Diálogos sobre o racismo na CineOP
Filmes, entrevistas e momentos que reafirmam o racismo brasileiro em um ano que a Mostra se dedicou à música preta brasileira
“O negro de Ouro Preto é ouro”, declara o músico Maurício Tizumba na abertura da 18ª edição da CineOP, a Mostra de Cinema de Ouro Preto. Acompanhado das Guardas de Congo e Moçambique Nossa Senhora do Rosário e Santa Ifigênia, o mineiro desfila cantos tradicionais do Congado em uma festa bonita que tinha tudo a ver com o tema deste ano do festival, a música preta brasileira.
Cinco dias depois, procuro imagens de santos que não são católicos nas lojas de artesanato da cidade e encontro apenas uma estátua de Iemanjá com a pele branca. “Por que”, pergunto para a dona, “se na África não tinha brancos?”. Ela ri. Sua resposta não poderia ser mais fria ou fatalista. “E quem mandava nos negros quando eles chegaram aqui?”.
Longe da utopia que nós trabalhadores da cultura tentamos cultivar diariamente com nossas ações, nossa arte, nossos textos, existe um grande balde de água fria chamado realidade. Ela nos atravessa e nos encaixota em um sistema bastante difícil de escapar.
Nesse contexto, três momentos distintos desta edição da Mostra de Cinema de Ouro Preto convidam para uma reflexão. Dois deles em tela, uma estreia contemporânea e a recuperação de um filme perdido, e um momento no mínimo engasgado durante a coletiva de imprensa do homenageado da CineOp, o músico e ator Tony Tornado, fazem pensar sobre o racismo presente no Brasil.
“Talvez ninguém tenha passado o que eu passei”
Por eu próprio ter uma memória muito vívida de Tony Tornado da minha época de infância, quando ele vivia Avalanche na série infantil Caça-Talentos, tenho uma concepção de que ele deve ser um dos atores mais famosos do Brasil.
Aos 93 anos e ainda em atividade na música e na televisão, Tornado participou de um sem-número de novelas e filmes. Está nas telas desde 1972, mas já cantava desde antes. Seja pelas letras de “BR-3” e “Podes Crer Amizade”, sua participação em chanchadas ou em folhetins como Vamp, Roque Santeiro e a atual Amor Perfeito, sempre houve algo que Tony deixou claro para o público, e isso é a luta antirracista.
Tony Tornado não cortou o black power nem nos piores momentos da ditadura militar. Não deixou de dançar o swing da soul music nem baixou os punhos cerrados em riste. Tony, que cantou “talvez ninguém tenha passado o que eu passei / e os meus problemas são de cor / eu quis pintar meu céu de azul de amor e paz /e o mundo inteiro não deixou”, que estava ali na frente de um grupo de jornalistas com um moletom escrito power to the people, declarou que não existe racismo no Brasil, e sim preconceito.
Colocando em contexto e deixando claro que não se trata de querer manchar Tony Tornado e sua incrível biografia lotada de contribuições para a cultura brasileira, mas sim de achar importante se falar abertamente sobre a condição do racismo e sua sofisticação. A situação se deu durante a coletiva de imprensa antes da cerimônia de homenagem ao ator, em que ele próprio fez um discurso inicial exaltando as possibilidades que ao audiovisual brasileiro deu aos negros desde sua entrada no meio, em 1972.
É claro que nós, jornalistas, pescamos a possibilidade de debater o racismo de maneira tão clara com aquele senhor de 93 anos, uma oportunidade obviamente única. E, quando um colega perguntou qual era a diferença entre o racismo aqui no Brasil e nos EUA, onde Tony viveu nos anos 1960 e conheceu Tim Maia, sua resposta foi a seguinte:
“Eu sei que vou desapontar um pouco as pessoas, mas é difícil racismo aqui no Brasil, né? É mais preconceito. Ao gordo, ao careca, ao pobre, ao magro. É preconceito, porque dinheiro na mão, calcinha no chão. Se tiver a grana, vai que vai. Não querem saber se tu é negão ou loiro, tem que ter o dinheiro. Aqui, é econômico, social, lá a diferença é outra. O negro compra um Rolls Royce e manda pintar de ouro para esculachar mesmo. Por soberania negra. Porque eles têm grana pra jogar nisso, aqui não! Você grita com o patrão e depois tem que ir para o ponto de ônibus tomar porrada da polícia. Lá eles entram no aviãozinho deles.”
Tornado continuou falando sobre jogadores de basquete, carros e iates, sobre como o poder econômico gera a desavença racial. Enquanto isso, no Brasil, o que haveria é uma cisma: “Tudo vai bem até que o negão diz que gosta muito da sua filha. Opa, aí estragou. Estava indo bem, mas ele gosta da minha filha. Mas se ele for bem situado, até aceito de repente. Tem tantos casamentos interraciais por aí, né? Porque os dois têm uma situação boa. Se sujeitam, se aguentam, se comparam. Lá nos Estados Unidos não tem esse negócio. Aqui não tem branco, aqui não tem preto, e acabou.”
Depois de ouvir o final da fala de Tony, “não pode confundir racismo com preconceito, é diferente”, lembrei-me do sociólogo Clóvis Moura, que tentando entender o fenômeno do negro como bom escravo mas mau cidadão, escreveu: “O negro que, ao realizar-se como escritor, não branqueia a sua temática, não se incorpora às correntes de produção oficiosas e acadêmicas, passa a ser visto, também, como deformado, contestador sem motivo e, muitas vezes, mal-agradecido. É o ‘negro ingrato’, que teve oportunidade de aprender a ler e escrever, porém, ao invés de procurar ajudar a ‘construir a nação comum’, coloca-se numa posição racista, tentando, com seu exemplo negativo, separar os demais negros da comunidade. Invertem o racismo e procuram convencer-se e aos outros de que o negro que assim procede é um exemplo concreto de isolacionismo.”
“Durante todo o tempo que passei com Ruth, ela nunca falou sobre seus sentimentos”
Logo nos primeiros minutos de seu documentário Diálogos com Ruth de Souza, a diretora Juliana Vicente questiona a atriz sobre seus amores, primeiro ainda muito jovem com o diretor teatral Abdias Nascimento, depois com outros colegas de trabalho nos Estados Unidos e aqui no Brasil. Ruth ri, se emociona, muda a direção do olhar enquanto é levada em pensamentos, mas nunca fala nada. E, não falando, Ruth de Souza diz muito.
Primeira atriz negra a protagonizar uma novela na Globo, A Cabana do Pai Tomás, em 1969, ela já tinha uma longa trajetória nas artes cênicas. Nasceu em 1921 e viveu até 2019, tendo feito parte das primeiras turmas do Teatro Experimental do Negro, em 1945, para então ir estudar nos EUA com uma bolsa da Rockefeller Foundation, em 1948. De volta ao Brasil, participou de inúmeras montagens de radionovelas e teatro, estreando na TV Tupi ainda no começo dos anos 1950.
No documentário, Ruth se lembra de como era sempre a única mulher negra nos lugares que frequentava, seja na alta sociedade norte-americana progressista do pós-guerra ou aqui no Brasil. Orgulhosa de seu saber, ela lê cartas da época em inglês, inclusive uma enviada pelo poeta Vinícius de Moraes a amigos na embaixada norte-americana, pedindo que a atriz fosse bem cuidada nos Estados Unidos durante seu estágio no país.
E se diverte ao ver que aparece fumando cigarros em boa parte das fotografias da época: “Para não me confundirem com uma negra que estava ali trabalhando, comecei a fumar. Nenhuma mulher negra teria a coragem de fumar na frente de seus patrões.” Mais de 60 anos depois, ainda tão bem vestida, chique e com um bom gosto impecável para joias e estampas, ela constata o óbvio: “Eu era tão bonita…”, e emenda: “…e não sabia.”
Em A Cabana do Pai Tomás, Ruth contracenou com o ator Sérgio Cardoso no papel do negro escravizado que dá título à novela. Ele era branco, e a produção não viu problema nenhum em caracterizá-lo com blackface em vez de contratar algum ator preto para o papel principal. Na época, houve reações de outros atores e dramaturgos brancos, e o fato acabou inspirando o próprio Tony Tornado a entrar na televisão, como o próprio também contou em sua coletiva de imprensa na CineOP.
Não era a primeira escrava que Ruth de Souza encarnava. Na verdade, nem era a primeira vez que ela estava em uma montagem de A Cabana do Pai Tomás. E a novela não foi a última vez em que ela teve que atuar no papel de mulheres escravizadas, pobres, empregadas domésticas ou “babás gordas”, mesmo sendo magérrima. Ora, em 1954 chegou a concorrer ao prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza por um papel em Sinhá Moça, e, de acordo sua fala no filme, só perdeu “porque era coadjuvante.”
“Eu queria trabalhar, não negava nenhum papel”, Ruth repete, algumas vezes, no filme. “As atrizes achavam que podiam mandar em mim fora de cena, como faziam nas gravações.” Naquela altura, já haviam se passado 70 anos do fim da escravatura no Brasil, e aquela mulher negra somente repetia em tela os papéis que a sociedade lhe reservava fora dela.
“Ser oprimido significa a ausência de escolhas”, escreve bell hooks.
O despertar antirracista (uma tentativa)
Mais ou menos na mesma época em que o diretor Antonio Fontoura estava gravando seu potente blaxploitation A Rainha Diaba, também exibido nesta edição da Mostra Cinema de Ouro Preto, o músico Jorge Ben estreava a fracassada comédia Uma Nêga Chamada Tereza. O filme dirigido por Fernando Coni Campos passou em cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife em 1973 e então desapareceu por décadas, tendo ressurgido agora e integrado a mostra histórica da CineOP para levantar um importante debate sobre a preservação do nosso cinema e da cultura em geral.
Sabidamente uma pessoa que hoje é bastante avessa a aparições e declarações públicas, Jorge Ben Jor era o grande talento da composição brasileira na época que foi escalado para o papel principal de Uma Nêga Chamada Tereza, também o nome de uma de suas músicas mais famosas. Neste filme polêmico, o músico interpreta a si mesmo e a um sósia seu, ambos envolvidos em uma intriga protagonizada por uma gangue de bandidos liderada pela atriz Pepita Rodrigues. A loira quer sequestrar Ben Jor e trocá-lo pelo mecânico de seu carro durante o Festival da Canção, do qual ele é favorito, tudo para roubar o prêmio da competição.
Uma Nêga Chamada Tereza é um filme bobo com um argumento típico de filme da Sessão da Tarde, e seria inofensivo não fosse o tom completamente equivocado que recebeu em sua montagem final. Ao longo da história, os personagens de Antonio Pitanga e Marina Montini, um casal de africanos que vem para o Brasil ensinar consciência racial à população, têm suas motivações destruídas por uma caracterização que os coloca como promíscuos e malandros. O dialeto que eles falam, inventado, não traz nenhum “uga uga”, mas em determinado momento, surpreso, Pitanga exclama: “tonga da mironga!”.
Pior são as legendas que supostamente traduzem aquilo que os africanos estão dizendo, e o que está escrito não é nada bonito: “Martin Luther King Jr. é apenas um negro com ideias para os brancos comprarem”, ele explica em determinado momento. Em outro, é enfático: “morenagem sim, black power não!” O personagem de Pitanga, ele próprio uma espécie de gangster na história, chega a colocar os Panteras Negras como escória em um momento em que a organização era uma das mais proeminentes na luta por direitos civis no país norte-americano.
Até onde se sabe, porque os documentos sobre Uma Nêga Chamada Tereza são bem escassos, não houve submissão para que os negros do filme concordassem com essa montagem. Na verdade, quem a sofreu foi Coni Campos, que se viu envolvido com um desejo dos produtores de fazer um filme ufanista e agradável à ditadura militar, que, no início dos anos 1970 e com o tricampeonato mundial de futebol, empenhava naquele momento uma fortíssima campanha de “Brasil, ame-o ou deixe-o”, reforçando uma ideia de nação a caminho do progresso e de um derradeiro embranquecimento que, sabemos, nunca aconteceu.
Filho de Fernando Coni Campos, o músico Rubens Campos esteve na exibição do longa-metragem em Ouro Preto. Com o microfone em mãos, ele explicou que seu pai até mesmo cogitou pedir para ser excluído definitivamente dos créditos quando soube dos caminhos da montagem na edição, e que nem mesmo assistiu ao produto final até morrer, em 1988.
“É um filme bem louco, como todos repararam. Meu pai foi convidado para dirigir um roteiro, que ele próprio constatou, infilmável por questões técnicas e por ser uma história fraca. Ele tinha um outro filme na cabeça e que gostaria de fazer, que se chamaria Tupi or not Tupi, um filme bem oswaldiano”. No entanto, Rubens disse, “a ditadura não deixou passar muita coisa que falava de racismo. O governo queria manter a falsa ideia de que a questão racial era coisa dos EUA, não do Brasil.”
A montagem de Uma Nêga Chamada Tereza exibida na CineOP foi nada menos do que a quarta realizada pela produtora Aurora Duarte, e a única aprovada pelos censores da ditadura militar. Só pode-se especular, mas é possível que esta seja a única versão existente do filme hoje.
Nesse sentido, a preservação patrimonial do cinema como debatida na Mostra é importante para que consigamos alinhar os saberes sobre determinadas obras como esta, que a primeira vista é um filme perdido único protagonizado por Jorge Ben Jor, mas que na verdade tornou-se um mero produto de propaganda política em um momento em que outros astros, como Roberto Carlos, também estavam fazendo esse tipo de cinema, conscientes de suas escolhas ou não.
Nas mãos de pessoas menos simpática à causa antirracista, Uma Nêga Chamada Tereza poderia ser transformado mais uma vez neste tipo de propaganda da extrema direita. Em último caso, serviria para desacreditar boa parte da própria obra de Jorge Ben, que não somente cantou que “Negro é Lindo”, como eternizou em suas músicas histórias de quilombos, escravas, de amores, pessoas, rodas de samba e jogadas de futebol.
Assistir Uma Nêga Chamada Tereza é, acima de tudo, entender que o racismo não é apenas algo que existe na sociedade e que afeta todos os dias os nossos Jorges, Antonios e Ruthes, que faz com que eles aceitem, abaixem a cabeça, se sujeitem e até neguem no final se for preciso. É um projeto instaurado, incentivado e patrocinado pelo Estado, o mesmo que incentiva cultura e educação mas não consegue, nunca, tirá-los de uma bolha para que finalmente se emancipe o povo. É, também, reflexo da branquitude nos espaços de produção e preservação cultural, que aos poucos parece ir perdendo sua hegemonia. Mas bem aos poucos mesmo.
“Se todas as vidas importassem, nós não precisaríamos proclamar enfaticamente que a vida dos negros importa”, reflete Angela Davis.