Yes, I’m a witch: Yoko Ono e a música experimental
Por Luise Malmaceda
Chamam de bruxas as mulheres detentoras de conhecimentos sobre a natureza, que não tiveram medo do oculto e, por consequência, do novo e da liberdade de deixar-se descobrir. Se há muito a bruxa virou mais fantasia do que injúria, a fogueira segue acesa, queimando simbolicamente aquelas que não se sujeitam às determinações de ordens diversas. Nesse sentido, durante os anos 1960 foi possível observar emergir mais uma dessas figuras, a nipo-americana Yoko Ono, longamente culpabilizada e julgada em espetáculo público pelo fim de uma banda. A imagem construída da artista, porém, guarda pouca ou nenhuma semelhança com aquilo que propõe em suas obras e em seu ativismo político na promoção da paz, da igualdade de gênero e do meio ambiente, âmbitos existentes antes e após a relação com o astro John Lennon. De acordo com afirmativa do próprio músico, a Yoko Ono seria uma das artistas desconhecidas mais conhecidas do mundo, pois todos sabem o seu nome, mas poucos conhecem de fato o seu trabalho. Felizmente, a afirmativa de Lennon vai eclipsando diante da reconsideração atual da obra da artista e de sua figura pública, que conta com cerca de 5 milhões de seguidores nas redes sociais.
Mas se desde finais da década de 1990 a produção visual de Yoko Ono vem conquistando visibilidade retroativa no campo artístico, que hoje reconhece e circunscreve a importância de sua atuação para o desenvolvimento da arte contemporânea, o mesmo parece não ter acontecido com a sua trajetória musical, ainda pouco conhecida e discutida. No entanto, para compreendermos a sua obra, não podemos fugir de uma análise mais detida a este aspecto, que estende sua influência, direta ou indireta, por boa parte de seu percurso.
Sua produção musical teve sua cota de visibilidade, especialmente no fim dos anos 1960 e início dos 70, muito devido ao massivo interesse midiático gerado pelo envolvimento com John Lennon, com quem se relacionou de 1968 até 1980. Mas, ao nunca buscar nenhum tipo de apelo comercial ou muitas vezes rompendo completamente com o que se espera da estrutura de uma composição pop, incluindo aí seus gritos estridentes durando por peças inteiras de mais de 10 minutos, e devido ao grande preconceito sofrido, com acusações infantis de ter acabado com a carreira dos Beatles, não logrou grande atenção ao seu trabalho para além de comentários envolvendo termos como “bizarro”, “sem sentido” e “ridículo”.
Não foi apenas ao grande público que seus discos escaparam; a crítica especializada também teve dificuldade em lidar com a sobreposição de duas diferentes forças que a conduziam, primeiramente do experimentalismo, que pregou o rompimento com os preceitos musicais clássicos e embaralhou a pureza das linguagens, e em segundo, do rock e da música pop em geral, mescla que se veria influente pouco tempo depois. Ainda, parte de sua potente criação artística, para além da música propriamente dita, estava ligada em origem a um experimentalismo derivado de suas relações com o Grupo Fluxus (1961–1978), cujas propostas revolucionárias receberiam a atenção de museus e galerias tardiamente, salvo raras exceções.
De fato, talvez o motivo da má recepção crítica de sua obra à época tenha se devido ao fato de que sua produção não pertencia ao universo da música pop ao qual a sua imagem e nome acabaram atrelados, mas a um lugar entre, paralelo ou mesmo independente, como ressonância de sua atuação no circuito artístico marginal novaiorquino. Mantendo grande consistência de seus interesses estéticos, ao adentrar o universo da composição e da gravação de discos, negou sempre ser mais um produto do pop, sobretudo por suas composições não estarem atreladas aos refrãos, melodias harmoniosas e tampouco às performances e imagens construídas pela indústria da música. A obra de Ono pertence, tanto na arte quanto no som, ao campo da mais visceral experimentação. Suas criações disruptivas versam sobre política ou referem-se aos próprios sons do universo cotidiano, como ressonância do que os artistas Fluxus vinham praticando na arte.
Ainda no Japão, muito antes de seu contato com o Grupo Fluxus, a música e a dimensão sonora já estavam fortemente presentes em sua vida. Filha de um pianista clássico aficionado por Schoenberg e dodecafonismo e de uma talentosa cantora e instrumentista tradicional, iniciou sua formação quando criança, aprendendo piano e, mais adiante, harmonia, composição e canto. Frequentou a escola Jiyū Gakuen, conhecida por seu complexo arquitetônico projetado por Frank Lloyd Wright e importante por promover uma educação musical inovadora, que já trabalhava princípios daquilo que Ono desenvolveria na década de 1960, como a aproximação entre arte e vida. Em suas aulas, foi estimulada a ouvir com cuidado os sons do dia a dia, transpondo-os em anotações musicais. Entre os exercícios propostos pela escola estava, por exemplo, fazer uma composição baseada no som de um relógio.
Segundo a artista, essa prática impulsionou sua sensibilidade e atenção aos sons, antecipando em essência as teorias da música experimental que conheceria mais tarde com John Cage, compositor de vanguarda com quem colaborou amplamente. Uma experiência (ou anedota) frequentemente citada pela artista sublinha sua revelação para o poder do som. Ainda muito nova, se escondeu para ouvir as empregadas de sua família conversando, quando uma delas começou a imitar os sons que sua tia havia feito ao dar à luz no dia anterior. Os grunhidos que se seguiram fizeram com que Ono, em choque, percebesse a imagem artificialmente limpa atribuída às mulheres, o que foi central em sua produção futura, envolvendo, em grande escala, gritos ou, no mínimo, sua sugestão.
O EXPERIMENTALISMO
Em 1955, Yoko Ono mudou-se de Tóquio para Nova York. Nesse período, não chegou a ser aluna de John Cage, mas o conheceu durante uma palestra sobre Zen Budismo e conviveu com diversos de seus estudantes. Foi nas aulas que Cage ministrou na The New School que um grupo de jovens artistas se aglutinou para formar o grupo Fluxus. Yoko Ono se juntou a esses artistas porque organizava uma série de encontros de vanguarda em seu loft, dos quais participavam nomes como George Brecht, La Monte Young, e o seu primeiro marido, Toshi Ichiyanagi. Diversos historiadores se referem a esses encontros na residência da artista como os primeiros eventos Fluxus.
Mas para que se compreenda o que foi o grupo Fluxus, é preciso explicar brevemente as teorias propostas nas aulas de John Cage. Segundo os preceitos do compositor, haveria potencial sonoro em qualquer elemento, dos menos convencionais, como utensílios de cozinha, ao próprio silêncio. Cage, ao romper com a determinação histórica de que a música seria feita somente por músicos tocando instrumentos tradicionais a partir de uma estrutura predeterminada, abriu caminho para a experimentação dos sons em relação à amplitude de oportunidades do mundo contemporâneo.
Nesse sentido, do mesmo modo que Cage na música, os artistas Fluxus advogavam por uma maior aproximação da arte com a vida cotidiana. O espírito do grupo pautava-se pelo processo mais do que pelo objeto, legando à experiência o verdadeiro sentido fazer artístico. De acordo com o manifesto Fluxus escrito George Maciunas, grande articulador do grupo, se o homem pudesse ter uma experiência do mundo concreto que o cerca da mesma maneira que tem a experiência da arte, não haveria necessidade de arte ou artistas. Ou seja, não era necessário, como ditaram os movimentos anteriores ao grupo, falar do mundo por meio do campo simbólico, mas experimentá-lo realmente, eliminando os conceitos estabelecidos para distinguir um objeto de uma obra de arte. Essa disposição geral do grupo, de entender o cotidiano como suficientemente fascinante, extrapolou, em gesto radical, os ready-mades de Marcel Duchamp. Pois se Duchamp questionou valores como genialidade, unicidade, individualidade e destreza, Fluxus retirou a necessidade do próprio valor institucional. Não à toa, os artistas Fluxus tomavam a liberdade de experimentar com qualquer elemento existente, sem preocupação se seriam exibidos. Assim, foi em meio ao grupo que emergiram uma multiplicidade de linguagens, entre as quais a videoarte, a performance, os eventos multimídia e, sem dúvida, a arte conceitual.
Nessa época, ao mesmo tempo em que participava do Fluxus, Yoko Ono deu início a sua carreira solo, começando a realizar exposições individuais e a obter reconhecimento dentro do círculo de vanguarda. Já nas suas primeiras apresentações, incluía a dimensão sonora em suas performances. Nelas, utilizava gravações de música atonal, exercitava o seu extraordinário alcance vocal e explorava sons cotidianos como o riso, o murmúrio, o grito. Em um de seus eventos na cena de vanguarda de Nova York trouxe ao público a obra A Grapefruit in the World of Park (1961), na qual aplicou diversas mídias, compôs com sons como o da descarga de uma privada, e praticou um canto falado com textos poéticos. Essa obra, assim como diversos eventos do Fluxus, remonta as apresentações Dadá e Surrealistas do início do século XX.
Grapefruit, além de estar no título da mencionada performance, nomeia uma de suas principais obras, um livro que compila uma série de instruções, linguagem artística que criou em 1955 e segue desenvolvendo. São as instruções o núcleo privilegiado pela mostra “O CÉU AINDA É AZUL, VOCÊ SABE…”, em cartaz até o dia 28 de maio no Instituto Tomie Ohtake de São Paulo. Com as instruções, que são consideradas uma forma de arte conceitual precoce, a artista abdicou da dimensão material para valorizar a palavra, a ideia e a participação criativa do público, convidado a completá-las por meio de ações físicas ou mentais.
Uma forma de produção textual, a instrução pode ser vista como ramificação da partitura musical, feita em essência para ser múltipla, pois permite a execução por qualquer pessoa em qualquer lugar, com abertura suficiente para que cada uma seja única. Em dada entrevista da artista, quando afirma que pensa em sua música “(…) mais como prática Zen do que como música”, pois “o único som que existe para mim é o da minha mente, e meus trabalhos são somente para promover a música da mente em pessoas”, se torna evidente a relação entre as instruções e a produção musical da artista, pois ambas são concebidas como gatilho para imaginação do outro. Como exemplo, podemos citar “Peça Vocal para Soprano”, caso célebre no qual a musicalidade fica evidente na instrução, onde a artista sugere que se grite contra o vento, contra a parede e contra o céu. Na exposição atual da artista, é também possível conhecer algumas de suas obras sonoras, como a “Peça tosse”, de 1961, na qual Ono passa 30 minutos tossindo ininterruptamente.
Entretanto, não são as obras sonoras o ponto nevrálgico da exposição ou da obra da artista, mas uma característica particular que parece abraçar o seu corpo de trabalho: a preocupação com a complexidade psicológica da interação do público, convocado a tomar a obra como processo de aperfeiçoamento da autopercepção, desenvolvendo consciência dos sentidos e de nossa presença no mundo. Objetivos esses que seguem prementes em sua produção atual, seja na música, na arte ou no ativismo político.
O UNIVERSO POP
Em 1966, Yoko Ono já havia ganhado grande atenção pública após o lançamento de seu vídeo Film №4 — close-ups de “traseiros“ — e por isso sofrido com o ressentimento de seus colegas do campo artístico. No entanto, nada comparável ao que passaria após, no final desse ano, conhecer John Lennon em uma exposição solo sua, com quem se relacionaria de forma cada vez mais pública: a presença de uma artista avant-garde nipo-americana ao lado de um dos principais pop-stars do mundo disparou comentários ignorantes, machistas e racistas de fãs e até mesmo em certos círculos da arte de vanguarda.
Não cabe, ao se analisar a produção musical de Ono, buscar uma desassociação da figura de Lennon, uma vez que ambos se influenciavam mutuamente e produziam em conjunto, tanto musical e artisticamente, como pessoal e filosoficamente, uma parceria que corria na mesma medida em que se dedicavam a projetos individuais. Não há como fugir, porém, de discorrer sobre a trajetória de Ono sem mencionar o escárnio à sua figura pública, que não convinha com as expectativas do parco ideário social destinado à mulher em sua época. Japonesa estabelecida durante o pós-guerra nos Estados Unidos, feminista, pacifista e artista de vanguarda — em suas aparições midiáticas ao lado de Lennon não figurava como mero objeto, mas como extremo oposto, exercitava o grito na música e as pautas políticas na fala. Por enfática resiliência da artista, mesmo com o escrutínio público, manteve-se sempre ativa nas vanguardas da arte e da música antes, durante a relação com o músico e após a sua morte precoce.
Será na relação do casal, por meio do lançamento do disco Unfinished Music №1: Two Virgins (1968), realizado em parceria com John Lennon, que Ono adentrará ao universo pop. O disco ficou famoso por sua capa, em que os dois aparecem em nudez frontal completa, e por isso recusado pela gravadora EMI, que não quis distribuí-lo. Como um evento, toda a sua gravação foi realizada durante sessão noturna de experimentação musical no estúdio caseiro de Lennon. Na gravação, que foi condensada em uma peça contínua de pouco menos de meia hora, Ono lança sua voz variando entre momentos líricos e puramente onomatopeicos, se contrapondo com a atuação de Lennon em instrumentos musicais (piano, órgão, bateria) e efeitos eletrônicos diversos como distorção, eco e fitas em loop.
https://www.youtube.com/watch?v=rfMHAGJl1W8
Será apenas em 1970, no entanto, com o lançamento de seu disco Yoko Ono/Plastic Ono Band que a artista encontraria um equilíbrio mais potente entre técnicas de vanguarda, seu canto improvisacional e agressivo e o formato de rock trazido pela banda que a apoiou e que contava, além de John Lennon, com Ringo Starr na bateria. Faixas como Why e Touch Me são exemplos desse encontro explosivo. AOS é outra música importante desse disco, gravada com Ornette Coleman Ensemble na melhor tradição vanguardista do free jazz capitaneada pelo saxofonista, onde a voz de Ono substitui o papel que teria um trompete e dialoga com o saxofone de Coleman, variando entre momentos reflexivos e de pura violência. O disco, que saiu no mesmo ano do término oficial dos Beatles, foi recebido com grande dose de hostilidade, apesar de ter obtido uma crítica positiva na revista Rolling Stone. No ano seguinte, lançou um de seus mais famosos discos Fly, cuja música-título é uma peça vocal solo de quase 23 minutos de duração. Tal peça é utilizada como trilha para seu vídeo homônimo, onde uma mosca passeia pelo corpo de uma mulher, obra também presente na atual exposição no Instituto Tomie Ohtake.
A presença do grito, da visceralidade feminina, da desconfiança quanto à autoridade do estabelecimento do rock, e da incessante busca experimental que levou à importação de técnicas e ferramentas desenvolvidas originalmente no campo artístico, alienou grande parte do público quanto a sua proposta. Mas foi exatamente essa postura desafiadora e energia revolucionária que tornou sua produção fonte de inspiração para gerações punk que viriam na sequência. Ainda, sua investigação estética e técnica encontra ecos em importantes bandas inovadoras e não limitadas à estruturas pop como o B-52s, o Sonic Youth e o Radiohead. Durante a segunda metade dos anos 1970 e na sequência, Ono passou a produzir canções mais tradicionais do ponto de vista estrutural, se distanciando de sua estética atonal anterior, sem se retirar, no entanto, do viés de protesto e de posicionamento político que sempre a acompanhou.
A nós críticos talvez caiba, mesmo que tardiamente, desembaçar a imagem estigmatizada pela imprensa e pelos julgamentos desinformados. Pois à artista sempre coube resistir por meio de sua própria obra (e voz), que, voraz, diz tanto mundo aos que se abrem para construção dos próprios territórios de liberdade.