Conheça o livro que revisita Shakespeare e inspira um dos filmes favoritos ao Oscar
Adaptado do romance de Maggie O’Farrell, “Hamnet: A Vida Antes de Hamlet”, novo filme de Chloé Zhao, parte das lacunas que cercam a vida de Shakespeare
Filmes ambientados no Renascimento inglês já não despertam o mesmo encanto dos anos 1990 — hoje, muitas vezes são recebidos com certa resistência, como se o gênero tivesse se esgotado. Há também um hiato considerável desde que o cinema voltou seus olhos para a vida ou as obras de William Shakespeare, talvez ainda por causa do desgaste provocado por Shakespeare Apaixonado.
Mas o bardo ganhou novo fôlego com Hamnet: A Vida Antes de Hamlet, novo longa de Chloé Zhao, vencedora do Oscar por Nomadland. A produção desponta como uma das favoritas na disputa de 2026, especialmente em direção e atuação feminina (com Jessie Buckley), e tem chances reais até de chegar a Melhor Filme.
Baseado no romance homônimo de Maggie O’Farrell (lançado no Brasil pela Intrínseca), o filme parte das muitas lacunas da biografia de Shakespeare (vivido por Paul Mescal no filme) para construir uma história que olha menos para o dramaturgo e mais para aqueles que o cercavam — sobretudo sua esposa e seus filhos. Sabe-se que ele nasceu em Stratford-upon-Avon, era filho de um artesão em decadência e se casou jovem com Agnes, mulher mais velha e de boa posição. Tiveram três filhos, e a rotina da família foi marcada pela distância — ele em Londres, dedicado ao teatro — e pela tragédia da morte do único menino, em meio aos surtos de peste que assolavam a Inglaterra.
O romance se estrutura a partir de Agnes, figura livre e intuitiva, conhecida por cruzar a propriedade com um falcão no braço e por seus dons de cura e percepção. Ela se torna o centro emocional da casa enquanto o marido busca reconhecimento na capital. Quando o jovem Hamnet morre subitamente aos 11 anos, o casal é lançado a um luto profundo, narrado sobretudo pela perspectiva da mãe.
A obra mistura ficção e elementos históricos. Sabe-se que a esposa de Shakespeare, registrada como Anne Hathaway (sim, como a atriz), perdeu o filho chamado Hamnet. Estudos apontam que o nome Agnes aparece em documentos relacionados à herança do pai dela. Pouco tempo depois da morte do menino, Shakespeare escreve Hamlet, sua tragédia mais célebre. E há quem veja ecos dessa perda também em outras peças, como Romeu e Julieta. O longa tem previsão de estreia no início de 2026 no Brasil.
Enquanto isso, confira um trecho da obra literária:
Hamnet (Intrínseca, 2021), de Maggie O’Farrell
Um menino desce um lance de escadas.
O corredor é estreito e ele se esgueira para atravessá-lo. Ele dá cada passo devagar, desliza ao longo da parede, as botas pisando firme e ruidosamente.
Próximo ao final, ele para, olha para o caminho concluído. De repente, então, de súbito decidido, pula os últimos três degraus, como é seu hábito. Vacila ao aterrissar, caindo de joelhos no chão de lajota.
É um dia abafado, sem vento, no final do verão, e o cômodo do andar térreo está sulcado por longas listras de claridade. O sol o encara, brilhante, do lado de fora, e as janelas são como placas de treliça amarela encravadas no gesso.
O menino se levanta, esfregando as pernas. Olha para um lado, para o alto da escada; para o outro lado, sem conseguir escolher que rumo tomar.
O aposento está vazio, o fogo crepita no braseiro, brasas alaranjadas sob a fumaça suave que sobe em espiral. Os joelhos machucados latejam no compasso do seu coração. Ele fica ali parado, uma das mãos no ferrolho da porta da escada, o bico de couro gasto da bota erguido, pronto para o bote, para a fuga. O cabelo claro, quase dourado e em tufos, coroa sua fronte.
Não há ninguém ali.
Ele suspira, inspirando o ar morno e poeirento, atravessa o cômodo e sai pela porta que leva à rua. O ruído de carrinhos de mão, cavalos, ambulantes, pessoas chamando umas às outras e de um homem que atira uma saca da janela não o alcança. Ele passa pela frente da casa e chega à porta do vizinho.
O cheiro da casa dos avós é sempre o mesmo: uma mistura de fumaça de lenha, verniz, couro e lã. É semelhante, porém inquestionavelmente distinto do cheiro do anexo de dois cômodos, construído pelo avô na brecha estreita junto à casa maior, onde ele mora com a mãe e as irmãs. Às vezes lhe escapa o porquê de ser assim. As duas moradias são, afinal, separadas apenas por uma parede fina de pau a pique, mas o ar em cada uma delas tem um volume diferente, um aroma diferente, uma temperatura diferente.
A casa assovia com correntes e contracorrentes de ar, com as batidas e marteladas da oficina do avô, com as vozes dos fregueses na janela, com o barulho e o rebuliço do pátio lá nos fundos, com o som do vaivém dos tios.
Mas não hoje. O menino fica ali no corredor, apurando o ou-vido para ver se há movimento. Pode ver dali que a oficina, à sua direita, está vazia, as banquetas na bancada, desocupadas, as ferramentas ociosas, e uma bandeja de luvas abandonadas, que parecem mãos descarnadas, está à vista de todos. A janela em que os fregueses são atendidos está fechada e aferrolhada. Não há ninguém na sala de jantar, à sua esquerda. Um monte de guar-danapos compõe uma pilha na mesa comprida junto a uma vela apagada e um monturo de penas. Nada mais.
Ele chama, é um grito de saudação, um som indagador. Uma vez, duas vezes ele faz esse barulho. Então, inclina a cabeça, atento a uma resposta.
Nada. Apenas o estalido das vigas se expandindo suavemente ao sol, o suspiro do ar passando por debaixo das portas entre os cômodos, o farfalhar das cortinas de linho, o crepitar do fogo, o ruído indefinível de uma casa em repouso, vazia.
Seus dedos se fecham em torno do ferro da maçaneta da por-ta. O calor do dia, mesmo já sendo tão tarde, faz com que o suor lhe brote na fronte, lhe escorra pelas costas. A dor nos joelhos se aguça, lateja e depois diminui de novo.
O menino abre a boca. Chama os nomes, um por um, de to-dos que moram naquela casa. O da avó. Da criada. Dos tios, da tia. Do aprendiz. O do avô. Tenta todos eles, um após o outro. Por um instante, lhe ocorre chamar o nome do pai, gritá-lo, mas o pai está a quilômetros e horas e dias de distância, em Londres, onde o menino jamais pôs os pés.
Mas onde, ele gostaria de saber, onde estarão sua mãe, a irmã mais velha, a avó, os tios? Onde estará a criada? Onde estará o avô, que não tem o hábito de sair de dia, que em geral pode ser encontrado na oficina, atormentando o aprendiz ou calculando seus lucros num livro-caixa? Aonde foi todo mundo? Como é possível que as duas casas estejam vazias?
Ele atravessa o corredor. Diante da porta da oficina, para. Lança um rápido olhar por sobre o ombro, para garantir que não há ninguém ali, e depois entra.
A oficina de luvas do avô é um lugar em que raramente lhe permitem entrar. Até ficar parado diante da porta é proibido.
Não fique aí à toa, rosna o avô quando o flagra. Será que um homem não pode passar um dia de trabalho honesto sem que alguém pare para espiá-lo? Você não tem nada melhor para fazer do que perder tempo caçando moscas?
A mente de Hamnet é rápida: ele não tem dificuldade para entender as lições do professor. É capaz de captar a lógica e o sentido do que estão lhe dizendo e de memorizar prontamente. Lembrar-se de verbos e de gramática, de tempos e retórica e números e cálculos é tarefa que desempenha com uma facilidade que chega, vez por outra, a atrair a inveja de outros meninos. Mas sua mente também se distrai facilmente. Uma carroça que passa na rua durante a aula de grego desviará sua atenção da lousa e o levará a imaginar para onde ela vai e qual será sua carga e em como foi maravilhoso o dia em que o tio deu a ele e às irmãs uma carona na carroça de feno, e a recordar o aroma e o pinicar do feno recém-cortado, do balanço das rodas avançando em compasso com os cascos da égua cansada. Mais de duas vezes nas últimas semanas, ele apanhou na escola por não prestar atenção (a avó avisou que se acontecesse mais uma vez, uma vezinha só, ela mandaria contar ao pai dele). Os professores não entendem. Hamnet aprende rápido, sabe recitar de cor, mas não consegue manter a atenção no que está fazendo.
O barulho de um pássaro no céu pode fazê-lo parar de falar no meio de uma frase, como se o próprio céu o deixasse surdo e mudo de uma hora para outra. A visão, pelo canto do olho, de alguém entrando numa sala é capaz de levá-lo a interromper o que quer que esteja fazendo — seja comer, ler, copiar o dever da escola — para fixar a atenção no recém-chegado como se este trouxesse uma mensagem importante dirigida apenas a ele. Hamnet tende a extrapolar os limites do mundo real, tangível, à sua volta e entrar em outro lugar.
Senta-se fisicamente numa sala, mas em sua mente está longe dali, é outra pessoa, num lugar que só ele conhece. Acorde, menino, grita a avó, estalando os dedos para ele. Volte aqui, sibila a irmã mais velha, Susanna, puxando-lhe a orelha. Preste atenção, repreendem os professores. Onde você estava? é o que ouve Judith sussurrar quando enfim retorna ao mundo, quando volta a si, quando olha à volta e descobre que está em casa, sentado à mesa, cercado pela família, a mãe a enca-rá-lo com um meio-sorriso, como se soubesse precisamente por onde ele andou.
Do mesmo jeito, agora, ao entrar no território proibido da oficina de luvas, Hamnet já não recorda o que fora fazer ali. Tem-porariamente se libertara de suas amarras, do fato de que Judith não está bem e precisa de alguém para cuidar dela, que sua tarefa é encontrar a mãe ou a avó ou outra pessoa que saiba o que fazer. Peles pendem de um trilho. Hamnet tem conhecimento sufi-ciente para identificar o couro salpicado de vermelho-ferrugem de um cervo, a pele delicada e flexível de uma cabra, a peliça menor de esquilos, a pele de porco, áspera e eriçada. Quando o menino se aproxima das peles, elas começam a farfalhar e se mo-ver nos ganchos, como se alguma vida ainda restasse nelas, um pinguinho apenas, o suficiente para ouvi-lo chegando. Hamnet estende o dedo e toca a pele de cabra. É indizivelmente macia, como o roçar das algas do rio em suas pernas quando ele nada nos dias de calor. Hamnet se balança de leve para a frente e para trás, as pernas afastadas, estendidas, como que em fuga, como um pássaro ou uma assombração.
Então se vira, examina os dois bancos na bancada: o estofado de couro, amaciado pelo atrito da calça do avô, e o de madeira dura para Ned, o aprendiz. Vê as ferramentas penduradas em ganchos na parede acima da bancada de trabalho. Consegue identificar as que servem para cortar, as usadas para esticar, as destinadas a prender e a costurar. Vê que o mais estreito dos esticadores de luva — usado nas femininas — não se encontra no lugar, largado na bancada onde Ned trabalha de cabeça baixa, ombros curvados e dedos ansiosos, ágeis. Hamnet sabe que o avô precisa de pouca provocação para gritar com o rapaz, ou coisa pior, e por isso pega o esticador, sentindo a textura cálida de lã, e o recoloca no gancho a que pertence.
Está prestes a puxar a gaveta em que ficam guardados os carretéis de linha e as caixas de botões — com muito, muito cuida-do porque sabe que a gaveta vai ranger —, quando um ruído, um leve movimento ou chiado, lhe chega aos ouvidos.
Segundos depois, Hamnet já está se esgueirando pelo corredor que leva ao pátio. Lembra-se de sua tarefa. Por que foi perder tempo remexendo na oficina? A irmã não está bem: ele tem que encontrar alguém para ajudar.
Escancara, uma por uma, as portas da cozinha, da cervejaria, da lavanderia. Todos os cômodos estão vazios, seus interiores escuros e frios. Torna a chamar, meio rouco dessa vez, a garganta irritada de tanto gritar. Apoia-se na parede da cozinha e chuta uma casca de noz, arremessando-a para o outro lado do pátio. Sente-se totalmente perdido por estar tão sozinho. Alguém de-veria estar ali, tem sempre alguém ali. Onde estarão? O que fazer? Como pode todos terem saído? Como a mãe e a avó podem não estar em casa, como costuma acontecer, abrindo e fechando as portas do forno, mexendo alguma coisa no fogo? Fica parado no pátio, olhando à volta, para a porta que dá na passagem, para a porta da cervejaria, para a porta da casa em que mora. Aonde ir agora? A quem pedir socorro? E onde está todo mundo?
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