“Baby”: filme de Marcelo Caetano fala de famílias formadas pela rejeição
Longa premiado no Festival do Rio narra a história de Wellington, um jovem gay afastado dos pais, que encontra uma nova família com Ronaldo

Nessa altura, já ficou mais do que claro que 2024 foi um ano especial para o cinema brasileiro. Diversas produções se destacaram em festivais internacionais, conquistaram plateias e até alguns prêmios. O exemplo mais notável é a obra de Walter Salles, Ainda Estou Aqui, que caminha para uma indicação (ou mais) ao Oscar. O cinema queer brasileiro não ficou atrás nessa onda de reconhecimento. Um dos lançamentos mais aguardados do ano é o filme de Marcelo Caetano, Baby, que estreia nesta quinta-feira nos cinemas brasileiros.
O enredo acompanha Wellington (João Pedro Mariano), um jovem que, após passar dois anos internado na Fundação Casa, finalmente conquista a liberdade. Sem dinheiro e sem contato com a família, ele precisa aprender a sobreviver nas ruas de São Paulo. Nesse cenário, ele conhece Ronaldo (Ricardo Teodoro), um homem mais velho que trabalha como garoto de programa e faz bicos vendendo drogas. O que começa como uma relação de proteção se transforma em um romance, desencadeando conflitos e transformações em ambos os personagens.
Um dos grandes dramas do enredo é o desejo e busca de Wellington em retomar o contato com a sua mãe, que parece evitá-lo desde que ele foi internado na Fundação Casa. O elenco também conta com as atrizes Ana Flavia Cavalcanti e Bruna Linzmeyer, que formam uma espécie de família estendida para Wellington. Ana Flávia interpreta Priscila, amiga e mãe de Allan, filho de Ronaldo. Enquanto Bruna Linzmeyer vive Jana, a companheira de Priscila.
Marcelo Caetano explica que a trama nasceu de uma investigação sobre diferentes narrativas que refletem as múltiplas configurações das famílias brasileiras, especialmente considerando pessoas LGBTQIAPN+, que muitas vezes enfrentam rejeição de seus parentes consanguíneos.

“O que é, afinal, a família brasileira? É aquela estrutura tradicional com pai, mãe e filhos dentro de uma lógica religiosa e biológica? Ou é a família do pai ausente? Ou ainda, podem existir outros tipos de famílias? Nos meus filmes, tento discutir essas questões: o que caracteriza esses vínculos afetivos e econômicos que formam as famílias? Baby faz parte desse conjunto de questões que venho abordando há algum tempo. Grande parte das pessoas que chegam a São Paulo passam pelo centro da cidade, e o centro é um personagem muito forte”, reflete o diretor.
Todo processo de filmagem aconteceu muito rapidamente. A produção começou já em 2023. Além de abordar a relação entre os dois protagonistas, o filme explora o confronto de experiências entre eles. Apesar de sua juventude, Wellington traz uma vivacidade e curiosidade pela vida, além de certa malícia, que faltam em Ronaldo. Por outro lado, Ronaldo oferece uma perspectiva de mundo mais madura e pragmática. A assimetria geracional não impede que ambos aprendam e se transformem através do vínculo que vão construindo aos poucos.
Antes de sua estreia oficial, o longa percorreu um circuito de 50 festivais, incluindo a Semana de Crítica de Cannes, uma seção paralela do Festival de Cannes organizada pelo Sindicato Francês da Crítica de Cinema. Na ocasião, o filme conquistou o prêmio de Melhor Ator Revelação para Ricardo Teodoro. No Festival do Rio, Baby venceu os troféus Redentor de Melhor Filme e Melhor Ator, concedido a João Pedro Mariano.
Para alcançar uma representação autêntica, João Pedro Mariano passou por um intenso laboratório, que incluiu visitas à Fundação Casa e até mesmo saunas. “Foi um lugar onde eu entendi o contexto em que eles estavam inseridos e para onde poderiam ir depois de sair de lá. Esse corpo que eu construí, desde o tempo na Fundação Casa até o momento em que eles saem, foi muito influenciado por toda essa pesquisa. Além disso, também fiz pesquisas com profissionais do sexo. Fui a saunas, locais de prostituição, conversei com essa galera, o que me deu uma outra perspectiva”, compartilha o ator.
Ricardo Teodoro, por sua vez, enfrentou o desafio de interpretar um personagem completamente diferente de seus papéis anteriores. “Sou um cara com mais de 1,90m, negro, então, ou é policial, ou é bandido, aquela coisa toda que o audiovisual tende a te colocar em caixas, né? E aquele personagem, de alguma forma, conseguia mostrar as minhas facetas como ator, as minhas possibilidades e o temor disso também. Mas, ao mesmo tempo, foi uma construção feita com muitos ensaios, muita pesquisa, e nós três amamos a sala de ensaio”, explica Teodoro.
Embora o drama inicial se foque na jornada de Wellington, o filme também se aprofunda nas ausências emocionais de Ronaldo, que demonstra carregar sua própria carência afetiva, consumido pela necessidade diária de sobrevivência.
Mesmo abordando questões difíceis, o longa mantém uma abordagem suave na maior parte da narrativa, preservando os aspectos positivos de seus personagens, que são profundamente imperfeitos e, em vários momentos, hesitam em seus objetivos e até mesmo em suas conexões uns com os outros, como acontece em uma família em construção. Ainda assim, há genuinidade na forma como se relacionam e cuidam um do outro.
“Acho que há um grande aprendizado por parte do Ronaldo, que é uma certa humildade em reconhecer o próprio limite como esse homem que seria o provedor masculino. E, ao mesmo tempo, esse garoto entende que precisará construir sua própria família, talvez distante de sua família biológica e da família que o Ronaldo tentou construir para ele.”, explica Marcelo Caetano.
A dinâmica entre os personagens revela suas complexidades individuais. Além disso, ela demonstra a intenção do diretor de explorar camadas mais profundas, como os dilemas e propósitos de cada um.
“Cinema, para mim, é como a construção do corpo: de dentro para fora. Primeiro, você tem o coração, o sentimento que quer transmitir. Depois, faz o esqueleto, que é o roteiro, montando os ossinhos da história. Em seguida, os atores entram e colocam a carne, trazendo vida aos personagens. Por fim, vem a pele, que é a camada superficial composta pela equipe de arte, fotografia e tudo mais, que dá o acabamento visual ao filme, à superfície dos espaços e das cenas”, conclui o diretor.