Entenda como “Central do Brasil” e “Ainda estou aqui” se complementam
As duas produções de Walter Salles tratam de temas semelhantes, como a saudade, o luto e os laços familiares

Dois dos maiores filmes nacionais, Central do Brasil e Ainda Estou Aqui, são separados por um intervalo de 26 anos. Nesse período, o Brasil passou por transformações em âmbitos políticos, sociais e até na forma como se enxerga. Essas mudanças, de certa forma, se refletem nas duas obras, seja em sua cinematografia ou narrativa. São, portanto, produtos de suas respectivas épocas. Apesar disso, existem semelhanças no conteúdo e na abordagem dramática dos filmes, para além da evidente direção de Walter Salles.
Relembre as histórias
Central do Brasil (1998) acompanha Dora (Fernanda Montenegro), uma mulher amarga que trabalha como escrevente de cartas na estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Embora se apresente como alguém que ajuda pessoas analfabetas a escrever cartas para seus entes queridos, ela, na verdade, é uma grande golpista. Sua vida dá uma reviravolta quando se envolve com Josué (Vinícius de Oliveira), um menino de 9 anos, após a morte de sua mãe. Juntos, partem em uma jornada pelo Brasil em busca do pai de Josué, que vive no interior.

Ainda Estou Aqui é baseado no livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva e narra a história de sua família durante os anos de repressão da ditadura militar. O enredo foca na busca incansável de Eunice Paiva (Fernanda Torres) pelo paradeiro de seu marido, Rubens Paiva (Selton Mello), desaparecido após ser preso por agentes do regime.

Entenda algumas conexões entre as duas obras:

Fernanda Torres e Fernanda Montenegro
Walter conseguiu trazer em Ainda estou aqui suas duas musas: Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, duas das maiores atrizes brasileiras, mãe e filha. Elas compartilham o talento, mas curiosamente possuem estilos de interpretação muito distintos. Ambas são incrivelmente versáteis, mas suas qualidades se complementam. Enquanto Fernanda Montenegro adota um estilo mais denso e dramático, com foco detalhado no texto, Fernanda Torres possui uma energia mais leve e um ritmo interpretativo acelerado. Não é por acaso que Torres se destacou como uma grande comediante, embora também brilhe em papéis dramáticos. Já Montenegro é uma atriz capaz de conquistar um recorde no Guinness por lotar uma leitura filosófica, tamanha é a sua intensidade dramática. Observar as diferenças entre as duas, bem como a química que compartilham em cena, é fascinante. Afinal, atuar com um familiar deve ser bastante complicado.

Ambientes contrastantes
Uma característica que reforça a complementaridade entre as obras é a maneira como os espaços são explorados. Em Ainda Estou Aqui, boa parte da trama se passa no interior da casa da família Paiva, quase como em uma prisão emocional, até que o filme se abre para o mundo exterior em sua parte final, como a saída de uma fase obscura. Já em Central do Brasil, a narrativa segue uma jornada por lugares distantes e variados, onde a ausência de um lar fixa os personagens em um estado de busca constante, a prisão é muito mais interna. Esses cenários influenciam diretamente as transformações de cada personagem.

Laços familiares
A temática da família é central em ambas as produções. Em Ainda Estou Aqui, isso é explicitamente evidente: a trama gira em torno de uma família profundamente conectada, mas fragmentada pela repressão da ditadura militar. A força do filme está na união entre essas pessoas diante da adversidade. Por outro lado, Central do Brasil apresenta personagens marcados por traumas e desconfiança, que encontram uma nova definição de família ao longo da jornada.

Saudade como ponto central
No âmago das duas histórias, encontramos a dor da ausência e a necessidade de se adaptar à perda. Em Ainda Estou Aqui, a protagonista precisa sufocar seu luto por anos para permanecer como o alicerce da família. Já Dora, de Central do Brasil, está emocionalmente entorpecida, desconectada de suas memórias e de suas raízes. Ao longo do filme, Dora redescobre uma saudade há muito reprimida, permitindo sua redenção. Eunice, em contrapartida, encara uma luta intensa, pois seu sofrimento decorre de eventos além de seu controle. Há, inclusive, uma frase comum entre as duas personagens, quando dizem “Saudade de tudo”.

Mensagem de esperança
Talvez uma das características mais belas do trabalho de Walter Salles seja a esperança que permeia suas narrativas, algo que ressoa profundamente com o público, especialmente em momentos de incerteza. Apesar do sofrimento e da violência que envolvem ambas as histórias, seus personagens caminham para destinos menos sombrios. As obras destacam o poder das conexões humanas e do amor em fortalecer as pessoas, mesmo diante das maiores dificuldades.