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OLÁ,

Acervo Bravo!: Caetano Veloso escreve sobre Nino Rota e as imagens melódicas do cinema

Confira a íntegra do texto publicado originalmente no site da Bravo! em janeiro de 2002, e que agora integra o livro “Cine Subaé” (Companhia das Letras)

Por Caetano Veloso
Atualizado em 17 set 2024, 03h01 - Publicado em 24 ago 2024, 09h00
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Cena do filme “Noites de Cabíria” de Fellini que foi musicado por Nino Rota e captura o coração de Caetano (IMDB/reprodução)
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Amo de modo especial a música que Nino Rota escreveu para cinema. Há muitas coisas bonitas escritas para servir como trilhas sonoras de filmes. Mas, embora eu aprecie um trabalho rico em textura e atmosfera como o de Bernard Herrmann, ou cheio de inspiração e sentimento como o de Victor Young, nunca música nenhuma ouvida na sala de projeção me comoveu tão fundamente quanto a que comenta as imagens de “Noites de Cabíria” (de Fellini), a que faz andar o drama de “Rocco e seus irmãos”(de Visconti) ou a que dá sentido à fábula de “A estrada da vida”(Fellini outra vez).

Talvez isso se deva à proximidade que a música de Rota mantém da música popular. De fato, ele arrisca vincular o andamento das cenas a melodias, a motivos melódicos, em vez de concentrar-se em criar climas sonoros apoiados em harmonia e timbre. Ele não é o único a fazer isso. Os outros que o fazem, no entanto, frequentemente recorrem aos efeitos sinfônicos nos momentos críticos dos filmes. Rota, evidentemente encorajado por Fellini (mas levando isso para outras filmografias), expõe a melodia nua nas cenas cruciais. Sente-se naturalmente a presença da ópera como forma, mas é o que há de mais próximo do canto popular nas árias que ele elege como referência.

Assim, pode ser que eu ame tanto Rota apenas porque sou popular e amo a música popular. Seria bastante. Mas tudo é mais complexo do que isso. O fato é que muitos músicos que trabalham convencionalmente para filmes de baixa qualidade são levados a apoiar-se na melodia. Acima, comparei Rota a alguns grandes compositores do cinema. Mas toda noite pode-se ver na televisão um filme ruim com um tema chato a repetir-se em som de flauta sobre piano. Nada mais longe de Nino Rota. Os motivos melódicos que este cria têm a misteriosa qualidade de parecerem lembranças. Na verdade, estão sempre sobre uma tênue linha que (não) separa o que é nostálgico do que é paródico: a gente nunca sabe se se trata de plágio ou de inspiração mística. E é com os elementos que resultam dessas sutis diferenças que ele compõe sua renda de fragmentos melódicos que ecoam, esvaem–se, reaparecem no tempo criado do filme.

O músico com quem, afinal, Rota mais se parece é alguém cujo temperamento supõe-se que seja muito diferente do seu: Kurt Weill. Tendo também trabalhado sobretudo para as artes cênicas, sempre perto da ópera e da canção popular, do cabaré, do circo, da retreta; e igualmente instigado por um autor e diretor de dramas e comédias a comentar em música a própria música que produzia, Weill achou um tom que fascina e alerta ao mesmo tempo, mantendo-se assim entre a paródia e o envolvimento.

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Nenhuma novidade aqui: já se relacionou Rota a Weill e, o que traz outras consequências, é notável e notório que o alemão influenciou e inspirou o italiano. Embora seja claro que este último tenha trabalhado para a criação de uma poética do sentimento (sentimental) enquanto o outro, cerebral, tenha trabalhado contra a sentimentalidade.

Mas o que conta é que ambos construíram peças complexas usando material e técnica de aparência simples — e que ambos chegaram a zonas que se tocam ou se fundem.

Para minha formação, Rota foi um artista fundamental. Um dia, nos anos 1970, eu disse a um amigo compositor italiano: “Fellini não seria metade do que é, não fosse por Nino Rota”. Ele me respondeu: “Nino Rota tampouco seria quem é, não fosse por Fellini”. Não discordei. Não conheço a obra de Rota fora do que ele fez para o cinema. Aqui, o que ele fez me foi essencial.

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Quando compus “Giulietta Masina”, procurei — com muito esforço — evitar qualquer parecença com a música de Rota. Fui para o Nordeste, citei minha própria “Cajuína”, porque eu queria dizer que eu, brasileiro, esta pessoa do interior da Bahia, este músico popular que fez músicas desse jeito que faço, eu é que queria falar de Giulietta. E dela. Não do cinema de Fellini ou da música que Rota fez para ele.

Um crítico inglês da revista Wire (eu acho) falou muito mal do meu disco Omaggio a Federico e Giulietta, dizendo que este quase nada tinha a ver com os filmes de Fellini, que soava simplesmente como mais um disco de música brasileira. É isso aí. O imbecil queria algo que soasse como Nino Rota. Ignorante das coisas brasileiras (mas também do cinema italiano), portanto incapaz de entender onde Fellini/Rota/Masina entra na “Ave Maria” de Augusto Calheiros, no fado “Coimbra” e em “Chega de Saudade”, concluiu que o disco era uma “sopa de marshmallow” (a doçura e o sentimentalismo — neste caso, obrigatórios — tinham que levar essa porrada neopunk). Mas Rota está em “Luz do sol”. E sobretudo está dentro de mim. As músicas que não parecem com as dele estão cheias de sua presença.

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Recentemente fiz uma canção a que dei o título de “Michelangelo Antonioni”. Não é uma canção ninorotiana. Está calcada na atmosfera dos filmes de Antonioni. As referências minimalistas do arranjo são homenagem ao minimalismo formal pioneiro desse cineasta.

Mas é uma canção que ecoa a música italiana. Muitos esquecem de que Antonioni é italiano. E ele o é muito intensa e profundamente. A introdução dessa canção que fiz sobre/para ele, cantada em falsete, com uns cromatismos melódicos e harmônicos, levam a pensar em Nino Rota. É que aqui, diferentemente do caso de “Giulietta Masina”, eu não fiz nenhum esforço para afastar-me de Rota: com Antonioni eu já estava suficientemente longe. O compositor italiano Aldo Brizzi me disse que eu cheguei a Antonioni “via Margutta”, que é a rua onde Fellini morou. Essa é a Itália para mim.

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Também para “O Quatrilho” compus um tema que ecoava o canto de Rocco no filme de Visconti. Rota fez a música desse filme. Mas a música do filme de Fábio Barreto não é ninorotiana. A introdução de “Michelangelo Antonioni” o é consideravelmente mais. Antonioni, que sabe tudo, aprovou.

O tema de “Os boas-vidas”, o de “Noites de Cabíria”, o de “Rocco e seus irmãos”, o de “O Poderoso Chefão”; a melodia do trompete de “A estrada da vida”, a do acordeão de “Amarcord” — toda essa música é parte do que há de mais belo entre as coisas que se fizeram no século passado.

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Cine Subaé: escritos sobre cinema (1960-2023) (Companhia das Letras/divulgação)

 

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