O ano de Carolina Markowicz
Com uma homenagem internacional e muitos elogios da crítica, a diretora e roteirista chega ao Festival do Rio com seu mais recente longa-metragem, "Pedágio"
Um dos nomes mais comentados do cinema nacional em 2023 foi o de Carolina Markowicz. Hoje (11), ela lança seu segundo longa-metragem, Pedágio, que terá uma exibição dupla no Festival de Cinema do Rio de Janeiro, com direito a debate presencial com parte do elenco após a sessão. Tudo isso, apenas um ano após o aclamado lançamento de Carvão. Em um curto intervalo de tempo, ambos os filmes já foram apresentados – e aplaudidos – em diversos países, conquistando algumas homenagens à diretora. “Está uma loucura. É quase como se os dois filmes tivessem estreado ao mesmo tempo. Tem toda a ansiedade que toma muito da nossa energia. É como se tivesse nascendo um filho. E como é que esse filho vai ser visto pelo mundo após anos de trabalho? Parece que foi rápido, mas são quase 10 anos desenvolvendo os dois”, pondera a cineasta em entrevista à Bravo!.
Em setembro passado, Carolina recebeu o Tribute Award no Festival de Toronto, na categoria de talentos emergentes, tornando-se a primeira brasileira a receber tal reconhecimento. Ao seu lado estavam dois dos diretores mais renomados do cinema alternativo, Pedro Almodóvar e Spike Lee. E, por muito pouco, Pedágio não foi selecionado para representar o Brasil na corrida para uma vaga de Melhor Filme Internacional no Oscar. O posto ficou com Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho. Ela foi a única diretora mulher na lista de pré-indicados.
Carolina transforma seus filmes em um território a ser explorado de ponta a ponta, como se quisesse brincar com as narrativas, esquadrinhar algumas situações até o limite e deixar o espectador confuso se está assistindo a um filme de suspense, drama ou comédia. No entanto, essa confusão é positiva, pois seus filmes carregam um tempero genuinamente brasileiro que nos conecta com as angústias, contradições e, é claro, com o humor.
A diretora e roteirista vem se destacando também como um forte nome na cena queer. Em Pedágio, ela narra a história de uma família que reside em Cubatão. Suellen (Maeve Jinkings) trabalha em uma cabine de pedágio e é nesse local que o conflito e a reviravolta na vida da protagonista se desenrolam. Seu drama começa quando ela percebe que seu filho adolescente, Tiquinho (Kauan Alvarenga), apresenta sinais de que é gay. Para Suellen, isso é um problema que deve ser combatido a qualquer custo antes que o rapaz complete 18 anos. Através da recomendação de uma colega de trabalho, ela decide inscrevê-lo em um programa de conversão sexual ligado à igreja. No entanto, o tratamento custa mais do que ela pode pagar, dando início ao conflito central da trama. Já Carvão traz a história de uma família humilde, no interior de São Paulo, que recebe uma proposta inusitada de uma enfermeira: esconder um traficante argentino.
Conversamos com Carolina sobre os bastidores dos dois filmes, sobre seu processo criativo e seu percurso por festivais fora do país.
Como está a expectativa para a exibição de Pedágio no Festival do Rio na Première Brasil: Competição Longa-Metragem Ficção?
Estou super ansiosa, espero que as pessoas gostem. Estamos todas com muita expectativa para a primeira exibição no Brasil. Mostrar fora é maravilhoso, mas mostrar no Brasil, com as nossas idiossincrasias, nossas especificidades, com os absurdos que vivemos no dia a dia, será muito diferente. Vai ser muito especial.
Seus dois filmes, Carvão e Pedágio, têm recebido muita atenção recentemente. Como têm sido esses últimos meses para você?
Está uma loucura. É quase como se os dois filmes tivessem estreado ao mesmo tempo. Pedágio é a minha prioridade agora, terá a exibição no Rio de Janeiro. Acontece que eles quase se encavalaram. Tem um festival importante nos Países Baixos, chamado Liff (Leiden International Film Festival), onde vai passar tanto Carvão quanto Pedágio. Tem toda a ansiedade que toma muito da nossa energia. É como se tivesse nascendo um filho. Como que esse filho vai ser visto pelo mundo após anos de trabalho? Parece que foi rápido, mas são quase 10 anos desenvolvendo os dois. É muito tempo, eles só encavalaram porque tiveram que ser produzidos próximos.
Durante as exibições internacionais dos seus filmes, algum aspecto se destacou para a audiência? Qual foi o feedback que você recebeu das exibições no exterior?
Foi incrível. Como ambos são filmes, digamos, controversos, trabalham com temas não tão convencionais, varia muito de país para país. Chega a ser engraçado. Mas, no geral, ele foi muito bem recebido por onde passou. O Carvão, óbvio, por muitos mais lugares, e o Pedágio apenas começou. Antes mesmo de começar, já tinha 20 convites para festivais e agora tem muito mais. É curioso como cada cultura enxerga os dois filmes. Tem pessoas que entendem mais como uma dark comedy, outros que acham que é um drama com thriller policial. Gosto muito disso. Ambos têm uma mistura de tons que confundem o espectador.
Pedágio é bem satírico na questão das práticas político-religiosas. O famoso rir para não chorar, as coisas típicas que passamos por aqui que não são fáceis. E algumas vezes são patéticas, então ficamos nesse limiar. Carvão não tem nem trilha, propositalmente, para não ter aquele momento de “agora você vai ficar feliz”. Queria deixar as pessoas confusas. Isso é meio que uma questão da vida; você sente muitas coisas num intervalo muito curto. E, às vezes, você nem se dá conta de que está sentindo aquilo.
Você foi homenageada ao lado de Pedro Almodóvar e Spike Lee? Como foi a experiência? Tiveram a chance de discutir sobre o cinema dos respectivos países?
Foi maravilhoso, foi um evento de gala, uma vibe meio Oscar. A minha história com o Festival de Toronto é muito bonita: passei três curtas e agora os dois longas. Já estive seis anos no Festival. Eles realmente apoiam muito a minha aposta como cineasta, sou muito grata.
Troquei ideia com o Almodóvar, que é uma das minhas maiores inspirações no cinema. O cinema dele tem essa mistura de tons, esse drama/humor/tragédia. Aprecio demais. Foi uma coisa muito louca ser homenageada na mesma noite que ele. Não tem nada do Almodóvar que eu não vá querer ver. Com o Spike Lee, acabei não conversando porque foi uma loucura. Nossas mesas não eram tão próximas, mas curiosamente estou desenvolvendo um filme, que ainda não posso falar muito a respeito, pela mesma produtora que está produzindo o próximo filme dele. Então, em algum momento acho que vamos trombar por aí.
É notável ver você recebendo destaque, especialmente porque, nos últimos 30 a 40 anos, a visibilidade do cinema brasileiro no exterior está geralmente associada a diretores homens, com pouca representação feminina. Quais desafios você enfrentou para ganhar espaço neste cenário?
Acho que são muitos os desafios. Primeiro que as pessoas não gostam de ter mulher como chefe. E você, no papel de diretora, precisa decidir coisas, pois é quem está ali para ditar a visão, a trajetória que a obra vai ter artisticamente. Às vezes, você precisa ter uma postura mais dura porque não tem outro jeito. É um caminho muito difícil em todos os aspectos, no lado técnico, na realização, na pré-produção, depois conseguir verba, na pós. E, depois, para o filme nascer, também é muito difícil. É muito difícil fazer um filme e não ser tão compreendida quanto os homens são. É aquela velha história: a mulher é histérica e o homem é o cara firme e de postura.
As mulheres têm dificuldades de fazer os filmes e conseguir protagonizá-los, mas depois que ele fica pronto acho que temos ainda mais dificuldade de fazer com que os filmes sejam vistos e apreciados. Os filmes de homens têm muito mais holofotes.
Por exemplo, na questão dos finalistas para a seleção do Oscar, tinha vários filmes, mas não chegava a dois filmes dirigidos por mulheres. Tinha um que passou em Cannes, Toronto, e outro ganhou Leopardo de Ouro, de Locarno. Duvido que se fossem filmes dirigidos por homens, eles não estariam entre os finalistas porque essa é uma chancela gigantesca. O Oscar é uma Academia internacional que está, obviamente, atenta a tudo que está acontecendo no mundo.
Houve alguma dificuldade em relação a fazer um filme queer? Isso tem mudado nos últimos anos?
Foi difícil. O Carvão demorou para conseguirmos fundos, Pedágio foi bem mais rápido. Mas não sei dizer se essa relação temporal e tema do filme interferiu diretamente. Até mesmo porque O órfão tinha uma temática parecida em questões LGBTQIA+. Pude fazer esse filme devido a um edital afirmativo da Spcine, que me abriu mais portas, em relação aos longas e aos festivais.
Mas, mais uma vez, acho que é mais difícil para as mulheres conseguirem espaço para fazerem filmes. Tem outro caminho também, que é encontrar bons parceiros. Me sinto com muita sorte de ter uma parceira na produção, a Biônica, que compra muito as minhas ideias. Tive uma experiência ótima também com a Globo Filmes, com Pedágio. Foi muito respeitosa, artística e criativamente.
Pedágio participou de relevantes laboratórios de apoio ao desenvolvimento audiovisual, como o Tribeca All Access, Torino Film Lab e Berlinale Coproduction Market. De que maneira isso interferiu e potencializou a narrativa do filme?
Cada um de um jeito. O Tribeca apoiava o desenvolvimento, mas não era um laboratório de roteiro. Além desse aporte no desenvolvimento, você fazia muitas reuniões com possíveis co-produtores. Isso foi muito importante, porque conhecemos muitos produtores norte-americanos, que podem fazer parte dos projetos futuramente. De Torino foi um espaço curto, mas tivemos uma mentoria de roteiro. Ele me trouxe várias coisas que me ajudaram demais. E o Coproduction Market é um dos mercados mais importantes de produção, onde você faz reuniões com produtores de todo o mundo ou com agentes de vendas, o que vai fazer muita diferença futuramente para o projeto.
Uma característica interessante em seus dois longas é que você parece explorar lugares e situações do cotidiano, mas que são pouco abordados no cinema. O que a inspirou a criar a história de Pedágio?
Acho que foi a questão daquilo que vivemos aqui, que é uma tragédia, mas, ao mesmo tempo, é absurda num nível jocoso. Duas semanas atrás, um deputado, um dos mais votados, um pastor (Pastor Isidório – Avante/BA), disse que quem nascia com “binga” era homem, não adiantava cortar o pipi. O cara começou a falar todos os apelidos de pinto, depois falou outros apelidos do órgão feminino, no meio da Câmara. Você se pergunta: “O que é isso? Um stand-up tragedy?” É tão absurdo que sempre quis fazer um filme desse. São muitos exemplos, coisas que a Damares já falou, que Frozen é lésbica. Sempre fui muito obcecada em mostrar para o mundo o nível de absurdo que vemos aqui.
É curioso porque lá fora eu tive que explicar que isso, a situação do filme, não é um exagero. Queria muito colocar isso na tela de um jeito que fosse satírico, mostrando como a homofobia está tão absorvida pela sociedade e acaba implicando de um jeito trágico na vida das pessoas. Em Carvão, temos uma mãe que nem é religiosa, mas que acredita que o filho ser gay seja algo errado, porque os colegas do trabalho ficam fazendo piadas. Foi por aí que quis começar.
Pedágio se passa em Cubatão, uma cidade que já foi conhecida como a mais poluída do mundo. Essa escolha revisita uma visão negativa e representativa dos problemas socioeconômicos do país. O que te motivou a escolher esse cenário específico?
Desde criança eu sou obcecada por Cubatão. Passava por lá, de carro, à noite, vendo aquele fogo. Visualmente, era muito apaixonante para mim. Daí tive a vontade de fazer a história de uma cobradora de pedágio. Fazia sentido estar lá. E quando fui conhecer a cidade, passou a fazer mais sentido do que nunca. Cubatão é totalmente contraditória, assim como a personagem principal. É uma cidade que você chega e tem uma placa dizendo ‘Cubatão, cidade – símbolo da ecologia’ e ela está toda derretida pela poluição. Ao mesmo tempo, tem muita fuligem, mas ela é no meio da Mata Atlântica. As pessoas são felizes, muito simpáticas. É agradável estar na cidade, então você não sabe muito bem o que pensar. Os lugares são muito interessantes, têm uma textura curiosa. As pessoas na maioria são imigrantes, que vieram trabalhar nas fábricas, então tem muitas camadas e motivos de estarem ali. Boa parte do elenco é de lá, que é algo que eu sempre gosto de fazer. Fazia muito sentido ter a cidade, metaforicamente, como personagem.
Qual é o peso da religião ali?
Tem um peso muito grande. Acho que assim como em qualquer e toda cidade, tem 100 igrejas por quilômetro. Todas evangélicas, neopentecostais, católicas. Cheguei a ir em alguns cultos em Cubatão. Desde uma que é gigantesca, até outra que é minúscula. A maneira como eles se colocam e falam com as pessoas é quase um teatro, um entretenimento.
O filme aborda outro tema polêmico no Brasil, as terapias de conversão sexual. Até o momento, não temos uma legislação que proíba essas práticas, o que permite que clínicas clandestinas continuem a oferecer esse serviço. Como foi a pesquisa para o filme? Vocês tiveram a oportunidade de conhecer pessoas que passaram por essa experiência ou tiveram contato com esses lugares?
Visitei algumas dessas igrejas que faziam isso e conversei bastante com as pessoas que tinham sido obrigadas a passar por essas coisas. Fiz muita pesquisa também. A própria internet tem um material muito rico, pastores falando coisas que são absurdas. Tem uma parte que o pasto fala do “Exu-mirim”. O que é isso? Peguei de uma fala de um pastor on-line, dizendo como era errado ser homossexual porque o “Exu-mirim” toma conta da pessoa. Algumas coisas eu peguei do que tinha visto, e outras eu inventei no mesmo tom de absurdo.
Além de dirigir, você também é responsável pela escrita dos roteiros dos seus filmes. Qual é o seu processo criativo típico? Você tem alguma rotina fixa? Começa com uma ideia específica e desenvolve a partir dela?
Não sei se vou saber responder exatamente como é. Acho que existem alguns acontecimentos que me chamam atenção e aí começo a pensar sobre e vai gerando outras situações e pessoas. Mas nunca começo com uma ideia pronta. Geralmente, são coisas que passam pela minha cabeça de alguma maneira, alguma coisa que vejo, ou sinto e começo a pensar a respeito. Por exemplo, estava no México, no aeroporto, voltando, e pensei num negócio que eu acho que vai ser importante para o meu próximo filme. Vou anotando as coisas e pensando na própria cena. Coloco muita rubrica de direção no roteiro, porque já que eu vou dirigir, vou anotando e deixo ali para não esquecer. Então eu meio que junto as duas coisas. Desde o começo penso na direção, assim como eu penso no roteiro quando estou no set. Isso muda muito.
Como foi o processo de pré e pós-produção de cada filme?
Carvão levou sete anos para ser desenvolvido. Estávamos captando o filme enquanto eu desenvolvia as primeiras versões do roteiro. Chegou um momento que tive a ideia do Pedágio, daí me concentrei nele. Então captamos primeiro o dinheiro do Pedágio e nós íamos rodá-lo primeiro, mas veio a pandemia. Como Carvão era mais controlado, a maioria das cenas são filmadas numa só locação, decidimos filmá-lo primeiro. Um mês antes da filmagem começar, eu estava infeliz com o roteiro, precisei parar e reescrever. Foram várias pausas, idas e vindas. Apesar de ser muito cansativo, o que eu faria de diferente é não rodar dois filmes tão próximos um do outro. Dirigir um filme é muito cansativo. Acho bom ter mais de um projeto ao mesmo tempo, porque as coisas têm um tempo muito largo. Sou muito ansiosa e para não ser tão consumida pela ansiedade, acho interessante ter coisas em diferentes estados para as ideias fluírem.
Recentemente, ouvi em um debate de um curador de festivais internacionais que os filmes brasileiros têm uma entrada comercial limitada no exterior, devido à sua abordagem altamente específica em relação à realidade brasileira, o que pode resultar em uma conexão limitada com outras audiências. Você acredita que esse seja o caso?
É uma boa pergunta. Não sei se acho isso especificamente. Acho que talvez, sim, mas acredito que essas diferenças culturais sejam absorvidas. Quando é algo diferente também interessa aos festivais internacionais. Existe uma ‘exotização’ da América Latina, do Brasil principalmente, nos festivais europeus, que faz com que nós tenhamos que fazer filmes mais exóticos, mostrando como nós sofremos e somos diferentes. Por isso que talvez não tenham tantos filmes com humor, sinto falta disso. É uma causa e efeito, diferentemente dos filmes europeus. Existem umas caixinhas do mundo, do que cada país pode fazer. Acho ruim isso, me entristece que nos coloquem nessas caixas. As coisas culturais que você não conhece são, justamente, as mais interessantes. É uma equação que todos gostariam de saber. É uma pena porque o nosso cinema é super rico, seria muito bom se ele pudesse ser mais visto lá fora.
E qual é a sua métrica para saber que um filme está pronto?
Preciso fazer um filme que eu queira assistir. Não no sentido de não ligar para o que as pessoas vão achar, nada disso. Essa parte também é bem sofrível. Mas quando você está fazendo cinema, não adianta querer ler a cabeça de ninguém, você parte daquilo que você acha. Tem que ser uma história, uma imagem, uma pessoa que você queira ver se tornando real.