Aldeotas, peça de Gero Camilo, ganha as telonas
Ator e dramaturgo leva sua poética história sobre o reencontro de dois amigos de infância que não se veem há mais de 30 anos para o cinema
Sabe quando a vida se cruza com a arte e o artista usa dos elementos da sua realidade para criar uma obra? Com Gero Camilo foi mais ou menos assim. Nascido em Fortaleza, o ator e dramaturgo se mudou para São Paulo aos 17 anos para participar de uma seleção da Escola de Artes Dramáticas, da Universidade de São Paulo (USP). Aprovado, fez da capital paulista seu novo lar, lugar onde mora há 34 anos. Conhecida por ser uma das melhores escolas de formação de atores na América do Sul, a EAD (como é conhecida no meio) tem uma imensa lista de atores e diretores egressos, consagrados, que passa por nomes como Ney Latorraca, Marisa Orth, Isabel Teixeira, entre tantos. Gero também está nessa lista.
Após quatro anos de estudos e trabalhos, ele precisou escolher entre voltar para o Ceará ou ficar em São Paulo. “Estava naquele momento de questionar que lugar de território eu habitaria para colocar em prática tudo que a escola tinha acabado de me dar”, recorda o ator. Em paralelo, a criatividade fervilhava. Antes de se apresentar como ator, Gero já se enxergava um poeta. A escrita o acompanhava há muito tempo, até mais do que a atuação. Naquele momento, não foi diferente. Colocou no papel um de seus mais importantes trabalhos, que o acompanharia durante toda sua jornada profissional.
A peça Aldeotas nasceu de algumas de suas inquietações, uma delas era a dúvida entre ir embora ou ficar em São Paulo. Foram 30 anos viajando o Brasil com o texto, longas turnês que serviram para ele fincar ainda mais os pés na capital paulista. Agora, o texto ganha uma adaptação para o cinema.
O filme começou a ser produzido pouco antes da pandemia. E foi “uma das últimas obras a ser contemplada por um edital da Ancine”, antes dos cortes na cultura, ele faz questão de pontuar. “Se você ler o texto, ele é quase um romance, não parece uma peça de teatro. Eu escrevi Aldeotas pensando numa obra híbrida, que coubesse também no cinema.”
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Vida nova para a obra
Lançado em outubro e exibido na 46º Mostra de Cinema de São Paulo, o filme conta a relação de amizade de dois jovens que cresceram juntos em Coti das Fuças, uma pequena cidade do Ceará – fictícia, diga-se de passagem. O longa mostra as transformações dos jovens da infância à adolescência. Há entre eles uma determinação que define boa parte da tensão desses personagens. Os dois planejam fugir da cidade após a formatura. No entanto, ao fim, apenas o personagem Levi (interpretado por Gero) segue o combinado. Mas, espera, esse não é exatamente um spoiler… Desde o início, o público é avisado sobre esse fato.
Há motivos de sobra para o desejo de ir embora. Durante a juventude, Levi e Elias são estranhos no ninho e desafiam o futuro que aquele ambiente parece preservar para os dois. Desejam viver de arte e de poesia, algo inviável ali. Como consequência, são alvos de bullying e preconceito. Há outras circunstâncias que fazem os dois meninos quererem se distanciar daquela realidade, como violência doméstica e alcoolismo familiar.
Décadas depois da separação, quando os dois completam 50 anos, eles se reencontram num momento inoportuno: no funeral de Elias. É, justamente, nesse ponto que a obra tem início. Dessa reunião, a memória entre os dois é recontada num misto de saudade, arrependimento e reconciliação “É aquele momento em que a gente encontra um amigo 10, 20 anos sem se ver e quando você encontra, em 5 minutos de conversa, já existe uma intimidade de toda uma vida resgatada através do afeto.”
“Se você ler o texto, ele é quase um romance, não parece uma peça de teatro. Eu escrevi Aldeotas pensando numa obra híbrida, que coubesse também no cinema”
Gero Camilo, ator
Seu parceiro de cena, o ator Marat Descartes interpreta Elias. São apenas os dois no palco e atrás das câmeras. Marat se formou na EAD com Gero, numa turma “muito interessante”. A vontade era fazer daquele coletivo um grupo, mas seguiram caminhos distintos. Gero e Marat seguiram juntos. Desde a primeira montagem, foi ele que contracenou com o autor de Aldeotas. Na época, a montagem foi dirigida por Cristiane Paoli Quito, que recebeu por essa obra o Prêmio Shell de melhor direção.
“O Marat tinha um fusquinha na época e a gente ia junto para o Sesc Belenzinho apresentar o espetáculo. A cada volta ficávamos chocados com a resposta do público porque a reação era sempre muito imediata. As pessoas se emocionavam demais e a gente ficava emocionado com elas. Agora, com o filme, fico curioso pra ver se vamos vou conseguir chegar tão forte no coração das pessoas como conseguimos com a peça”, Gero diz.
Ao longo do tempo, Gero teve outros parceiros de cena em Aldeotas. Os atores Caco Ciocler e Victor Mendes também deram vida ao personagem Elias, mas foi o primeiro deles, Marat, que fez a transição com Gero para as telonas.
Lugares de pertencimento
Se Levi decide fugir, Gero Camilo tomou outra direção: “Decidi ficar e encarar São Paulo”. No entanto, não se tratou de abandonar um lugar para permanecer em outro. Até hoje, ele considera ter dois berços. Parte da peça foi escrita durante suas férias em Fortaleza, outra capital onde o ator construiu sua vida e carreira. De lá, ele guarda muito afeto e reconhecimento sobre a importância de sua cidade na sua formação de artista e cidadão.
Gero cresceu no Conjunto Esperança, na periferia de Fortaleza, bairro que sua família ajudou a fundar. “Tenho uma relação muito forte com a minha cidade. Até hoje, embora eu viva em São Paulo há muito tempo, Fortaleza continua muito presente tanto nas minhas obras quanto nas minhas visões de mundo política e estética.” Já o nome do filme faz referência a Aldeota, um bairro rico em Fortaleza, embora não se trate especificamente sobre ele. O que interessava a Gero eram as adjacências daquele território, as outras aldeotas, as menos abastadas. Aldeota significa também pequena aldeia. “Quando coloco no plural, escolho ir para as pequenas aldeias, no entorno desse lugar mais privilegiado e olhar para o que interessa, que são essas essas pequenas aldeias, carregadas de cultura e singularidades.”
As escolhas, explica o ator, “têm como intenção colocar no centro de debate a vida de pessoas que sofrem com a desigualdade e desmistificar uma visão equivocada e preconceituosa sobre aqueles que vivem no interior.” Tudo com conhecimento de causa, já que foi em uma aldeota que nasceu Gero. “Temos muitos preconceitos com relação a pessoas que não vivem nos centros urbanos. Criamos um estereótipo de uma pessoa ignorante. E os protagonistas são inteligentíssimos, sensíveis, que gostam de cultura, gostam de literatura. E que querem ir para o mundo fortalecer essas referências.”
“Quando coloco no plural, escolho ir para as pequenas aldeias, no entorno desse lugar mais privilegiado e olhar para o que interessa”
Gero Camilo, ator
O preconceito regional não foi o único a dar as caras. Há uma cena de um beijo, ou melhor, um selinho entre os dois amigos. Gero recorda que, frequentemente, parte do público reagia com desaprovação: “O público se envolvia muito com os dois personagens. E na hora que o Levi dava um beijo no Elias, várias vezes eu ouvia da plateia alguém fazendo ‘Eca’, ou sons expressando nojo. E eu ficava com raiva daquilo e cada vez que eu sentia essa reação preconceituosa vindo da plateia, mais eu mergulhava, mais eu estapeava a plateia naquele momento. Me lembro de uma apresentação em que eu dei o beijo, e na mesma hora alguém reagiu, aí eu peguei meu parceiro e dei um longo beijo nele. A plateia veio abaixo com aplausos.”
Apesar de ser não ser uma obra que discuta objetivamente a homossexualidade, essa questão acabava se tornando central, sem que essa fosse a vontade de Gero, embora ele seja gay assumido. Na falta de outros lugares para discutir e refletir a diversidade, aquele se tornava um espaço seguro para muitos. “Aldeotas se tornou, durante muitos anos, um espaço aonde essas coisas podiam ser colocadas em cena e sensibilizadas e jogadas para plateia para que ela voltasse para casa e gerisse por conta própria suas memórias e revisitassem seus preconceitos”, afirma. “Lembro, desde o primeiro instante, que muitos jovens me mandavam cartas se assumindo depois que assistiram a peça. Falavam de depressão e de como Aldeotas mudou a vida delas, no sentido de elas poderem se afirmar e poderem falar sobre suas sensibilidades.”
Alem dessas pessoas, Gero queria tocar o coração daqueles que chegavam carregados de preconceitos, mas é impossível estimar os efeitos da troca entre público e os atores. Uma coisa é certa, Gero quer a obra, seja no teatro ou no cinema, continue navegando, quer perder o controle sobre ela: “Não vejo a hora que ela saia das minhas mãos, que eu possa ver outras pessoas dando outras leituras para esse texto.”
Direção: Gero Camilo
Brasil – 2022 – 85 min