A natureza pelos olhos dos Perlimps
Com pinturas feitas à mão e trilha que traz clássicos da música brasileira, animação mostra a saga de dois seres que lutam contra a destruição da floresta
O animador e diretor Alê Abreu é um dos poucos brasileiros a guardar uma indicação ao Oscar. Em 2016, sua obra O Menino e o Mundo integrou a categoria de Melhor Animação pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. A obra trata da viagem de um jovem que, em busca do pai, se depara com um mundo repleto de pobreza.
Neste mês, Alê retorna às salas de cinema com sua mais nova animação, Perlimps, escrito e dirigido por ele. O longa mostra o encontro entre Claé e Bruô. Os dois se apresentam como dois bichinhos e agentes secretos que embarcam numa missão para combater os planos dos gigantes de inundar a floresta em que vivem. Para isso, precisam encontrar os Perlimps, seres míticos mágicos que há muito tempo não são vistos.
O roteiro foi criado de modo a reproduzir a linguagem e a dinâmica infantil. Ao longo da trama, o espectador se confunde com a natureza daqueles dois seres. Seriam crianças vestidas de animais e aquilo tudo não passaria de uma brincadeira? E cria paralelos com contextos que fogem do imaginário fantasioso infantil, como a guerra e a destruição ambiental. Sua estética mescla aspectos da animação digital, como também traz manchas de tinta acrílica feitas à mão por Alê.
O animador conta que sua grande inspiração foi seu filho, João, de seis anos. O menino é também o grande crítico e maior entusiasta do trabalho do pai. Ele acompanhou o processo de criação de Perlimps e, de certo modo, cresceu com a animação. Uma das preocupações de Alê era o filme não dialogar com seu público principal, mas teve a melhor das respostas de João.
Produzido por Laís Bodanzky, Luiz Bolognesi e Ernesto Soto Canny junto à Buriti Filmes, Perlimps também conta com trilha sonora criada por André Hosoi, do grupo Barbatuques. Nós conversamos com Alê Abreu sobre a animação, sobre paternidade e também sobre sua participação como membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Confira:
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Alê, obrigado por conversar conosco. Confesso que, de início, tive um pouco de dificuldade de embarcar nessa viagem da animação. Com a minha cabeça de adulto, fiquei buscando decifrar o que era o Perlimps e qual era a verdadeira natureza da história. Conta um pouco desse processo de criação.
Sempre foi uma questão essa de lidar com a forma do filme. De não pensar só dramaturgicamente, não só pensar numa história, mas principalmente na forma como se relaciona com esse conteúdo. E em Perlimps, eu tinha uma questão principal ali que era ilustrar a infância quase como uma bolha separada do mundo dos adultos, dos gigantes, digamos assim.
Me debrucei muito e fiquei procurando por muito tempo o jeito de melhor representar esse lugar da infância, que na história é essa floresta, é esse bosque, que chamamos de Bosque Encantado. Um dia, encontrei em uma das minhas notas, em cima da minha mesa, uma mancha de tinta acrílica. Olhei para essa mancha e comecei a localizar elementos, tipo um pedaço de uma árvore. Pensei ‘caramba, acho que é isso a infância, é esse lugar perdido numa abstração, num total desconhecido em volta dela’. A infância é um lugar banhado por uma luz de um desconhecido e de uma vontade de ser alguma coisa, de chegar no mundo, muito mais presentes do que em qualquer outro momento da vida. Então, trouxe essa ideia das manchas para a estética do filme.
E em que momento você descobriu que tinha narrativa pronta ali após começar esse caminho visual?
Eu já tinha uma versão do roteiro meio que pronta e, na medida que fui fazer as pranchas-conceitos, que são as imagens que começam a referenciar como será o tratamento artístico do filme, e qual linguagem, quais técnicas que vamos usar, é que fiquei maluco, sem saber como representar esse bosque. Mas quando encontrei a ideia das manchas, elas me orientaram sobre o que seria aquele cenário.
“Me debrucei muito e fiquei procurando por muito tempo o jeito de melhor representar esse lugar da infância, que na história é essa floresta, é esse bosque, que chamamos de Bosque Encantado. Um dia, encontrei em uma das minhas notas, em cima da minha mesa, uma mancha de tinta acrílica. Olhei para essa mancha e comecei a localizar elementos, tipo um pedaço de uma árvore. Pensei ‘caramba, acho que é isso a infância, é esse lugar perdido numa abstração, num total desconhecido em volta dela’.”
Alê Abreu
Fiquei curioso para te perguntar, você é pai?
Sou pai, estou aqui com meu filho, na minha frente, brincando de lagoa no barro.
E ele tem quantos anos?
Ele tem seis anos.
Eu imagino que ele também te ofereceu alguma inspiração na construção dessa narrativa.
Ele é a maior inspiração de toda a minha vida. Você é pai, Humberto?
Não, não sou.
Eu não imaginava que seria tão legal [ser pai]. É surpreendente o que você descobre sobre si mesmo. O João chegou no momento que eu já tinha a história do Perlimps, quase no começo da produção.
É engraçado porque ele sempre me viu desenhar Perlimps e pintar muito o bosque. Tudo que ele via eu fazendo no computador era desenhar arvorezinhas. E aí ele dizia ‘pô, pai, você só sabe desenhar árvore?’. Ele foi o primeiro a assistir ao filme. Mão conhecia nada a respeito, além das imagens. E esse foi o teste para mim quando terminei o primeiro corte.
Fizemos pipoca e eu coloquei ele para assistir ao filme. A minha dúvida maior era se uma criança compreenderia essa história, porque ela tem muitas camadas. Então, no fim, eu perguntei para ele sobre o que era história, ele falou que era sobre dois agentes secretos procurando os Perlimps para salvar o mundo.
Eu perguntei: ‘e onde que estavam os Perlimps?’ Aí ele bateu no peito e falou ‘aqui’. Puxa, não precisava compreender mais nada do filme. É isso. Eu sou muito feliz em ter o João comigo nesse momento tão legal na minha vida.
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Ele cresceu com o projeto. Isso é muito bonito.
Cresceu vendo o pai desenhando todos os dias. Ele é desenhista também, desenha todos os dias comigo. E desenha super bem, melhor do que eu, mas não fico forçando ele a nada, é algo natural. Desenhar para ele é como comer uma bolacha na frente da televisão. É como uma brincadeira e é assim que tem que ser.
Se ele não tivesse entendido ou gostado da animação, você estaria disposto a fazer alguma alteração?
Olha, eu não sei te responder. Acho que pegaria bastante forte em mim. Porque o tempo todo que fiz essa história foi pensando nele. Quando ele chegou, eu falei ‘poxa, o João vai estar com cinco, seis anos quando eu terminar o filme, ele vai ser o principal público’. E com cinco anos ele entendeu. Isso tirou um peso de uma tonelada das minhas costas.
Muitos adultos, principalmente, acabam tendo um pouco de dificuldade de compreender, talvez pela linguagem ser tão aberta e quase como uma brincadeira de criança, meio sem sentido às vezes. E era para ter sido ainda mais, sabe? Mas como é um filme muito de produtores, com Globo Filmes envolvida, com Sony, e com os meus produtores. Eles me botaram num trilho de fazer um filme mais pé no chão. E que bom que isso aconteceu, porque assim o filme se torna mais palatável.
A brincadeira da criança é surrealista por natureza. E a estética dessa brincadeira é que povoa o filme todo. Então era muito mais aberto, mas conseguimos encontrar um lugar no meio do caminho, de ser um filme assim, com essa doideira da viagem quase psicodélica das crianças brincando e uma história com uma metáfora, com um caminho de arte, que diz alguma coisa do mundo, mas está lá no seu lugar de metáfora escondida numa segunda leitura. É cheio de poesia.
Você comentou que seu filho tem o hábito de desenhar com você. Você também era assim na sua infância?
Eu era muito parecido com João, só que ele desenha mais do que eu e melhor. Eu morei com a minha avó a partir dos cinco anos e tenho essa referência lá atrás de eu sentado na mesinha da sala, com ela, e já dizendo que seria desenhista quando crescesse. Então é um sonho que eu trago que eu nem sei localizar quando nasceu.
E quais eram suas referências e suas inspirações? O que te colocou nesse caminho?
Acho que naquela época era, principalmente, Maurício de Sousa. Até hoje, ele é uma grande referência para as crianças.
“Muitos adultos, principalmente, acabam tendo um pouco de dificuldade de compreender, talvez pela linguagem ser tão aberta e quase como uma brincadeira de criança, meio sem sentido às vezes. E era para ter sido ainda mais, sabe? Mas como é um filme muito de produtores, com Globo Filmes envolvida, com Sony, e com os meus produtores. Eles me botaram num trilho de fazer um filme mais pé no chão. E que bom que isso aconteceu, porque assim o filme se torna mais palatável”
Alê Abreu
Acabei não perguntando, mas como nasceu o projeto dos Perlimps?
Estava terminando a montagem de O Menino e o Mundo e já tinha algumas anotações do que seria meu próximo projeto, que se chamava Viajantes do Bosque Encantado. Tenho o hábito de ir colecionando num plástico qualquer ideia que eu tenha, sobre personagem, uma cena, uma frase ou um dito desses de crianças. Anoto tudo. É uma tarefa diária. Todo dia tenho alguma nota que vai para algum dos plásticos. E as histórias vão se misturando, vão se permeando.
Eu tinha um desses plásticos, eu abri e vi que ali tinha uma história. Fui para o interior de São Paulo só para abrir essas notas, espalhei tudo pelo chão do quarto e fui separando o que era roteiro, anotação de diálogo, estrutura da história, indicação de arte, personagens. E saí de lá com uma folha de anotações do que seria a animação. Ainda era quase um argumento, não dava para enxergar uma história tão bem ali. Lembro que o filme partiu dali.
E de onde veio o nome Perlimps?
A coisa mais comum que eu vejo acontecer, nos filmes que fiz, é essa alteração do título no meio do processo de produção. O filme vai se transformando tanto que o título inicial já não cabe mais. Quando chegou num determinado momento, eu disse aos produtores que não cabia mais aquele título, que precisava ser algo mais forte, que fosse os nomes dessas criaturas que as crianças estavam procurando. Então o Luiz Bolognesi falou: ‘Podia ser uma coisa meio Gremlin, Pirilampo, Perlimps’. E na hora, o título virou Perlimps.
E para você, o que são os Perlimps?
Olha… a criança tem uma crença absurda, ela entende de utopia mais do que qualquer outra pessoa. Ela nasce entendendo de utopia e depois isso se perde. Ela acredita que tudo é possível, ela enxerga com muita clareza a possibilidade de novos mundos. Isso traz uma esperança que é imbatível. Acho que é essa luz que fica guardada conosco em algum lugar até o momento em que a gente cresce e vira gigante, como é na linguagem de Perlimps, que pode se acender se soubermos nos conectar com elas nos momentos mais difíceis. Acho que quem acredita que as coisas podem mudar, mesmo sendo adulto, de que outro mundo é possível, é uma criança falando de dentro da gente.
Com isso você dialoga com a realidade do mundo, como a emergência climática, a destruição da Amazônia. Você discute sobre essas questões com crianças…
Acho que se me pedissem para fazer isso, eu não saberia como. É uma resposta involuntária, na intenção de falar sobre esses assuntos com as crianças. Eu penso nelas quase como por um filtro inconsciente e elas voltam como expressão artística.
Gostaria de perguntar sobre a sua indicação ao Oscar em 2016. Foram poucos brasileiros que tiveram essa experiência. Como ela te afetou? Isso teve um impacto na forma como você trabalha e na sua carreira?
Acho que sim. Não tem como, é uma coisa muito forte. E foi muito inesperada. O Menino e o Mundo chegou como um filme estranho no mundo da animação, um filme muito diferente. Eu comecei a fazer sem ter um roteiro, de uma forma muito livre, com uma estética que dialogava com o desenho da criança. Era fora da caixinha do mercado e do próprio mundo da animação independente. Mas era um filme que eu acreditava e quando aconteceu a indicação, me senti aliviado. Quando vem esse carimbo da indicação e dos outros prêmios que recebemos, foi quase uma mensagem de ‘vai que esse é o caminho’. Me deu segurança para fazer do jeito que eu acredito sem cair na armadilha de fazer aquilo que eu acho que esperam de mim. Em geral, a arte toda é embebida nessa crença.
A resposta está sempre dentro do artista. E inclusive a resposta para o que é fazer animação em nosso país. A arte precisa ser uma resposta a isso.
“A criança tem uma crença absurda, ela entende de utopia mais do que qualquer outra pessoa. Ela nasce entendendo de utopia e depois isso se perde. Ela acredita que tudo é possível, ela enxerga com muita clareza a possibilidade de novos mundos. Isso traz uma esperança que é imbatível. Acho que é essa luz que fica guardada conosco em algum lugar até o momento em que a gente cresce e vira gigante, como é na linguagem de Perlimps, que pode se acender se soubermos nos conectar com elas nos momentos mais difíceis”
Alê Abreu
E agora você faz parte da Academia, certo? Qual é a sua expectativa para a premiação desse ano?
Nós tivemos a oportunidade entrar com campanha por essa animação nesse ano, mas decidimos esperar 2024. Esse ano está extremamente concorrido, eu não lembro de um ano que fosse assim. Tanto de filmes de estúdio, quanto independentes. Eu não saberia dar um palpite. Nesse ano eu foquei mais em curtas, tanto de ficção, quanto de animação. Acho que eles estavam menos concorridos do que nos outros anos. Não temos curtas de Disney e Pixar.
A própria Academia disponibiliza os títulos para vocês?
Sim, temos uma plataforma que você loga o seu número de membro e lá você tem acesso a todas as áreas. Hoje em dia, tudo é feito por essa área. Quando eu entrei, não era assim. Eles mandavam por correio. Chegavam mais de 200 DVDS na minha casa. Era um terror, o tempo todo chegando DVD. De repente, pouco tempo depois, virou tudo digital. Nesse ano tinha 200 longas para assistir. Eu devo ter assistido a uns 30 no máximo. É muito difícil acompanhar tudo. Do momento que eles disponibilizam até o prêmio, você teria que assistir dois longas e um curta por dia.
E você vota em quais categorias?
Eu voto em melhor longa, melhor curta documental, melhor curta de ficção e melhor curta de animação. Eles dividem por setores. Acho que todos votam no melhor filme e o setor de animação vota em melhor longa de animação e nos curtas.
Direção: Alê Abreu
Brasil – 2023 – 1h20min