Acervo Bravo!: Leia crítica exclusiva do botafoguense Cacá Diegues sobre o filme “Heleno”
“Heleno” retrata com delicadeza o percurso trágico de um craque tão contraditório quanto as cores do time em que brilhou, o alvinegro Botafogo

Há várias maneiras de abordar a vida de um herói – a mais comovente delas é pelo seu fracasso. Somos capazes de amar os heróis desde que os achemos parecidos conosco ou com aquilo que gostaríamos de ser. Nossa solidariedade será absoluta. Não poderemos deixar de sofrer a dor de quem é nosso semelhante, de quem somos nós mesmos.
Foi assim que o diretor José Henrique Fonseca (de O Homem do Ano) construiu o seu Heleno, filme sobre o grande craque de futebol das décadas de 1940 e 50, o primeiro jovem de elite, morador da Zona Sul carioca, a abraçar essa carreira e se tornar um ídolo nela, apesar do temperamento explosivo, da indisciplina, do gosto pela boemia e do vício em drogas, como o lança-perfume. Ou, se quisermos narrar a história de outro jeito, o primeiro jogador de futebol a não se deixar escravizar por seus patrões nem ser vítima de seus admiradores.

passa por grande transformação física durante o longa-metragem (Walter Carvalho/acervo rede Abril)
O primeiro a impor sua vida, suas ideias e seus costumes à servidão de uma atividade que não admitia e ainda custa a admitir exceções. Infelizmente, nunca vi Heleno de Freitas (1920-1959) jogar. Meu amor pelo Botafogo, time em que o atacante brilhou durante oito anos, começou muito cedo na minha vida, mas tarde demais na carreira dele.
Só me lembro de ter acompanhado pelo rádio sua estreia no América do Rio de Janeiro, a última equipe em que atuou, depois de curtas temporadas no Boca Juniors, Vasco da Gama, Junior de Barranquilla e Santos. A partida, que ocorreu em 1951, se revelou um momento de pura poesia trágica na história do futebol brasileiro.
Decadente e consumido pela sífilis, que o levou à loucura, Heleno mal se aguentava em campo. Não dava nenhum sinal de que, um dia, se formara advogado ou frequentara os salões refinados do hotel Copacabana Palace. O América decidira escalá-lo apenas para que não terminasse sua carreira sem ter jogado no Maracanã, seu sonho desde a Copa do Mundo de 1950, para a qual não foi convocado. Naquela tarde, a cidade inteira, sem distinção de torcidas, se despedia do atleta sem alarde, mas com lágrimas nos olhos.

José Henrique também fez seu longa com lágrimas nos olhos, solidário à tragédia da diferença que marcou seu personagem a vida inteira. E com a nobreza de não procurar culpados, carrascos voluntários de Heleno. Os responsáveis pela dor de Heleno, seus parceiros ou não, são todos gentis, se esforçam para entender o que se passa, tentam ajudá-lo mesmo que lhe façam um mal involuntário.
Sua mulher (interpretada pela linda Alinne Moraes), o amigo Alberto, o médico do Botafogo, o pobre enfermeiro do sanatório em Barbacena (MG), onde Heleno morreu, e até o cartola (que distribui o “bicho” aos jogadores pelo esforço feito, mesmo tendo perdido o campeonato) são todos inocentes, incapazes de compreender o desejo da vítima. Ninguém é diferente impunemente, sobretudo num Brasil ingênuo e desastrado como aquele, vivendo ainda as consequências do longo período de escravidão (leia o historiador Joaquim Nabuco), se esforçando para ganhar o mundo e os mundiais.
Ênfase nos sentimentos
Uma das vantagens do cinema sobre a vida é que o cinema pode recorrer a elipses e a vida é toda em um único e linear plano sequência, com vários tempos mortos, sem nenhum interesse. José Henrique usa essas elipses cinematográficas para concentrar seu filme naquilo que realmente interessa, apenas nos momentos fortes da história e de seu personagem. Não importa a cronologia em que as coisas aconteceram – o que o realizador mostra são os afetos do personagem, independentemente de datas.
Para entender o paradoxo de Heleno, precisamos mais da ênfase nos sentimentos do que nos acontecimentos. O futebol que nós comentamos com os amigos depois do jogo nunca é aquele que de fato aconteceu no estádio. São essas emoções, narradas com o coração e não com a memória, que fazem a grandeza do esporte e desse filme. Poucas vezes vimos, no cinema recente, uma interpretação tão pungente e certeira como a de Rodrigo Santoro no papel de Heleno. A única lembrança a que me remete é a de Robert De Niro em Touro Indomável.

Como o atornorte-americano em relação ao boxeador Jake LaMotta, Santoro é capaz de acompanhar os diferentes momentos da vida de Heleno com espantosa mudança de estado de espírito e de forma do corpo, mais do que qualquer maquiagem poderia acrescentar a seu rosto.
A colaborar com esse feito, além da direção de José Henrique, a fotografia em preto e branco de Walter Carvalho é de uma grande imaginação e bom gosto, sem ceder à tentação de reproduzir uma “imagem de época”, quando o que se conta nada tem a ver com isso. Nesse sentido, o filme se comporta com grande delicadeza e pudor, abdicando do apelo tão convencional à imitação de Marc Ferrez e Augusto Malta, os fotógrafos do Rio antigo.
Craque excepcional, homem elegante, bonito, rico e famoso, Heleno de Freitas viveu sua vida num mundo de angústias e insatisfações, um mundo em que o desejo está sempre em conflito com a conveniência. Ele construiu, nos poucos anos de seu apogeu como atleta, um paradoxo que só podia se desenrolar numa equipe alvinegra. Sendo preto e branco, o Botafogo é ao mesmo tempo a ausência e a soma de todas as cores. E o filme de José Henrique Fonseca, a propósito desse herói moderno, dá bem conta de tamanha contradição.
Texto originalmente publicado em 2012 na revista impressa da Bravo!
