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3 Obás de Xangô: A Bahia inventada pela amizade

Sérgio Machado fala sobre o documentário premiado e pessoal que celebra Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carybé

Por Ana Claudia Paixão
Atualizado em 3 set 2025, 16h01 - Publicado em 3 set 2025, 07h00
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Cena do filme 3 obás de Xangô (3 obás de Xangô/divulgação)
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Depois de uma trajetória arrebatadora pelos festivais de cinema do Brasil — com o Redentor de Melhor Documentário no Festival do Rio, o Prêmio do Público na Mostra de São Paulo, o troféu de Melhor Filme pelo Júri Popular na Mostra de Tiradentes e, mais recentemente, o Grande Otelo de Melhor Documentário de longa-metragem —, o filme  3 Obás de Xangô finalmente chegou aos cinemas brasileiros nesta quinta (4 de setembro) com distribuição pela Gullane+.

Dirigido por Sérgio Machado, o filme parte da amizade de Jorge Amado, Dorival Caymmi e Carybé, três artistas que se tornaram não apenas símbolos da Bahia, mas também guardiões de sua espiritualidade e identidade cultural. Elevados ao título de Obás de Xangô, concedido por Mãe Senhora no Ilê Axé Opô Afonjá, eles transformaram literatura, música e artes plásticas em espelho da religiosidade afro-brasileira, do poder feminino e da presença onipresente do mar.

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Cena do filme 3 Obás de Xango (3 obás de Xangô/divulgação)

Narrado por Lázaro Ramos e construído a partir de imagens raras, arquivos inéditos e depoimentos de nomes como Gilberto Gil, Muniz Sodré, Dori Caymmi, Itamar Vieira Jr., Paloma Amado e Mãe Stella de Oxóssi, o documentário é também um gesto pessoal do diretor, que cresceu em um ambiente de candomblé e revisita ali a sua própria memória afetiva.

Com roteiro de Machado, Gabriel Meyohas, Joselia Aguiar e André Finotti, e coprodução entre a Coqueirão Pictures, Janela do Mundo, Globo Filmes e GloboNews, 3 Obás de Xangô reafirma a potência do cinema brasileiro em celebrar suas raízes. Para Sérgio Machado, que já foi assistente de direção em Central do Brasil, roteirista de Abril Despedaçado e Madame Satã, e diretor de títulos como Cidade Baixa, Tudo que Aprendemos Juntos e A Luta do Século, este talvez seja seu filme mais íntimo: “um espelho de afetos e de uma Bahia inventada pela amizade e pela generosidade”, como ele mesmo define, em conversa com a Bravo!.

Em uma passagem pelo Rio de Janeiro para cuidar dos próximos projetos, Sérgio Machado fala da emoção do trabalho em um documentário que aborda tantos temas universais e é tão baiano ao mesmo tempo.

Bravo! – Fiquei muito emocionada com o documentário, preciso abrir mencionando isso.
Sérgio Machado – Se você puder ver no cinema, é curioso, porque esse é um filme que funciona muito bem coletivamente. Nas sessões, as pessoas riam e choravam muito, e isso me surpreendeu. É uma experiência que ganha força quando compartilhada, porque fala de amizade. No Rio e em São Paulo a carga emocional foi muito forte. Talvez porque, nesse mundo endurecido pela pressão, pelo individualismo e pela competição, o filme lembre algo que Jorge Amado sempre dizia: que sem amor não vale a pena viver — mas a amizade e o afeto, sim, valem.

Bravo! – A amizade deles é linda, mas também me chamou atenção a relação com as esposas, marcada por carinho e cumplicidade.

Sérgio Machado – Isso reflete quem eles eram. Jorge, por exemplo, era profundamente generoso, e essa generosidade está na raiz da obra e da vida dele. Faço cinema, de certa forma, porque fui apadrinhado por Jorge. Ele ajudava todo mundo, abria portas. Eles eram assim na vida, e eu sou testemunha disso.

Bravo! – Como surgiu a ideia do projeto?

Sérgio Machado – É talvez o filme mais pessoal que já fiz. Minha mãe era de candomblé, cresci cercado por esse universo. Mas a ideia inicial não foi minha. Veio do produtor Diogo Dahl, a partir de uma proposta do roteirista Gabriel Meioas, que pensava num filme sobre as cartas trocadas entre eles. Diogo pensou em mim pela minha relação com os três. Eu aceitei, mas quis fazer do meu ponto de vista. Fui investigando o que havia de comum entre eles e em mim, e cheguei à ligação com o candomblé, ao fato de serem Obás de Xangô. Além disso, todos se viam como documentaristas: Caymmi, Carybé e Jorge sempre diziam que apenas levavam para a arte o que viam na rua. O mar, o feminino e o candomblé são eixos centrais na obra de todos. A Bahia é uma terra de matriarcado, e isso me fascinou. Muniz Sodré lembra no filme que talvez em nenhum lugar do mundo o feminino seja tão respeitado quanto no candomblé. Cresci num ambiente de mulheres fortes, e sempre me interessei por esse olhar.

Bravo! – Você encontrou desafios no processo?

Sérgio Machado – Um grande presente foi receber de João Moreira Salles um material inédito, latas e mais latas de filme. Mas houve dificuldades: quase nunca encontramos registros dos três juntos. Sempre dois falavam do terceiro que faltava. Só conseguimos, depois de anos, uma imagem curtíssima dos três juntos.

Bravo! – O depoimento de Dori Caymmi sobre o pai pedindo a Iemanjá para “devolver” o filho me fez rir. Há muito humor ali.

Sérgio Machado – O humor é central na Bahia. Brincar com o outro, às vezes até com insinuações de cunho sexual, é uma forma de demonstrar intimidade e afeto. O Lázaro Ramos costuma dizer que a Bahia é cozida no molho do candomblé. Essa mistura de culto ao feminino, religiosidade e humor marca a convivência.

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Bravo! – O título remete ao cargo de Obá de Xangô. Qual sua importância?

Sérgio Machado – É uma instituição fundamental. Jorge, Caymmi e Carybé não inventaram a Bahia — quem a inventou foram as mães de santo, como Mãe Aninha e Mãe Senhora, ao lado de intelectuais como Martiniano do Bonfim. Os Obás são ministros de Xangô, convocados para proteger e divulgar o candomblé e a afro-brasilidade. Mãe Senhora convidou Jorge, Caymmi, Carybé, Camafeu de Oxóssi… Hoje, nomes como Gilberto Gil e Muniz Sodré também são Obás. Eu mesmo fui convocado, mas ainda não iniciei o processo.

Bravo! – O documentário também toca no preconceito religioso.

Sérgio Machado – Muito. Apesar de ter ganhado os principais prêmios — Festival do Rio, Mostra de São Paulo, Tiradentes e o Grande Otelo —, tivemos dificuldade para negociar exibição na TV, por preconceito contra o candomblé. A intolerância religiosa voltou a crescer, com terreiros agredidos no Brasil inteiro. É triste, mas necessário enfrentar esse tema.

Bravo! – Como entrou o Lázaro Ramos na narração?

Sérgio Machado – Somos amigos desde a faculdade. Trabalhamos juntos em Cidade Baixa, há 20 anos. Convidei-o para dar um depoimento, e pedi para ler uma carta. Ficou bonito, coloquei no filme, depois ele gravou outras passagens. Ele é como um irmão.

Bravo! – É mais desafiador fazer documentário ou ficção?

Sérgio Machado – Tento alternar. Longas de ficção demoram mais, exigem muito financeiramente. O documentário me permite continuar filmando e contar histórias. Minhas ficções têm algo de documental, e meus documentários são muito roteirizados, com dramaturgia e arcos de personagens. Vivo nessa intersecção.

Bravo! – Há alguma obra de Jorge Amado que ainda sonha adaptar?

Sérgio Machado – Fiz Pastores da Noite, mas meu sonho é Tocaia Grande. Vejo como um western de excluídos, um épico humanista. É uma superprodução, mas é o que mais me instiga.

Bravo! – Se tivesse que definir 3 Obás de Xangô em poucas palavras?

Sérgio Machado – Amizade, tolerância e feminino. A Bahia é terra de mulheres poderosas, e isso me fascina. Sempre admirei essa força.

Bravo! – O filme já soma prêmios importantes. Pensa numa carreira internacional?

Sérgio Machado – Sim. Participou de três festivais e venceu os três, além do Grande Otelo de Melhor Documentário. Agora começamos a pensar no caminho internacional. É um filme muito pessoal, que costura minha vida, minha relação com Jorge Amado e com minha mãe.

Bravo! – E como tem sido apresentar Jorge, Caymmi e Carybé a novas gerações?

Sérgio Machado – Muitos jovens conhecem pouco, mas o afeto que os une é universal. Jorge dizia: “A amizade é melhor do que o ódio. Sem amor, não vale a pena viver”. Essa frase, como disse Walter Salles ao ver o corte, é urgente. Acho que é isso que pega em todo mundo.

Bravo! – E o que vem por aí?

Sérgio Machado – Tenho dois projetos bem encaminhados: um longa sobre a vida de Chico Mendes e outro de suspense, inspirado num conto de Stefan Zweig, com Marcélia Cartaxo. Além disso, um documentário sobre quatro amigas que atravessaram a Ásia e a África de Kombi nos anos 70, em plena guerra do Afeganistão e do Irã. Uma delas é a produtora Sara Silveira, outra é a fotógrafa Arlete Soares, que registrou tudo. Vai render um grande filme.

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