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Sob as lentes de Cristiano Burlan

Diretor de “A Mãe” vai à Mostra de Cinema de Ouro Preto mostrar documentários sobre o diretor de teatro Antunes Filho e o educador Paulo Freire

Por Artur Tavares
Atualizado em 12 jul 2023, 12h21 - Publicado em 12 jul 2023, 11h46

Autor de produção cinematográfica impressionante, tendo feito mais de dez longas-metragens na última década, Cristiano Burlan esteve na 18ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto mostrando dois trabalhos autorais muito interessantes: Antunes Filho – Do Coração para o Olho, um documentário sobre o diretor teatral Antunes Filho, e sua série de médias sobre Paulo Freire, exibida na íntegra.

Diretor da ficção A Mãe, pré-selecionado para representar o Brasil no Oscar neste ano, Burlan já havia mostrado o filme sobre Antunes Filho em uma ocasião, durante o festival É Tudo Verdade deste ano. Não se trata de uma biografia, ele explica, e sim “um olhar de Antunes sobre a arte.”

Personagem mítico do teatro brasileiro, responsável por adaptações como a de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, para a televisão, Antunes era reconhecido por sua rigorosidade e seu temperamento nada convencional. Para Burlan, isso dificultou sua transição para o cinema: “Ele tentou aplicar o rigor que tinha, o domínio do ofício, o controle e a mão de ferro [que tinha no teatro] dentro de um set, e saiu abalado dessa experiência.”

Já a série de média-metragens sobre Paulo Freire não é nova, mas teve lugar de destaque na Mostra Educação da CineOP. Lançada em 2019, Paulo Freire, Um Homem do Mundo é uma produção da SescTV, que hospeda e disponibiliza online gratuitamente os cinco episódios, cada um com uma hora, dedicados a aspectos da biografia do educador brasileiro, como A Pedagogia do Oprimido e as 40 Horas de Angicos.

Cena do filme Antunes Filho.
Antunes Filho | Do Coração para o Olho (Cristiano Burlan/arquivo)

Aliás, vale notar que a figura de Paulo Freire foi bastante presente em diversos momentos da CineOP, das falas de abertura e encerramento, que fizeram questão de ressaltar o uso do audiovisual como ferramenta libertadora do pensamento, até as novas direções das políticas públicas apresentadas por Joelma Gonzaga e Denise Pires de Carvalho, secretárias do Ministério da Cultura e da Educação, respectivamente.

Nós conversamos com Cristiano Burlan, e também com seu produtor Ivan Melo, sobre a importância destes dois documentários.

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Você é um diretor que está sempre transitando entre a ficção e a não-ficção. Depois de A Mãe, pré-selecionado para ir ao Oscar no ano passado, como foi a decisão de fazer um documentário sobre Antunes Filho?
Cristiano Burlan: Eu venho do teatro, e sou frequentador de cineclubes desde os 16 anos. E nesses lugares sempre me encontrei com o Antunes. Na verdade, já conhecia a história de vida dele de antes, tive contato com seu único filme, Compasso de Espera, assistia a seus teleteatros na TV Cultura.

Antunes dirigiu 16 teleteatros na TV Cultura, além de ter feito trabalhos similares anteriores na TV Tupi. Esse material da Tupi está perdido, mas os da Cultura são pequenas pérolas do audiovisual brasileiro, um material pouco conhecido.

Então, na verdade, o documentário parte de um interesse de trazer uma perspectiva sobre esse… Que, para mim, é um diretor de cinema, que tentou fazer um segundo filme e não conseguiu. E, nesse entremeio, ele revolucionou a estética do teatro paulista brasileiro.

Cristiano Burlan na mostra de cinema de Ouro Preto, CINEOP.
(Leo Fontes | Universo Produção/divulgação)

Quem é mais jovem talvez pense que teleteatro seja algo parecido como o programa Sai de Baixo
Ivan Melo: Não é a mesma coisa, eram mais telefilmes. Na TV cultura, era dramaturgia, cinema que ele fez na TV. Mas ele produziu também esse tipo de teleteatro na TV Tupi.

Um formato perdido hoje em dia, né?
Cristiano: No final dos anos 2000, ele foi convidado pela TV Cultura para coordenar um novo teleteatro, mas o projeto acabou não vingando, ficando no limbo. Essas peças no cenário fazem parte da história da dramaturgia brasileira, só que o Antunes não filmava um palco, ele não fazia uma filmagem de 180 graus. Ele adaptou obras de dramaturgia para o cinema, feitas na TV.

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“O documentário parte de um interesse de trazer uma perspectiva sobre esse… Que, para mim, é um diretor de cinema, que tentou fazer um segundo filme e não conseguiu. E, nesse entremeio, ele revolucionou a estética do teatro paulista brasileiro”

Cristiano Burlan
Still do filme
Antes do Fim (2017) (Cristiano Burlan/arquivo)

E você adaptou Shakespeare para o cinema.
Cristiano: Sim, Hamlet. Apanhei, foi um pequeno delito que cometi [risos].

Por que você considera um pequeno delito?
Cristiano: Porque a grande adaptação brasileira de Shakespeare para o cinema brasileiro é A Herança, feito por Ozualdo Candeias.

Mas os teleteatros do Antunes realmente são espetáculos de teatro adaptados para TV. É um formato muito rápido, eles filmavam depressa e com pouquíssimo dinheiro. Juntavam uma equipe de atores, as locações e filmava.

Ivan: Adhemar Guerra, Augusto Boal, Antônio Abujamra fizeram teleteatro, mas é completamente diferente.

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E como vocês construíram essa história?
Cristiano: Tínhamos esse material da TV Cultura à disposição, porque o Sesc TV, que financiou o filme, tem um acordo com o acervo da emissora. Além disso, o próprio Sesc também tem todo o acervo do Antunes.

Ivan: A ideia era falar desse cara que adorava cinema e que fez cinema. Ele era viciado! Quem não o conheceu não faz ideia do quanto ele gostava de cinema. No CPT (Centro de Pesquisa Teatral), ele tinha uma filmoteca de uns 7 mil filmes. Quando eu trabalhava na Mostra de São Paulo, ele ganhava a credencial e assistia, sei lá, uns 50 filmes por ano. Então, o Cris queria falar sobre esse cara, sobre o olhar dele sobre o teatro e sobre o cinema.

Cristiano Burlan na mostra de cinema de Ouro Preto, CINEOP.
(Leo Fontes | Universo Produção/divulgação)

Cristiano: É uma coisa engraçada. No filme ele alterna, em um momento gosta mais de cinema, em outros, de teatro. E devia ser muito difícil para um cara como o Antunes, que era diretor de teatro, que tinha o controle total da situação no palco, fazer cinema. Eu acredito que ele não continuou fazendo filmes por isso, entende?

O Jorge Bodanzky conta da relação tempestuosa que teve com Antunes Filho quando foi convidado para fazer a fotografia de Compasso de Espera, por causa dessa história de querer ter controle de tudo. Em uma cena pede para o Bodansky ligar o refletor no máximo, e isso quase coloca fogo no set inteiro.

Ele tentou aplicar o rigor que tinha, o domínio do ofício, o controle e a mão de ferro dentro de um set de cinema. Não funcionou, e ele também saiu um pouco abalado dessa experiência.

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Ivan: O que mais gosto na montagem do nosso filme é que o espectador chega muito perto do Antunes como criador. Porque ele fala sobre várias coisas, principalmente sobre arte, mas também do cinema como esse lugar que ele gostaria de estar. É como se ele estivesse em um nível de quem gosta de fazer arte.

Cristiano: Acho o filme bem delicado, bonito, com esse olhar do Antunes sobre a arte. Só tem duas cenas de teatro, dois momentos muito curtos. Uma é de Paraíso Zona Norte, com Flávia Pucci, uma cena extremamente cinematográfica. Ela sai do fundo, vem próxima da câmera. E a outra que eu filmei durante o Mirada [o Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas].

É um filme principalmente de montagem, então todas as outras imagens do filme são entrevistas da TV Cultura ou da TV Sesc, além do filme dele.

Still do documentário
Documentário “A Formação do Pensamento” (2019) (Cristiano Burlan/arquivo)

“A ideia era falar desse cara que adorava cinema e que fez cinema. Ele era viciado! Quem não o conheceu não faz ideia do quanto ele gostava de cinema”

Ivan Melo

Você foi montando o filme enquanto gravava outros?
Cristiano: Na verdade, fizemos dois filmes: um média metragem só com entrevistas, chamado Conversas sobre Antunes Filho, e este. O projeto demorou para ser aprovado, uns dois anos, e a montagem levou mais um.

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Por que não juntar as duas coisas?
Ivan: Eu fiz a mesma pergunta…

Cristiano: As entrevistas acabam justificando as coisas, né? No filme, ele está sozinho. Não dependemos do Antunes, nem de seu olhar. Só estamos mostrando como ele vê cinema, tentando entender da mise-en-scène dele, que vem do cinema, mas que ele usa no teatro. Se as entrevistas estivessem ali, a pessoa seria colocada em uma caixa, ficaria chapa branca. Já quando você põe a pessoa falando sobre ela e seu trabalho, a contradição aparece, a subjetividade também.

E o que te intrigou a gravar Paulo Freire?
Cristiano: Assim, eu não sou especialista em Paulo Freire. Como boa parte dos brasileiros que não são alfabetos políticos, sei da importância dele para a educação, e das questões que a transcendem. Eu tinha lido Pedagogia do Oprimido, Cartas a Cristina e outras coisas, mas o que eu sabia era muito superficial. Então, foi curiosidade mesmo, porque também não queria fazer uma biografia tradicional.

Cristiano Burlan na mostra de cinema de Ouro Preto, CINEOP.
(Leo Fontes | Universo Produção/divulgação)

A série saiu em 2019. A curiosidade foi aguçada pelo momento político?
Cristiano: Acho que pelo momento político, mas também por uma certa… Quando percebo um discurso comum sobre uma figura e é um discurso único, passo a me interessar em encontrar outra perspectiva sobre a figura.

E, esses discursos são até de uma certa ignorância. Eu fiz a série, e é um dos trabalhos audiovisuais mais vistos da TV. É gratuito, você só precisa dar play. Foi feito para essas pessoas que, assim como eu, também conheciam pouco sobre ele.

A série tem uma linguagem convencional. Quis fazer assim mesmo, com um certo didatismo. Porque eu acho que o cinema perdeu essa capacidade. E, por isso, gosto aqui da CineOP, porque se discute educação através do cinema.

Still do filme
Depois da Farsa (2019) (Cristiano Burlan/arquivo)

Você acha que essa série tem vida nova agora que Paulo Freire passa a ser observado além da demonização tradicional?
Cristiano: Ele ainda é demonizado. Foi pouco o que me chamaram de comunista viado na internet. Porque Paulo Freire falava sobre a política da educação antes de mais nada, ele não era só um pedagogo.

Tem duas pessoas cujos nomes abrem portas lá no exterior, na academia e em um pensamento mais elaborado, não-convencional, que são Augusto Boal e Paulo Freire. É uma linguagem universal. O que Paulo Freire fez na África, na Itália, como isso ramificou além da educação, em termos políticos, sociais, estéticos e narrativos. O pensamento dele é muito amplo.

Quando João Goulart vai formar a primeira turma em Angicos, o Castelo Branco estava lá. Ao final do evento, o general vai até ele e diz: “Senhor Paulo Freire, o senhor está criando serpentes no sertão.” Alguns meses depois vem o golpe, e a segunda ação dos militares é enfrentar Paulo Freire. Ele sai daqui e vai para a Bolívia. Golpe. Vai para o Chile, golpe. Então vai para Harvard e depois Genebra, mas sempre em uma situação muito frágil, delicada e diplomática.

Cristiano Burlan na mostra de cinema de Ouro Preto, CINEOP.
(Leo Fontes | Universo Produção/divulgação)

“Eu adoraria que o cinema e o audiovisual tivessem esse efeito, mas não têm mais. Isso aqui é uma bolha, né? É meia dúzia de gente. Mas adoraria que acontecesse, adoraria levar porrada no supermercado como acontece com quem faz vilão de novela”

Cristiano Burlan

Falando daquilo que você ouviu por causa da série, também houveram ameaças?
Cristiano: Não, porque os trabalhos que faço nunca tiveram tanta visibilidade. Eu adoraria, queria estar naquela lista do Constantino. Fiquei muito frustrado não me colocarem. Imagina, a coisa mais cafona do mundo é falar que você é subversivo, ou que o comunismo é isso. [risos] É de uma ignorância tremenda.

E, eu adoraria que o cinema e o audiovisual tivessem esse efeito, mas não têm mais. [Ele olha ao redor] Isso aqui é uma bolha, né? É meia dúzia de gente. Mas adoraria que acontecesse, adoraria levar porrada no supermercado como acontece com quem faz vilão de novela.

Acho que o Brasil Paralelo usa imagens do meu filme. E aí eu falei, olha, vocês podem até usar, me pedir. Mas o que estão contando aqui é errado. Não é sobre a arte, é simbólico. Mas não vou ficar respondendo, porque essas pessoas nem vão onde nós estamos. Não vão ao cinema, ao teatro.

Still do documentário
Documentário “O Mundo Não É, Está Sendo” (2019). (Cristiano Burlan/arquivo)

Quando voltei de Angicos, da gravação que fiz lá, fui entrevistar a Luiza Erundina. Postei uma foto com ela, e uma das personagens de Angicos me escreve: “Senhor Cristiano Burlan, o senhor e sua turma de comunistas não são bem-vindos em Angicos, porque aqui somos todos Bolsonaro.”

É um absurdo! Na cidade tem uma universidade pública de pedagogia, é um pólo de educação no interior do Rio Grande do Norte. Esse lugar onde Paulo Freire, em 1964, aplicou um projeto revolucionário, teve 78% da população votando em Bolsonaro.

O que a ditadura percebeu foi que 400 adultos alfabetizados em 40 horas torna-se um novo feudo eleitoral. Pessoas que não votavam, de repente, começam a votar. 50% da população. Isso mexe politicamente.

…Essa sua camiseta do Juventus da Mooca é fenomenal…

Cristiano Burlan na mostra de cinema de Ouro Preto, CINEOP.
(Leo Fontes | Universo Produção/divulgação)

[Risos] Pior que eu torço pra Portuguesa.
Cristiano: É mesmo? Eu joguei no juvenil da Portuguesa! Joguei contra o Dener no terrão, contra o Zé Roberto. Só não fui profissional porque o Corinthians não me quis. Aí me aposentei. [risos]

Ivan: Era ruim pra caralho! [risos]

Cristiano: Você nunca me viu jogar! [risos]

Obrigado, pessoal!

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