“Os Cinco Diabos” mostra a magia aos olhos de uma criança
Conversamos com a diretora Léa Mysius sobre a potência de personagens femininas, o olhar para a diversidade e os sentimentos de uma criança mágica
Você já imaginou como seria se o seu olfato fosse tão aguçado que pudesse sentir um aroma a quilômetros de distância? Talvez assim seria possível descobrir segredos, desvendar sentimentos ou mesmo ficar alerta para o que está acontecendo ao redor. E se cada um de nós exala um aroma específico, talvez também desse para compreender melhor a história de nossos entes queridos.
É dessa premissa que a diretora francesa Léa Mysius parte no filme Os Cinco Diabos. Estrelado por Adèle Exarchopoulos, de Azul é a Cor Mais Quente, além de Daphne Patakia, Swala Emati, Moustapha Mbengue e Sally Dramé, o mistério conta a história de Vicky, uma garotinha enigmática que tem o superpoder de viajar no passado de alguém a partir de seu cheiro.
A magia funciona assim: ela junta elementos aleatórios de seu cotidiano, reproduz o perfume de alguém e o guarda em frascos cuidadosamente identificados. E quando ela os abre, acessa as memórias mais profundas dessa pessoa. Como qualquer criança faria, a primeira escolha para se transformar nessa poção é sua mãe, Joanne. Mas quando a irmã de seu pai, Julia, volta para suas vidas, tudo se complica.
“Acredito que, cada vez mais, as mulheres estão fortalecendo sua presença nesse cenário. O número de diretoras, roteiristas e equipe feminina tem aumentado – podemos ter, atualmente, aquela sensação de representatividade que os homens tinham nos anos 1950 e 1960”
Léa Mysius
Vicky sente que algo está errado e, curiosa, embarca em uma jornada para descobrir os segredos mais amargos de sua família e o vilarejo em que vive – sendo transportada para dias sombrios e nem sempre fáceis de engolir.
O longa, que estreou mundialmente no Festival de Cannes em 2022, traz uma proposta inusitada – mas é uma surpresa boa. O que mais encanta é que os personagens não são totalmente bons ou maus. Eles têm dualidade e complexidade, ou seja, sentimos empatia e raiva por cada jornada ao longo dos 96 minutos de tela. Há, ainda, um subtexto social, já que Joanne é queer e Vicky é a única estudante negra da escola. E por mais que a família esteja inserida num “lugar de gente de bem”, majoritariamente branco e heteronormativo, ataques homofóbicos e racistas atravessam a dupla – evidenciando que não há espaço para quem não cumpre a cartilha hegemônica. E é através do amor e da aceitação de suas personalidades que ambas descobrem que podem (e devem) resistir.
Os Cinco Diabos está em cartaz nos cinemas e será exibido na MUBI com exclusividade a partir de 12 de maio. Abaixo, confira nosso papo completo com a diretora Léa Mysius:
Vicky e Joanne são vistas como diferentes no vilarejo. Enquanto a garota é negra em meio a branquitude, sua mãe é queer. Como o amor que uma sente pela outra pode ser visto como resistência nesse ambiente hostil?
Não é somente o fato delas serem uma mulher queer e uma garota negra que dificulta a integração, mas a impossibilidade delas se encaixarem nos moldes sociais de onde vivem. Sua resistência começa a partir de sua própria existência e da aceitação de seus desejos, suas qualidades e de quem cada uma é enquanto pessoa. É por isso que, juntas, elas conseguem unir forças e se entender enquanto seres humanos.
O filme foca em personagens femininas. Elas são complexas, imperfeitas e nos fazem sentir empatia. Você sente falta de personagens assim no mundo do cinema?
Acredito que, cada vez mais, as mulheres estão fortalecendo sua presença nesse cenário. O número de diretoras, roteiristas e equipe feminina tem aumentado – podemos ter, atualmente, aquela sensação de representatividade que os homens tinham nos anos 1950 e 1960. E eu acho que há um interesse maior em papéis femininos complexos, nos quais elas podem interpretar pessoas más – acredito isso irá até aumentar a discussão política nesse meio.
“Na França, nós temos o costume de nos beijar ao cumprimentar alguém e, se a gente forçar um pouco, podemos identificar se é alguém que já vimos ou passou por nós”
Léa Mysius
Vicky tem o superpoder de viajar ao passado quando sente alguns aromas. Você acredita que, na vida real, é possível descobrir coisas através do cheiro?
Com certeza! Os cheiros acionam memórias e acho que todo mundo já teve uma experiência na qual sentiu o aroma de algo que lembrou um momento de infância, por exemplo. Mas não acho que podemos descobrir segredos ou algo do passado de outra pessoa – seria ótimo se conseguíssemos. Ainda sim, acredito que se a gente prestasse mais atenção a esses detalhes, poderíamos descobrir mais sobre quem estamos nos relacionando.
Na França, nós temos o costume de nos beijar ao cumprimentar alguém e, se a gente forçar um pouco, podemos identificar se é alguém que já vimos ou passou por nós. E no filme há uma cena que foi deixada de fora! Que é quando Vicky cheira Nadine e seu pai e acaba descobrindo o caso deles.
Vicky se preocupa com o casamento de seus pais ao mesmo tempo em que sente que eles não estão felizes. Seu dilema principal é “apoiar a mudança ou lutar para manter minha estabilidade?”. Esse é um sentimento universal?
Isso é muito comum em crianças. Há um ditado que diz “i smell something it’s not right” (eu sinto o cheiro de que algo não está certo, em tradução livre) – que é usado quando alguém sente que tem algo ruim acontecendo. Essa sensação é, sim, universal. Acredito que quando os pais não estão bem acabam transmitindo isso para os pequenos, às vezes seria melhor se eles se separassem e deixassem todos felizes.
Até porque amar alguém não é a mesma coisa que possuir, há muito afeto quando deixamos alguém seguir seu próprio caminho. E Vicky entende que ela não precisa possuir sua mãe para que aquele amor e carinho continue existindo.
O que você deseja que as pessoas sintam e reflitam ao assistir Os Cinco Diabos?
Quero que o público saia comovido por essa obra! Pode ser um clichê, mas a ideia é despertar a reflexão de aceitar as diferenças, entendendo que elas não são ruins. Quando falamos sobre isso, acho que nem sempre estamos tão abertos como pensamos – e isso reflete nas nossas relações.
Direção: Léa Mysius
França – 2022 – 95 min