatro tem tudo a ver com isso.

Para nós, agora, a Abominável Companhia representa um ato de resistência; ou apenas um lugar para o qual podemos voltar sempre que parecer faltar algo nessa caminhada. Em tempos tão sombrios, é uma maneira de dizer que “teatrar” vale a pena, ao contrário do que vocifera o nosso subterrâneo.

Ficha Técnica

Direção: Vanessa Guillen

Texto: Heloísa Cardoso

Dramaturgista e assistente de direção: Dyl Pires

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Atores: Katia Calsavara e Tadeu Ibarra

Cenário e figurinos: Pedro de Alcântara Neto

Realização e produção: Abominável Companhia

Fotos: Ricardo Lopes

Imprensa: Pipa Produções

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Arte Gráfica: Ana Negreiros

Serviço

SUBTERRÂNEO

ESPAÇO CIA DO PÁSSARO

Rua Álvaro de Carvalho, 177, Centro, São Paulo, SP.

Sábados, 21h, e domingos, 19h. Até 27/11.

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Contribuição voluntária

48 lugares

Reservas pelo email: imprensapipaproducoes@gmail.com

*Katia Calsavara é atriz, bailarina, jornalista e uma das fundadoras da Abominável Companhia

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