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“Bolero, A Melodia Eterna” descortina criação da icônica composição de Maurice Ravel

Confira o bastidores do longa em entrevista exclusiva com o ator Raphaël Personnaz, que interpreta o personagem principal

Por Ana Claudia Paixão
15 nov 2024, 09h00
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Boléro, filme de Anne Fontaine, com Raphaël Personnaz (Ravel), Doria Tillier (Misia), Jeanne Balibar (Ida Rubinstein), Emmanuelle Devos (Marguerite Long), Vincent Pérez (CIPA), Anne Alvaro (la mère de Ravel), Sophie Guillemin (Mme Revelot), Alexandre Tharaud (Lalo) - Christophe Beaucarne DOP (Pascal-Chantier/divulgação)
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Para a grande parte da população mundial, se ouvir o nome “Ravel” imediatamente vai responder “Bolero”, tamanha a popularidade da música que Maurice Ravel criou em 1928 e que ainda hoje, 96 anos depois, é uma das mais executadas em todo planeta.

No entanto, isso praticamente reduz a obra de um dos mais inovadores e brilhantes compositores do século 20 a uma peça única de 17 minutos e é, sem nenhum exagero, injusto com ele. Reconhecendo esse fato, a diretora Anne Fontaine dedicou um filme inteiro ao processo de criação do famoso “Bolero de Ravel” paradoxalmente para nos apresentar a vida e a obra de um dos artistas mais misteriosos e polêmicos das últimas décadas. O filme “Bolero, A Melodia Eterna” foi um dos títulos de abertura do Festival Varilux, e contou com a presença do ator principal, Raphaël Personnaz, com quem conversei exclusivamente para Bravo!.

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Boléro, filme de Anne Fontaine, com Raphaël Personnaz (Ravel), Dora Tillier (Misia), Jeanne Balibar (Ida Rubinstein), Emmanuelle Devos (Marguerite Long), Vincent Pérez (CIPA), Anne Alvaro (la mère de Ravel), Sophie Guillemin (Mme Revelot), Alexandre Tharaud (Lalo) – Christophe Beaucarne DOP (Pascal-Chantier/divulgação)

A música específica do Bolero foi criada para um balé (mais sobre isso à frente), mas está ligada diretamente ao cinema. A coreografia de Maurice Béjart foi usada de forma fantástica por Claude Lelouch em 1981, no filme Retratos da Vida (Les Uns et Les Autres), mas a ligação melódica e rítmica sensual também são remetidos à atriz Bo Derek, primeiro com a comédia romântica Mulher Nota 10, de 1979, com Dudley Moore e Julie Andrews, assim como o filme “Bolero”, estrelado por ela nos anos 1980s, e que é mais um pornô soft que nada tem a ver com a música de Ravel. Não, como poucos sabem a história original da música ou do compositor, o filme “Bolero, A Melodia Eterna” finalmente preenche essa lacuna.

A trama não é contada de forma linear, o que é uma boa metáfora para a música de Ravel. O filme começa em 1928, quando a dançarina Ida Rubinstein (maravilhosamente interpretada Jeanne Balibar, que vimos na série Franklin, da Apple TV Plus) encomendou uma peça exclusiva para seu novo balé. O problema é que Maurice Ravel (Personnaz), um homem extremamente reservado, complexo e dedicado à música, está passando por um momento de crise de inspiração. No processo criativo, ele revisita momentos traumáticos e marcantes de sua vida, incluindo uma relação única com sua musa, Misia Sert (Dora Tillier) e finalmente compõe a obra que veio a ser a sua mais popular: Bolero.

Devo aproveitar para confessar que gosto de “Bolero de Ravel”, mas a minha obra favorita dele ainda é e sempre será Pavane Pour Une Infante Défunte, que toca apenas rapidamente. Há, como Raphäel nos conta no papo a seguir, liberdades poéticas e românticas sobre a vida de Ravel, mas ter rodado cenas na própria casa do compositor (sim, usam o piano verdadeiro onde ele escrevia sua música), traz autenticidade e emoção para a história. Na época em que desenrola o filme, Maurice Ravel era considerado internacionalmente o maior compositor vivo da França e perceber como se criam lendas é sempre muito interessante.

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Boléro, filme de Anne Fontaine, com Raphaël Personnaz (Ravel), Doria Tillier (Misia), Jeanne Balibar (Ida Rubinstein), Emmanuelle Devos (Marguerite Long), Vincent Pérez (CIPA), Anne Alvaro (la mère de Ravel), Sophie Guillemin (Mme Revelot), Alexandre Tharaud (Lalo) – Christophe Beaucarne DOP (Pascal-Chantier/divulgação)

Quem foi Maurice Ravel e o que o fez famoso?

Nascido em 1875 e falecido em 1937, aos 62 anos, Maurice Ravel é conhecido por composições que combinam harmonias inovadoras, ritmos complexos e orquestrações detalhadas, explorando cores e texturas musicais que deixaram um grande impacto na música clássica do século 20. Sua família era de origem basca do lado de sua mãe, com seu pai sendo um engenheiro, inventor e fabricante educado e bem-sucedido. Maurice era extremamente próximo de sua mãe, Mari, que o encorajava em sua paixão pela música e marcou muito com sua herança basco-espanhola, cantando canções folclóricas desde pequeno.

Dos dois filhos, Maurice sendo o mais velho, ele foi o único a seguir com estudos musicais, mas sua originalidade não era bem vista pelos conservadores que comandavam o Conservatório de Paris. Ao longo do tempo, ele incorporou elementos do modernismo, barroco, neoclassicismo e até jazz nas suas composições, nem sempre sendo imediatamente elogiado por isso. Ele nunca foi considerado prodígio, ao contrário, sua biografia deixa claro que sempre foi lento e meticuloso, por isso tem um acervo bem menor quando comparado aos seus contemporâneos como Claude Debussy. Ficaram peças para piano, música de câmara, dois concertos para piano, música de balé, duas óperas e oito ciclos de canções. Suas obras em geral são tocadas ou inteiramente no piano ou orquestradas e consideradas extremamente difíceis de serem tocadas.

Ele ficou mais famoso por seu Bolero, uma peça hipnotizante e repetitiva que mesmo com uma estrutura simples, é monumental por causa das variações de timbre e orquestração. Essa obra, assim como muitas outras composições dele, reflete a habilidade incomum de Ravel para criar atmosferas e evocar emoções com simplicidade e elegância. A importância de Ravel reside na forma como ele expandiu as possibilidades da orquestração e trouxe uma nova sensibilidade e sutileza à música. Seu trabalho influenciou não apenas outros compositores clássicos, mas também músicos de jazz, compositores de trilhas sonoras e artistas de outros gêneros, consolidando-o como uma figura essencial na história da música ocidental.

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Mas sua vida pessoal é envolta em uma aura de mistério porque, como mencionado, era reservado, quase recluso, e preferia manter distância das luzes da fama, o que fez com que muitos aspectos de sua vida permanecessem pouco conhecidos. Ele nunca se casou e, ao que se sabe, não teve relacionamentos românticos duradouros. Algumas especulações sugerem que ele pode ter sido homossexual, mas não há evidências concretas sobre isso, e ele jamais falou abertamente sobre sua orientação. O que o filme “Bolero, A Melodia Eterna” respeita é o fato que esse silêncio sobre sua vida íntima era em parte porque se dedicava inteiramente à música, quase como se ela fosse a principal companhia de sua vida.

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Boléro, filme de Anne Fontaine, com Raphaël Personnaz (Ravel), Diora Tillier (Misia), Jeanne Balibar (Ida Rubinstein), Emmanuelle Devos (Marguerite Long), Vincent Pérez (CIPA), Anne Alvaro (la mère de Ravel), Sophie Guillemin (Mme Revelot), Alexandre Tharaud (Lalo) – Christophe Beaucarne DOP (Pascal-Chantier/divulgação)

As mulheres na vida do compositor: Misia e Ida

A diretora Anne Fontaine mostra a presença de várias mulheres na vida do compositor. Há duas liberdades que são importantes citar como diferentes das biografias oficiais. A relação com sua mãe, Marie Delouart, é mostrada como amorosa, mas na verdade há sugestões de uma relação patológica bem mais densa, até abusiva, por parte dela. A outra mudança é a fantasia de que a relação de Ravel com Misia Sert foi uma história de amor platônica. Não há fatos concretos que confirmem isso. Misia foi uma influente patrona das artes e uma das figuras mais marcantes da vida cultural parisiense no início do século 20.

A outra mulher impactante na vida dele foi a bailarina Ida Rubinstein, famosa por seu talento, carisma e personalidade magnética, assim como uma presença cênica fascinante e um estilo de dança único, que misturava teatralidade e uma sensualidade exótica. Inicialmente treinada por Mikhail Fokine, coreógrafo dos Ballets Russes, Rubinstein fez sua estreia com a companhia em 1909, interpretando Salomé, o que gerou bastante controvérsia por sua sensualidade. Em 1928 encomendou a Maurice Ravel a obra que se tornaria seu famoso Bolero, para acompanhar uma coreografia com influência espanhola. Foi um grande sucesso e consolidou o Bolero como uma das peças mais icônicas do repertório clássico.

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Mas vamos ao papo com Raphäel Personnaz? O ator, que visitou o Brasil (“pela primeira vez, espero voltar”, como ressaltou) se transformou completamente no compositor, e tem muito orgulho de um trabalho que só vem colecionando elogios.

Bravo!: Como é trazer a história de Maurice Ravel para o cinema e para mundo?
Personnaz: Eu fico muito comovido. Só pensar que é um filme sobre um compositor que viveu no começo do século passado na França e que agora, quase um século depois, eu estou aqui para apresentá-lo. Me emociona sobretudo porque Ravel era uma pessoa que gostava muito de viajar, e gostava muito da América do Sul e do Brasil.

E, apesar de se chamar “Bolero” e ser sobre a peça que ele escreveu, é mais do que isso, né?
Há uma espécie de mistério que o envolve [Ravel], há muitas interpretações possíveis e no fundo o que a gente conhece dele é essa melodia, que é uma coisa que pode nos agradar, que pode nos irritar um pouco.[risos] mas é uma melodia que está sempre presente, que nos persegue de uma certa forma. Sobre o homem mesmo, sobre Ravel, a gente não conhece quase nada. Tem uma espécie de mistério que paira ao redor dele. Então esse filme não pretende ser a verdade sobre Ravel, porque a gente nunca conhecerá, e é muito bom assim, mas é uma interpretação de Anne Fontaine que amou esse personagem. E eu amei esse personagem com ela e nós mergulhamos de cabeça nesse filme.

Sem tanta informação, como foi para você se preparar como Ravel?
De alguma forma não queria revelar o segredo de Ravel,mas respeitar o mistério que ele queria ter. Então, quando você faz um personagem como esse, a primeira coisa que eu pensei era praticar piano, praticar coisas realmente concretas, não ser de um jeito psicológico e tal. Tive que aprender a reger uma orquestra, eu perdi 10 quilos para parecer como ele… E aí tem outra coisa que é louca no filme, que é que a casa de Ravel que você vê no filme é a casa real.

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Deve ter sido uma experiência especialmente emocionante!
Ah, sim. E não mudou nada até hoje. Então, quando você vai no banheiro, por exemplo, você pode ver todos os móveis daquela época. Tivemos a oportunidade de filmar lá, mas antes visitei a casa e pude ficar um pouco no piano dele. Esse é o piano onde ele trabalhava…

Onde ele compôs o Bolero?
Sim, o piano que você vê no filme é o real piano de Ravel, onde ele compôs tudo. E é emocionante porque quando você sente o interior de uma casa de alguém, você pode sentir muita coisa, você pode adivinhar algumas reações.

E outro material de pesquisa certamente é a música dele…
Personnaz: Sim, mas eu li muito, claro, sobre ele. E como você disse, o fato é que o Bolero é mais conhecido do que ele hoje.

E que você veio a gostar mais de Ravel?
Personnaz: O fato de que ele era tão moderno e ao mesmo tempo tão intenso. Isso me ligou a ele. Eu acho que um compositor ou músico é sempre surpreendido por sons, e, por exemplo, se eu estivesse falando com você agora e eu fosse um compositor, eu estaria, você sabe, com os sons. Eles extraem dessa realidade e por isso estão sempre em dois mundos diferentes. No mundo da música não há limite, porque um pássaro que canta, pode ser uma música, uma fábrica, o som da fábrica pode ser o começo da música. [Ele faz essa referência por causa da cena de abertura de “Bolero, A Música Eterna”]

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Essa intensidade fica super clara no filme em vários momentos
Personnaz: Ele estava obcecado com isso [encontrar música mesmo na vida cotidiana] e sacrificou talvez sua vida amorosa, sua vida física, porque se dedicou como um monge à sua música.

Tchaikovsky dizia que Inspiração tem que ser “trabalhada” no dia a dia porque é tão difícil para se conectar, embora a maioria dos músicos diz que quando eles se conectam, a “música está lá”. Vemos Ravel lidar com falta de inspiração. É mais fácil para o ator?
Personnaz: Para o ator é mais como um bailarino. Se você não praticar todos os dias as palavras, você não é bom. Mas há essa fantasia na França de que você pode ter a inspiração. Eu não acredito nisso. Eu acredito no trabalho duro, que às vezes é tão bom que no final do corredor você vê uma luz e você diz, ok, valeu a pena.

Bravo!: E é você mesmo tocando piano?
Personnaz: Sim, adoro tocar. Eu comecei minha paixão pelo teatro quando eu tinha 13 anos, mas mesmo quando estava no palco, na minha aula, sentia, fisicamente, o prazer de tocar piano.

Bravo!: E agora, para você, mudou como ouve a música do Ravel?
Personnaz: Ah, sim. Eu só conhecia o “Bolero” e com esse filme eu tive a oportunidade de descobrir outras músicas e elas são tão ricas, diferentes. Justamente porque ele estava interessado em todos os tipos de música. Não há repetição, ao invés de “Bolero”, não há repetição em todas as suas peças. Por isso, mesmo depois do filme ter sido lançado ainda estou descobrindo algumas coisas do Maurice Ravel. Adoro isso!

 

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