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Camila Márdila: O que o cinema me ensinou sobre existir

Dez anos após sua estreia no cinema com "Que horas ela volta", a atriz se lança na direção e celebra sua participação na série sobre Ângela Diniz, da HBO Max

Por Depoimento de Camila Márdila
21 nov 2025, 09h00
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Camila Márdila (Julia Mataruna/divulgação)
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Vou começar pelo dia em que perdi minha identidade. Lá em 2013, no minúsculo banheiro de um ônibus que ia do Rio de Janeiro a São Paulo durante a madrugada. Me equilibrei para não encostar no assento, como sempre, mijado, e nesse malabarismo que toda pessoa com vagina sabe, meu RG caiu do meu bolso. Olhei pra ele ali no chão, pensando: não posso esquecer. E é claro que esqueci. Essa é a cena que precede meu teste para o filme Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert.

Não sei se funciona assim com vocês, mas organizo minhas memórias como se fossem cenas, e em geral guardo os detalhes miúdos, gosto deles.

Eu vestia uma roupa que não era minha, uma espécie de sugestão para a personagem. Cheguei muito cedo e fiquei aguardando na frente do portão, ainda fechado. No teste, improvisamos um pouco a cena do ônibus, em que a estudante Jessica se dá conta de que sua mãe, Val, mora na casa dos patrões. “Você me trouxe pra ficar na casa dos outros?” surgiu esse dia. “Na casa dos outros…” – frase que ouvi da minha mãe minha infância inteira e que, agora, num lapso, devolvi a ela, em ficção.

 

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Camila Márdila na série Ângela Diniz: Assassinada e Condenada (Carlos Eboli/divulgação)

Do teste, fui direto para a rodoviária, e assim que piso os pés no portão de embarque, sofro um tremendo flashback: um plano detalhe da minha identidade no chão nojento do banheiro. “Caramba, Camila, como pode ser tão pisciana?” A mente tinindo para um bando de coisa e péssima para outras. Não pude embarcar, claro.

Gritei, chorei, me passei, mas não tinha jeito. Era delegacia, fazer BO, horas e horas. Pronto! Um caldeirão de derrotas para me afundar. Afinal, eu tinha certeza de que não passaria no teste e, para piorar, ainda perdi uma diária de trabalho presa no Rio por ser distraída. Todos os elementos em perfeita sintonia para a próxima cena, aquela clássica, aquela que quase todo mundo poderia ter um edit pessoal das variadas e diferentes vezes em que chorou com a cabeça encostada na janela de um ônibus, bem humilhada, bem coitada, bem “que diabos estou fazendo da minha vida?”.

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O salto no tempo transforma todo esse drama em uma dramédia. Frances Ha talvez estivesse listado nas referências do projeto. E sendo a personagem descrita como esquisitinha, talvez eu até pudesse fazer teste para mim mesma.

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Camila Márdila em “Que horas ela volta” (divulgação/divulgação)

Aconteceu que aquela ligação que deixa a gente baratinada chegou, e era a derradeira aprovação: eu seria Jessica e ela seria eu. E eis que, mais uma vez, um ônibus se fez cenário. Dessa vez pelas ruas do Rio de Janeiro, linha 409. Com o celular em uma orelha e a mão tapando a outra para conseguir ouvir a pessoa do outro lado, senti uma das maiores felicidades da minha vida. Era minha primeira chance de fazer cinema, meu amado, precioso, tão querido cinema. Aquele mesmo rosto olhando o mundo passando lá fora transbordava agora um choro de conquista. Não me aguentei e comentei, emocionada, com a mulher ao lado: acabei de receber uma ótima notícia! Ela me abraçou e eu senti a textura de uma tatuagem em seu braço escrita em letra cursiva: Jéssica. Não pude acreditar, mas não tive opção. Esse desfecho, provavelmente, eu não colocaria no meu roteiro. Soa um tanto predestinado. Talvez fizesse alguma graça com isso.

Mais de 10 anos depois, e poderia ser também agora o momento em que eu entro pela primeira vez na “casa dos outros”, no Morumbi, e me impressiono com a quantidade de suítes. É aquela história de que o que se lembra acontece enquanto lembramos, sabe? Eu acredito nisso.

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Camila durante gravação do curta “Sandra” (@thedortt/divulgação)

Parte do trabalho da atuação tem a ver com construir memórias e povoar o instante presente com essas influências. Um exercício constante de cogitar e, portanto, ser. O famoso “penso, logo existo” tem em sua origem em latim a palavra “cogito”, que acho bem pertinente ao processo criativo. O prefixo -co mais o verbo -agitare quer dizer “em conjunto, pôr em movimento”. A formulação ainda mais completa da frase de Descartes ainda inclui a palavra “duvidar” como ação que confere existência. Tenho para mim que o ator nunca deve deixar de se fazer perguntas e atualizá-las em cena. O pensamento não deve se apoiar em certezas, mas transitar entre tentativas, às vezes até perseguir o erro.

Quando penso na natureza tão distinta dos projetos que realizei ao longos desses anos, entre peças de teatro, filmes, série e novela, penso nas perguntas que me acompanharam em cada processo. Foram elas as responsáveis por manter teso o arco da promessa, entre acertos e tropeços. São perguntas que não buscam se apaziguar em respostas, mas multiplicar caminhos e considerar, mais que tudo, o presente e suas fissuras. Algumas vezes meu impasse na hora de levantar uma cena é sentir que ela não está realizando seu próprio caminho, que algo está se impondo a ela. Mas quando se trabalha com crianças, por exemplo, isso se torna quase impossível – ou ao menos tão evidente, que grita.

No filme A Natureza das Coisas Invisíveis, de Rafaela Camelo, temos duas protagonistas crianças e eu interpreto Simone, a mãe de uma delas. Esse é um filme muito sensível, em que qualquer nota fora do tom pode desafinar tudo – não só pela sua delicada temática sobre luto e finitude, mas principalmente pela presença das pequenas Laura e Serena, que tornam o “faz de conta” mais verdadeiro que nunca. Atuar com criança nos obriga a desaprender manias, recuar nas certezas, desenvolver novas ferramentas e, principalmente, comprometer-se, em absoluto, com o presente. O filme ainda costura diferentes planos de realidade em sua exploração da espiritualidade, sem contudo se fazer de estilismos de linguagem que dividam essas dimensões. Então, sempre que sentimos que uma cena não estava alcançando sua proposta, abrimos espaço para a busca incessante e minuciosa que a permitisse se revelar à sua maneira, ou melhor, à maneira que aquele movimento em conjunto assim a revelasse. A Rafaela conduziu a comunhão desses diversos elementos com tanta honestidade e sensibilidade ao processo, que realizou um filme absurdamente original e implacável com nossos corações.

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Camila no curta “Sandra” (@thedortt/divulgação)

Poder trabalhar com esse nível de confiança e parceria, felizmente, me aconteceu muito. Foi o caso da série Ângela Diniz: assassinada e condenada, dirigida por Andrucha Waddington. Na história eu interpreto Lulu Prado, uma mulher que habita a alta sociedade carioca e se torna grande amiga de Ângela, interpretada por Marjorie Estiano. Baseada no famoso podcast Praia dos Ossos, da Rádio Novelo, a série culmina no conhecido caso de feminicídio e seu, igualmente criminoso, julgamento, que coloca a vítima como culpada. Filmamos por uma semana o episódio do tribunal e foi uma experiência quase teatral. Um exercício profundo de escuta desses “monólogos” que compõem a cena. Cada diária cumpria a extensa fala de um dos personagens envolvidos e, no roteiro, Lulu foi incluída entre os depoentes, de forma a ter uma voz feminina que fizesse jus à vida de Ângela. E presenciar a defesa de Doca Street, tal qual sabemos como se deu no final dos anos 70, me dilacerava a cada take para além da ficção. Eu ouvia aquelas palavras e podia ver nossa sociedade escancarada, a base da violência de gênero exposta sem pudor e com autoridade.

A cena da manifestação do movimento “Quem ama não mata”, foi mais um dos dias de filmagem em que já não tínhamos nossa protagonista, mas sentíamos sua presença de forma avassaladora, especialmente porque ali ela representava também tantas outras mulheres. Eu olhava para o elenco e a figuração reunida, totalmente imbuídas do sentido da cena, e me embargava, um nó na garganta que me transborda enquanto escrevo. Esculpir essa história no tempo é de uma relevância em termos de memória coletiva e construção de memória social que me orgulha muito fazer parte. Além disso, pude pela primeira vez trabalhar com o Andrucha, um diretor que vibra com os atores, que acredita no poder das atuações e é incansável na busca pelos caminhos da cena. Nesse exato momento, um ano depois das filmagens e prestes a estrear Ângela, começamos um filme juntos, Os Corretores, escrito pela Fernanda Torres.

Nessa década vivendo o audiovisual, tive a chance de cruzar com diretoras e diretores que me inspiraram e encorajaram a me aventurar na direção. Um desejo antigo e já realizado no teatro, mas que no cinema ainda não tinha se concretizado. Até que, durante a pandemia, escrevi o roteiro de Sandra, curta-metragem que teve sua estreia em outubro de 2025, no Festival do Rio.

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Sandra surge de uma dessas memórias vividas que se tornaram uma cena para mim. Para além de qualquer questão pessoal envolvida, o que me chamava atenção era a sequência dos acontecimentos, os gestos, os movimentos. Eu recebi uma ligação quando estava em um quarto de hotel e entendi estar sendo observada por um outro hóspede estrangeiro. O elemento voyeur serviu como um bálsamo para minha obsessão cinematográfica e eu não conseguia parar de ver esse filme. Precisava, de fato, torná-lo um. E aí começam as perguntas. “O que faço com isso? Onde localizo essa história? O que quero contar, afinal? Que tipo de filme quero fazer?”

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Camila na série Ângela Diniz: Assassinada e Condenada, da HBO Max (divulgação/divulgação)

Inúmeras tentativas e interlocuções me levaram a ambientar a trama em um ambiente corporativo, um espaço simbólico da produtividade, da aparência e da alta performance, no intuito de contrapor o trote, a experiência de invasão de intimidade que vive a protagonista, agora vivida pela atriz Leona Jhovs. No curta, uma coach famosa, interpretada pela brilhante Susana Ribeiro, profere discursos motivacionais que causam um tipo de efeito rebote em Sandra, sobrecarregada de tormentas que vão desde pendências familiares à perturbadora ligação noturna. Vivendo no automático e correspondendo prontamente aos estímulos de produtividade de seu ambiente de trabalho, é essa incômoda experiência, de um tipo de exterioridade, que desperta as contradições que compõem sua vida interior. Em tempos de mindset, programação da mente e suas metas, eu quis explorar o mistério, o indecifrável, as ambiguidades do medo e do desejo. E quis, principalmente, reunir pessoas em torno disso, promover encontros que, a partir de então, carregariam essa história que já não é mais minha. A imagem que tenho aqui cravada na memória é do elenco e grande parte da equipe em torno do vídeo assist curtindo muito uma cena, isso me comove absurdamente.

O cinema nos ajuda a construir e preservar memórias de toda natureza, sejam elas vividas ou inventadas – afinal, faz diferença? Do contrário, não usaríamos tanto, e para tão diferentes circunstâncias, a expressão “foi como se um filme passasse na minha frente.” Nada me faz sentir tão apropriada de mim mesma quanto minhas memórias, elas me provam que eu existo. É a sensação de que eu posso ir aonde quiser, e de que tenho para onde retornar, bem acompanhada. Fazer cinema e teatro, cogitar histórias, é minha forma de não andar só.

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