Avatar do usuário logado
OLÁ,

A arte de distribuir um filme

Jean Thomas Bernardini, fundador da Reserva Cultural e da Imovision, conta como construiu um dos mais importantes polos de cinema independente do país

Por Humberto Maruchel
27 abr 2025, 09h00
jean-thomas-bernadini-cinema-reserva-imovision-distribuidora-filmes-arte
Sao Paulo-SP-06.08.2024-BRASIL - Pre Estreia do filme o Mensageiro realizado no reserva Cultural. Foto:Bruno Poletti (Imovision/divulgação)
Continua após publicidade

Como alguém se torna um distribuidor de filmes? Ao que tudo indica, esse não é um caminho escolhido com a mesma naturalidade – e paixão – com que se decide ser cineasta ou até mesmo crítico de cinema. Mesmo entre cinéfilos de longa data, a distribuição parece um território que se revela mais pelo acaso do que por vocação. O francês Jean Thomas Bernardini, radicado no Brasil há décadas, tem uma história que corrobora essa impressão.

Para quem não está familiarizado com o nome, Bernardini é responsável por dois grandes patrimônios culturais no país – sendo um deles símbolo da resistência dos cinemas de rua, hoje quase extintos. Em 2005, quando as salas de exibição já haviam sido em grande parte engolidas pelos shoppings, e os espaços independentes perdiam terreno para os multiplex, ele apostou no respiro possível ao criar o Reserva Cultural, um cinema de rua com unidades em São Paulo e Niterói.

Ter o próprio cinema, para Bernardini, significava garantir um espaço para exibir os filmes selecionados com o olhar apurado de sua distribuidora, a Imovision, fundada em 1987.

Sentado em uma das mesas do Bistrô Reserva – o restaurante que divide espaço com o charmoso cinema no coração da Avenida Paulista –, ele relembra o percurso improvável que o levou a se aventurar por um dos segmentos mais instáveis da indústria audiovisual.

jean-thomas-bernadini-cinema-reserva-imovision-distribuidora-filmes-arte
(Imovision/divulgação)

Bernardini chegou ao Brasil com 24 ou 25 anos – “não lembro ao certo”, diz, sorrindo. Era formado em Psicologia, carreira pela qual nunca se interessou de fato. Porém, escolheu o empreendedorismo. Tocava, ao lado de um amigo, uma brasserie nos arredores de Marselha e Aix-en-Provence, sua cidade natal, no sul da França. Foi esse mesmo amigo quem o convidou para uma viagem ao Brasil. A ideia era fechar um negócio: comprar um hotel no Rio de Janeiro. Um plano que, ao fim, fracassou – o investimento era muito mais alto do que anunciado.

Continua após a publicidade

Mas a viagem, por outro lado, revelou um novo destino. “Conhecia o mundo inteiro, menos o Brasil. Vim para cá pensando em fazer um negócio, não para ficar. Mas gostei daqui”, ele conta. Ainda que os brasileiros hoje tentem se desvencilhar dos estereótipos, foram justamente eles que conquistaram o francês: o samba, o carnaval, o futebol. E, claro, a beleza da capital fluminense. Conta orgulhoso que já desfilou em três escolas de samba.

A imagem de um “sonho brasileiro”, que pairava no imaginário europeu, tornou-se realidade para Bernardini. “Naquela época, todo mundo sonhava com o Brasil”, afirma.

Foram necessários alguns anos até que ele se estabelecesse de vez no país — primeiro no Rio de Janeiro, depois em São Paulo. Foi então que abriu uma confecção e se tornou representante da marca francesa de jeans MacKeen. Um caso breve com a moda, antes de mergulhar de vez na indústria do audiovisual. A paixão pelo cinema, aliás, não é uma herança de família. Seu pai tinha uma autoescola e sua mãe era professora.

“Na universidade, eu cuidava de um cineclube com amigos. Alguns deles acabaram indo para o cinema, e a gente acompanhava. Eu adorava — via até três filmes por dia —, mas nunca pensei em trabalhar com isso, era só um hobby. Um dia, um desses amigos precisou de ajuda para terminar um filme, porque o financiamento acabou. A gente ajudou, só pela amizade. Depois, ele me disse: ‘Temos nosso filme, vamos lançar no Brasil’. Eu respondi: ‘Mas eu não sou distribuidor’. E ele disse: ‘Tudo bem, a gente faz junto’.”

Continua após a publicidade

O filme em questão era Inverno 54, e o amigo-diretor era Denis Amar. Aquele parecia ser um mercado com muito mais demanda do que ele podia imaginar — e pouquíssima oferta. Bernardini passou a receber ligações do exterior com propostas de projetos interessados em distribuição no Brasil. Assim nasceu a Imovision.

“Na época, os filmes ficavam até um ano em cartaz. Era outro tempo, muito bom. Trabalhei com a Mostra [Internacional de Cinema em São Paulo], e meus três primeiros filmes foram premiados em anos seguidos. O Leon Cakoff exibia filmes estrangeiros sem legenda — poloneses, russos — e as sessões lotavam. O cinema americano quase não chegava. Só aparecia um blockbuster de vez em quando. Não interessava, porque não tinha sala que desse retorno. Então a gente não tinha concorrência. O público esperava o nosso filme. Era de segunda a segunda. Lotava!”

Desde então, distribuiu e lançou mais de 500 filmes. Apesar de conhecer pouco o público brasileiro, sua intuição se revelou certeira — tanto nas escolhas dos filmes que traria, quanto nas decisões frente às mudanças do mercado. “Quando começaram a abrir as salas multiplex, a concorrência nas salas de rua caiu muito”, ele conta. Isso foi em meados dos anos 1990 e começo de 2000. Bernardini foi alertado de que o público já não se interessava mais por cinema de arte e filmes independentes.

Seu palpite, no entanto, era outro: acreditava que a questão estava na experiência oferecida pelas novas salas. O que ele podia fazer, então? “Quais são as três vantagens de um cinema de shopping?”, ele pergunta. A resposta, para ele, era simples estacionamento, segurança e a possibilidade de estender o passeio com outras ofertas de lazer. Quando os donos das salas de rua anunciavam o fim do cinema de arte, Bernardini logo rebatia. “Eu dizia: ‘O público não caiu porque é filme de arte, mas porque a sua tela é pequena, o som é ruim, tem rato passando pelo cinema. Não é porque alguém gosta de filme independente que vai aceitar qualquer coisa se tem algo melhor’.”

Continua após a publicidade

A saída foi criar um cinema que oferecesse o mesmo conforto das salas multiplex, aliado a uma livraria e um bistrô. Esse modelo de negócios foi o que salvou o Reserva diante de outra transformação que viria depois: a chegada do streaming e a consequente queda de público nas salas.

Hoje, Bernardini defende que os cinemas não dependam de patrocinadores. Para ele, essa dependência pode ser instável e arriscada. “Pensei: ‘Não vou me lançar em um negócio que dependa de um benfeitor para se sustentar. Se amanhã ele não gosta mais de mim e me larga, o que eu faço?’ Então encontramos essa fórmula: tudo o que vendemos no restaurante, na livraria, nos dá uma renda que substitui, em parte, o papel do patrocinador.” A distribuição de um filme envolve custos bastante variados, que podem variar de 20 mil a 4 milhões de reais, ele conta. 

jean-thomas-bernadini-cinema-reserva-imovision-distribuidora-filmes-arte
(Imovision/divulgação)

Hoje, além do cinema, a Imovision conta com sua própria plataforma de streaming, o Reserva Imovision, criada em 2021. Uma extensão natural da sala física. Entre os títulos mais acessados da plataforma estão Não Fale o Mal (2022), de Christian Tafdrup; Monster (2023), drama do japonês Hirokazu Koreeda; O Império dos Sentidos (1976), clássico de Nagisa Oshima; e A Garota Silenciosa (2022), dirigido pelo irlandês Colm Bairéad.

Continua após a publicidade

Como nos tempos do cineclube da universidade, Bernardini segue assistindo a três ou mais filmes por dia — agora, claro, por obrigação profissional. Mesmo com uma equipe especializada, faz questão de acompanhar de perto todo o processo de curadoria até a escolha final. Sua dedicação e profundo conhecimento do setor lhe renderam um convite para integrar a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, responsável pelo Oscar, mas o chamado não o empolgou.

“Já convidaram. O governo francês, por exemplo, quis me dar uma medalha. Mas eu não quero, não. Porque eu sou independente de verdade. Não quero ser pressionado, ter que votar em alguém só porque é francês, ou porque é amigo do amigo… Isso acontece muito por aqui. E eu não quero nada disso.”

Ele diz que, até hoje, prefere assistir aos filmes com o olhar de espectador, e não de crítico. Quando questionado se há algum título de que não abre mão, pensa em muitos, mas apenas um é mencionado na conversa: Incêndios (2010), do canadense Denis Villeneuve, baseado na peça de Wajdi Mouawad. “Toda vez que assisto, eu me emociono.”

Publicidade